"Na Cama com Victoria" | © Le Pacte

Cannes em Casa | Na Cama com Victoria (2016)

Com a sua vitória, Justine Triet tornou-se na terceira realizadora a alcançar a Palme d’Or. “Anatomie d’une Chute” chegará a Portugal nos meses vindouros, mas, entretanto, podemos explorar a filmografia da cineasta francesa, como que em jeito de antecipação. Pensemos nas comédias que ela fez com Virginie Efira, nomeadamente a deliciosa “Na Cama com Victoria” que, em 2016, foi o filme de abertura para a Semana dos Críticos em Cannes. Ainda no festival, a fita ganhou a Palm Dog para melhor ator canino e, mais tarde, viria a arrecadar cinco nomeações para os prémios César, incluindo para Melhor Filme e Melhor Atriz.

Apesar da origem belga, não há mulher que melhore personifique a loucura francesa que Virginie Efira. Nos últimos anos, a atriz tem vindo a dar corpo e alma a algumas das mais estrambólicas figuras do cinema gálico, capturando psicoses nacionais, estereótipos culturais e vícios históricos com igual mestria. Pensemos na esposa críptica nas margens de “Elle” ou na mãe solteira a tentar vingar numa transição de costumes em “Um amour impossible.” Há a polícia problemática do “Turno da Noite” e a freira doida de “Benedetta,” a bipolaridade sensualista de “Em attendant Bojangles” e as tensões afetivas em “Os Filhos dos Outros.”

No início do ano, Efira conquistou a maior honra para uma intérprete em panorama francófono, tendo ganho o César para Melhor Atriz por “Revoir Paris,” uma meditação sobre o trauma causado por ataques terroristas. Dito isso, quiçá nenhuma cineasta melhor compreenda as capacidades da atriz que Justine Triet, nossa mais recente vencedora da Palme d’Or. Efira não consta do elenco dessa fita consagrada, mas foi com Triet que seu estatuto se confirmou. Por seu lado, foi com a belga, que a realizadora alcançou seus primeiros triunfos, inclusive a estreia na competição de Cannes com “Sibyl” em 2019.

na cama com victoria cannes em casa
© Le Pacte

Antes desse melodrama extravasado por humores histéricos, já a parelha havia ganho fama conjunta. De facto, poderíamos dizer que foi essa fita que mais terá marcado suas trajetórias, redefinindo o percurso da carreira, a reputação, a celebridade. Trata-se de uma comédia de temas familiares a quem quer que veja filmes franceses com alguma regularidade. Há muita libertinagem sexual, casos e amores cruzados, há um leve ar de sofisticação capaz de inebriar, transformando qualquer razão em insensatez. A elegância predomina, mas está sempre embebida num cheirinho de vinho forte e champanhe a condizer.

“Na Cama com Victoria” é uma comédia romântica em mistura alquímica com histórias de advogados. Acima de tudo é um estudo de personagem cujas qualidades humorísticas não caem nos conservadorismos reacionários de que sofre tanta comédia francesa. Rejeitam-se preconceitos, mas não se opta pela segurança sem risco, pois o divertimento quadrupla quando nasce do gesto subversivo ou da graça perigosa. Tudo isso tem que ver com a personagem titular, uma daquelas heroínas que podia ser uma história de sucesso não fosse a trapalhice neurótica com que aborda todos os aspetos da vida.

Lê Também:   76º Festival de Cannes | A Palma de Ouro 2023 e os Premiados

Ela é uma advogada bem paga com duas filhas que cria sozinha. O pai das miúdas abandonado suas responsabilidades familiares e financeiras para se ir lamentar em comunidades online e fazer fortuna gozando com Victoria através de autoficção mal dissimulada. Belíssima, a protagonista não tem problema em arranjar amantes, tendo até uma mania de dormir com todo o charmoso que lhe aparecer à frente. Epítetos de prazer aparte, a situação raramente acaba bem, cada amante trazendo-lhe mais problemas do que aquele que veio antes. Não que os amigos platónicos sejam mais pacíficos. Depressa nos apercebemos disso numa festa de casamento.

Há cães e chimpanzés no copo d´água, karaoke desafinado e o culminar de todo o caos boémio em que Victoria se deixa emaranhar. Neste antro de excentricidades, onde todos parecem ser arquétipos aparvalhados, um drama amoroso explode, suas ondas de choque vibrando pela restante narrativa. Teremos aqui o processo de tribunal que dá forma ao filme sem, no entanto, o dominar. Mais importante que o trabalho de advogada, é o modo como Victoria navega estes obstáculos, com novas provações a aparecerem-lhe pela frente a cada dia que passa. Quer seja o blogue descontrolado do ex-namorado ou a ameaça de castigos profissionais, tudo é dor de cabeça.

cannes em casa na cama com victoria
© Le Pacte

Não admira que Victoria tenha ataques de pânico, ou que o riso do espetador se vá complicando à medida que a história se desenrola. Triet não se fica pela exaltação dos preceitos cómicos, subvertendo seu impacto nas personagens e deixando-nos perscrutar genuínas emoções dentro da farsa. Isso não seria possível sem o trabalho extraordinário de Virginie Efira, tão pronta a apalhaçar como a desenterrar as mágoas mais dolorosas de cada cena, fazendo de Victoria uma heroína cómica, mas também a pior inimiga de si mesma. Melvil Poupaud e Vincent Lacoste são outros ases no baralho, servindo como elementos contrastantes para com o centro caótico de “Na Cama com Victoria.” Poupaud é o cliente pesadelo, a fonte de muitos problemas e gargalhadas cruéis, afiando todas as arestas vivas que encontra. Lacoste, pelo contrário, afirma-se porto seguro na tempestade, uma paz necessária no coração do pandemónio. Justine Triet assim se confirma mestra do cinema no que se refere à arquitetura narrativa e ao trabalho de ator. Depois de “Anatomie d’une chute” quiçá ela se reúna com Virginie Efira para outro trabalho. Uma coisa é certa, todo o filme abençoado com qualquer uma dessas deusas cinematográficas é visionamento obrigatório.

“Na Cama com Victoria” pode ser alugado na MEO. Para explorar outros trabalhos de Justine Triet, a curta-metragem “Vilaine fille mauvais garçon” está na FILMIN.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *