Cannes Première 2025: Cinco visões cinematográficas sobre memória, trauma e identidade | Festival de Cannes 2025
De Fatih Akin a Lav Diaz, passando por Sebastián Lelio, Rebecca Zlotowski e Kirill Serebrennikov, a secção Cannes Première 2025 apresentou cinco filmes que exploram, com ousadia estética e profundidade emocional, temas como o trauma, a resistência e a memória.
A secção Cannes Première do Festival de Cannes 2025 voltou a afirmar-se como um espaço de rampa de lançamento de cinema de autor, com filmes que não cabem na Competição Oficial, mas que mais facilmente chegarão ao grande público, mesmo passando pelo crivo da crítica. Cannes Première reuniu mais uma vez este ano, obras que combinam ambição estética, densidade temática e sobretudo o tal potencial de distribuição internacional.
Cinco filmes destacaram-se este ano — obras de Fatih Akin, Sebastián Lelio, Rebecca Zlotowski, Lav Diaz e Kirill Serebrennikov — unidos pela exploração do trauma individual e coletivo, da memória e da identidade. Sejam dramas históricos, musicais de protesto ou thrillers psicológicos, cada um destes filmes propõe uma visão singular sobre o mundo contemporâneo.
Cannes Première 2025 | “Amrum”, de Fatih Akin: o fim da infância na sombra da guerra
Vinte anos depois de “Do Outro Lado” (“The Edge of Heaven”), Fatih Akin regressa a Cannes com “Amrum”, um drama profundamente pessoal situado nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial. Inspirado nas memórias do seu mentor Hark Bohm, o filme acompanha Nanning, um rapaz de 12 anos cuja inocência é confrontada com o colapso do mundo adulto.
Com uma fotografia que alterna entre o lirismo bucólico e a dureza da realidade, Akin compõe uma obra sobre identidade, perda e revelação, onde Diane Kruger se destaca num papel determinante. “Amrum” é, acima de tudo, um retrato cinematográfico sobre a infância como espaço de transformação, com ecos de “Ladrões de Bicicletas” e “Conta Comigo” filtrados por uma sensibilidade alemã profundamente emocional.
Cannes Première 2025 | “La Ola”, de Sebastián Lelio: o musical como forma de protesto
Com “La Ola”, o chileno Sebastián Lelio reinventa o género musical como grito de resistência e libertação emocional. Inspirado nas manifestações feministas do #MeToo no Chile em 2018, o filme acompanha Julia (a estreante Daniela López), uma estudante que encontra na arte e no activismo as ferramentas para enfrentar o trauma e a repressão. Coreografado por Ryan Heffington e com música original de Ana Tijoux e outras artistas chilenas, o filme pulsa com energia, raiva e esperança, mas é difícil fugir às comparações óbvias com o ‘efeito’ “Emilia Pérez”. No entanto, Lelio e um jovem ‘mestre’ que faz do cinema uma arte política com emoção e beleza, numa obra que dança entre o coletivo e o íntimo.
Cannes Première 2025 | “Vie Privée”, de Rebecca Zlotowski: Jodie Foster e os labirintos da mente
A realizadora francesa Rebecca Zlotowski apresenta em “Vie Privée” um thriller psicológico elegante e hipnótico, protagonizado por Jodie Foster. No papel de Liliane, uma psicanalista que entra em colapso após a morte de uma paciente (Virginie Efira), Foster mergulha num turbilhão de visões, hipnoses e regressões. Com uma mise-en-scène contida e simbólica, Zlotowski constrói um filme onde a memória e o inconsciente comandam a narrativa. Foster, num desempenho notável em francês, equilibra fragilidade e autoridade numa das suas interpretações mais marcantes da última década.
Cannes Première 2025 | “Magalhães”, de Lav Diaz: revisitar o herói colonial com olhar crítico
Conhecido pelas suas narrativas épicas e contemplativas, Lav Diaz regressa com “Magalhães”, mais uma reinterpretação crítica da figura do navegador português. Protagonizado por Gael García Bernal, o filme revisita a história da circum-navegação com foco no escravo malaio Enrique, interpretado pelo actor filipino Amado Arjay Babon. Com três horas de duração — parte de uma versão integral de nove, produzida pela Rosa Filmes de Joaquim Sapinho, financiada pelo ICA e RTP —, o filme é uma meditação sobre poder, colonização e identidade, filmada entre Portugal, Espanha e Filipinas. Diaz transforma o biopic num lamento histórico e existencial, onde o tempo se dilui e a memória resiste.
Cannes Première 2025 | “O Desaparecimento de Josef Mengele”, de Kirill Serebrennikov: um retrato implacável do mal
Baseado no livro de Olivier Guez, “O Desaparecimento de Josef Mengele” é um dos filmes mais inquietantes desta edição. Com August Diehl no papel do infame médico nazi exilado na América do Sul, Kirill Serebrennikov constrói um retrato frio e claustrofóbico de um monstro sem remorso, protegido durante décadas por redes de cumplicidade. Serebrennikov recusa a dramatização tradicional e linear e opta antes por uma linguagem visual austera, expondo a paranóia, decadência e delírio de Mengele. A justiça falhou, mas o cinema aqui cumpre o seu papel: confrontar, lembrar e inquietar.
Cannes Première 2025 | Novamente o cinema como memória viva
De “Amrum” a “O Desaparecimento de Josef Mengele”, a secção Cannes Première 2025 reafirma-se como território fértil para narrativas que enfrentam o passado para interpelar o presente. Sejam filmes sobre guerras, ditaduras, traumas psíquicos ou figuras históricas controversas, estas obras revelam um cinema que resiste à superficialidade, apostando na complexidade estética e ética.
Cada filme é um testemunho artístico do nosso tempo, capaz de emocionar, incomodar e provocar reflexão. E essa é, talvez, a verdadeira missão do cinema em tempos de incerteza: recordar o que preferimos esquecer e iluminar o que teima em permanecer nas sombras.