Capitão Fausto à MHD | “Vou perder o medo de não conseguir”

Os Capitão Fausto ainda não pararam desde o seu último lançamento com A Invenção do Dia Claro. No entanto, há sempre lugar e tempo para falar sobre música.

Confortavelmente sentado numa cadeira junto do parapeito da janela, de cigarro na mão (após ter perguntado se era incómodo), Domingos Coimbra diz-nos o que pensa sobre o novo álbum dos Capitão Fausto, A Invenção do Dia Claro, lançado a 15 de Março pela Sony Music EntertainmentNuma conversa a três, assim se passou parte desta tarde nos estúdios em Alvalade, como quem não dá conta do tempo a passar. Domingos não só esclarece dúvidas técnicas, mas dá-nos a conhecer o que o próprio álbum significa para si.

Capitão Fausto 2019
Capitão Fausto, Brasil 2019

MHD – Dos quatro álbuns, este sai um bocado do estilo que tinham deixado como “vosso”. Existe uma aposta em novos sons, novos instrumentos, e mesmo um instrumental que é tocado com mais potência e impulso nunca antes ouvido noutras músicas, como em “Certeza”. Qual é a razão da diferença neste álbum dos Capitão Fausto?  

Acho que não é diferente em estilo, é, se calhar, um bocadinho diferente na abordagem, mas não é diferente em estilo. Acho que há muitas características que são transversais nos nossos discos. No caso deste, se calhar desta vez, quisemos fazer uma coisa um bocadinho mais simples. E uma coisa mais simples não quer dizer que foi mais fácil fazer, mas quisemos que o resultado final fosse uma coisa se calhar um bocadinho mais despida. No disco anterior, também tivemos a ideia de arranjar as músicas com instrumentos que não os que tocamos, mas era numa lógica um bocadinho mais de camadas, camadas e camadas. E este aqui tentámos que as camadas fossem uma coisa um bocadinho mais “pairante”, sem contar com uma ou outra música, tipo essa, a “Certeza”. Então, essa se calhar é a grande diferença. Mas neste disco, e em relação ao anterior também, quisemos ter essa coisa, que eu acho que é libertadora, que é podermos contar, se quisermos, com sons que não somos capazes de reproduzir nós próprios, e, por isso, arranjámos instrumentistas que fizessem por nós aquilo que estávamos a imaginar e ficámos muito contentes com o resultado.

MHD – Em relação ao título do álbum (e com a sonoridade que se vai ouvindo), é possível encontrar uma certa “contradição” entre os temas que as canções tratam e as melodias alegres e bem-dispostas que se ouvem ao longo do álbum.

Percebo esse ponto, mas (e isso se calhar pode ser uma influência que tivemos de música brasileira) acho que é fixe saber cantar às vezes coisas tristes de forma alegre.

MHD – Os Capitão Fausto encontraram esta forma em influências no Brasil?

Não foi propositado, só que parece que se dividem as coisas entre tristes e felizes, mas na verdade uma coisa pode ser tanto triste, como pode ser feliz ao mesmo tempo. Da mesma maneira que uma pessoa é as duas ao mesmo tempo, nuns dias é mais feliz, noutros dias é menos. As músicas também não têm propriamente uma regra, ou seja, ao longo dos anos fomos assumindo que, para acordes ou melodias mais alegres, a mensagem seria uma coisa alegre, o que nos leva a coisas menores, que por sua vez nos levam a coisas mais tristes. Mas isso não é necessariamente assim, não é? E é interessante haver uma dualidade na expressão com que se faz as coisas: estar a cantar uma música que é muito mexida e que por trás – sei lá, por exemplo, na letra da “Boa Memória” ou na “Sempre Bem”, está-se a cantar uma coisa que é à partida feliz – tenha, na verdade, um certo “não é bem assim”. E isso acontece ao acaso, mas gostei disso que o Tomás fez.

A INVENÇÃO DO DIA CLARO | “BOA MEMÓRIA”

MHD – E existe também uma dicotomia entre a fuga da realidade e a sua aceitação. Isto faz parte do processo de “inventar” o dia claro? Ou o dia claro também vai ao encontro da ignorância daquilo que não é tão bom (ou não está bem)?

O disco não é bem sobre fugir da realidade, acho que é mais aprender a lidar com ela. E para aprender a lidar com a realidade, que nem sempre é aquilo que queremos (atenção, estou a falar por mim, não fui eu que escrevi as letras, mas se tiver de falar assim em termos mais vastos, mais alargados), nem sempre se gosta daquilo com que se tem de lidar. Às vezes pomo-nos a pensar e a arranjar explicações para não querermos lidar com as coisas, mas não é que estejamos a viver na irrealidade. É porque estamos a arranjar os mecanismos para no futuro nos conseguirmos defender, ou não. O álbum tem um bocadinho esse lado introspectivo, que parte de uma coisa própria, mas que está intrinsecamente ligado à ideia de relações humanas. Ou seja, a ideia de que, à medida que vamos encontrando obstáculos e desafios, questionamos a natureza das nossas coisas e tentamos que, no fim disso, consigamos sair melhores desse processo, seja ele bom ou mau. Na verdade, é uma mensagem um bocadinho de esperança, ou seja, aceitar tristeza, seja viver com ela e saber que isso é normal, aceitar que é normal, e que é real, e que é possível viver e aprender com isso. Depois, quem sabe, podermos melhorar-nos nessas coisas.

MHD – Existe alguma história por detrás deste álbum dos Capitão Fausto? A ordem foi intencional?

Para o Tomás sim, há ali uma história. Normalmente o alinhamento dos discos é uma coisa debatida por todos, porque normalmente ligamos mais aos alinhamentos, a maneira como eles se ligam uns com os outros sonicamente, musicalmente, e neste caso foi um bocadinho diferente porque o Tomás sabia sobre o que ia escrever, à partida, e sabia que a primeira música ia ser “Certeza” e a última ia ser a “Final”. Depois as músicas foram-se desenvolvendo e ele já tinha uma etapa para cada coisa. Portanto, sim, não diria que há uma história certíssima e objectiva, mas há uma linha, um fio condutor. Há umas partes mais, não sei… um bocadinho mais de lidar com os problemas, há uma parte de fugir deles, há uma parte de saber viver em paz com eles, sei lá, uma data de coisas.

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MHD – Se calhar, esta seria mais para o Tomás, mas há uma passagem de “Não vou saber mudar” (na “Amor, a Nossa Vida”) para “Meu amor, só tu me podes mudar” (na “Lentamente”). Parte de uma vontade de crescer com alguém e ter como base uma amizade em que se ajuda e é ajudado? Ou é fruto e aprendizagem de reflexão de um crescimento pessoal?

Acho que posso aplicar isso para mim. Por exemplo, quantos dias não acordei a achar que uma situação é impossível de ser resolvida e depois, no dia a seguir, se calhar olho para as coisas de uma forma diferente? É um bocado isso. Não há propriamente aí, se calhar, uma mensagem super forte de positivismo. É só as pessoas às vezes têm dias bons e outras têm dias maus. Também é giro um disco não ter só as fases em que as pessoas estão no dia em que veem tudo da melhor forma, e também é interessante o dia em que não se vê as coisas de uma maneira tão evidente ou segura. Para mim, nessa altura é também a melhor fase para se escrever e para se chegar a outras coisas que na verdade não é por serem derrotistas que deixam de ser verdadeiras, não é? É uma coisa com a qual toda a gente se consegue identificar. Os dias em que sentimos que não conseguimos resolver os nossos problemas e os dias em que esses problemas parece que deixam de existir porque vemos as coisas de outra forma, é mais isso.

CAPITÃO FAUSTO | “AMOR, A NOSSA VIDA”

MHD – E como Capitão Fausto, falam por uma geração ou para a geração? Porque A invenção do dia claro – José de Almada Negreiros – é descrita como “ensaios para a iniciação de portuguezes na revelação da pintura. Com um auto retrato de elle-próprio.” e perguntamos se estão a pintar uma sociedade ou estão a fazer um auto-retrato?

Não estamos certamente a pintar uma sociedade e se fizemos um auto-retrato, é nosso e das nossas vivências, e isso obviamente insere-se num contexto, numa geração. Não nos sentimos de todo a voz de uma geração, mas como pertencemos a uma e temos a sorte de haver pessoas que se identificam com coisas que escrevemos, podemos dizer que ali num certo ponto há algumas coisas que são faladas e que podem ser específicas deste momento. Na verdade, também há outras coisas que são faladas e podiam ser específicas em qualquer outro momento, porque, relativamente a sentimentos humanos, a sensações e a emoções, a coisa não se desenvolveu muito desde que o homem é sapiente. Os problemas são os mesmos, vão alterando, há uns que ficam problemas de primeiro mundo, mas a verdade é que as sensações primárias e as emoções mantêm-se um bocadinho intactas desde o princípio, e, por isso, quando se está a falar de canções de amor, ou sobre a forma como nos relacionamos com as pessoas, acho que são sentimentos comuns a toda a gente.

Se calhar, no nosso caso há pessoas que, de duas uma, ou vêem numa música, ou numa melodia, uma forma de passarem o tempo e de companhia, ou então vêem também paralelismos com a sua própria vida, e isso é a essência da música pop. Nós ouvimos coisas e dizemos “Ah isto…”. Podemos gostar só de ouvir música ou então podemos gostar de perceber um bocadinho mais e tentar que a música nos dê algumas linhas, nem que sejam coisas básicas, seja um ponto de vista, uma segurança, ou um escape… E sempre foi esse o papel da música e das artes, ou seja, é impossível definir o verdadeiro alcance dela, não é terapêutica por raiz. Na verdade, ela não é nada quando nós fazemos a música. É a vontade de nós os cinco e depois, a partir do momento em que sai a música, pertence a toda a gente; e felizmente ao longo dos anos, um grupo cada vez maior de pessoas tem-se identificado com essas coisas que lá estão. Mas nós não temos o impulso de dizer “Queremos mudar qualquer coisa com isto” ou “Queremos ser ouvidos de uma forma específica”. Essa parte escapa-nos um bocado ao controlo, por isso é que, quando alguém nos faz essa comparação ou dá esse elogio, não me posso rever nele, porque seria um bocadinho injusto, e até, se calhar, um bocadinho pretensioso da nossa parte acharmos que somos voz de alguém. As pessoas são a voz delas próprias.

Capitão Fausto 2019
Capitão Fausto, A Invenção do Dia Claro

MHD – Os Capitão Fausto sentem que já encontraram a sua identidade enquanto banda?

Nalgumas coisas, a nossa identidade enquanto banda vai ficando mais forte, mas, ao mesmo tempo, já era definida quando começámos a fazer a banda, porque o principal da identidade da nossa banda parte do princípio de amizade que temos entre todos. É isso que faz com que consigamos, depois, ano após ano, tentar ser melhores e ir à procura de outras coisas. Eu não gostava de sentir que nós já tínhamos descoberto tudo aquilo que temos a descobrir sobre nós próprios e sobre a música que fazemos. Por isso, no futuro os próximos desafios também vão passar por nos querermos reinventar. Eu acho que essa foi a conclusão a que chegámos (e na verdade é um bocado assim sempre): a identidade é uma coisa altamente progressiva, vai-se moldando, e no caso de uma banda é a soma das personalidades, mas depois a própria banda também ganha uma identidade própria.

Tentámos ao longo dos anos que isso nunca saísse do nosso controlo, e estamos expectantes para perceber o que é que vai acontecer nos próximos tempos e aonde é que podemos melhorar. Já sabemos, certamente, várias coisas onde podemos ser melhores, mas depois também há aquele lado de querer descobrir, que é uma curiosidade que temos. Era isso que gostava que não nos desaparecesse com a idade. Querer procurar algo novo só por ser novo, acho uma palhaçada, mas querer procurar algo novo para realização pessoal, para divertimento e para interesse, isso sim. Querer fazer as perguntas e não ter medo de falhar, que é uma coisa que acontece imenso. Se calhar, não passa para fora, mas grande parte do processo criativo das bandas passa por falhar 95% das vezes, saber lidar com essa frustração e depois ficar felizes com os 5% que acertaram, que é tudo o que passa cá para fora. Esse lado da curiosidade e do querer ser melhor e do questionar as coisas é, se calhar, o traço mais importante da identidade que temos. E como não é fixo, é moldável, está em constante desenvolvimento. Pelo menos esta é a análise que faço, e pode ser uma resposta para muitas pessoas acharem, muitas vezes, os nossos discos muito diferentes uns dos outros.

MHD – Existem músicas que independentemente do estado de espírito ou da altura, não nos fartamos de ouvir, nem sentimos a necessidade de passar à frente. Existe alguma que te lembres que tenha esse impacto em ti?

Sei lá, tenho imensas, sou capaz de ouvir uma vez por dia o Pet Sounds dos Beach Boys… Agora por acaso estou a ouvir outro álbum deles que é o Sunflower e estou a gostar imenso. Já conheço muito bem, mas é por fases… Isso é aquele clássico: quem gosta muito de música, depois também vive com música diariamente. A nossa vida é passada, hoje em dia, 18h a tocar e sou capaz de chegar a casa e ainda ouvir um vinil, ou ouvir um disco ou qualquer coisa. E não tenho por hábito passar uma música à frente, mesmo que não esteja a gostar. Vou dar-lhe o respeito suficiente para ouvir até ao fim. Tento fazer isso, às vezes é complicado… Mas tento fazer isso, e já me aconteceu não gostar do primeiro impacto que uma música tem e depois começar a percebê-la. Isso aconteceu-me, por exemplo, com o Kurt Vile, de quem ao princípio não gostava nada e tornou-se facilmente um dos meus artistas favoritos, e foi porque insisti e, ao princípio, passava à frente. E isso é injusto, porque às vezes nem tudo tem de ser imediato e as coisas às vezes não são feitas para serem imediatas. Pronto, já disse.

MHD – Próximo novo álbum dos capitão Fausto, significa um novo continente?

Eu gostava! Sei lá, gostava de ir ao Japão, mas nunca fui… mas isso quero ir com a minha namorada. Antes de ir lá gravar preferia ir primeiro em visita. Claro que ir a outros sítios é fascinante e a ideia de gravar em ambientes fora dos nossos ambientes normais é sempre um desafio e é super estimulante, mas ao mesmo tempo tenho imenso carinho aqui por esta sala e por este sítio que construímos. Nós já fizemos isto n’Os Dias Contados, aí gravámos o álbum todo com o Nuno Roque e este aqui gravámos no Brasil com o Funai e depois estivemos cá nós a produzi-lo e a misturá-lo e essas coisas todas, mas gostava de um dia sermos capazes de gravar aqui um álbum inteiro sozinhos. Ao mesmo tempo, quando surgem oportunidades destas incríveis também não podemos dizer que não, não é? Não sei, é ver.. Agora neste momento não estamos com a cabeça formatada para pensar muito em coisas novas. O que é pena, gostava de conseguir, mas não consigo mesmo.

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MHD – Mas aí, se calhar, dava para manter o que dizias acerca do que vos identifica e, ao mesmo tempo, conseguir ir buscar uma inovação que não fosse só por querer inovar, não é?

É, a inovação das coisas pode ser boa, um sítio pode ser bom para criar, ou uma altura, mas normalmente, quando é altura de gravar um álbum, é uma coisa muito técnica. Todo o trabalho que vem de antes é o mais importante, o de fazer as canções, saber arranjá-las e saber o que se vai fazer. A altura de gravar é muito chegar cedo ao estúdio, já sabermos o que temos de tocar. Há ali para aí 4 ou 5% que muda, mas o verdadeiro trabalho é feito antes. Mas sim, ainda por cima baseado nas bandas que gosto e nos discos que gravam – que vão gravar para castelos e ilhas tropicais – que seria eu dizer que não a isso. Mas, ao mesmo tempo, sinto que já tivemos essa experiência agora, por isso, se calhar, vamos procurar uma coisa nova, ou não, não sei como será.

MHD – Não ir sempre aos mesmos sítios procurar uma coisa que já passou, não é?

É, também acho que sim! Acho que não nos conformamos muito com o encontrar ou descobrir uma fórmula e aplicá-la, a não ser que sejam coisas técnicas, ou seja, já descobrimos que somos bons a trabalhar desta forma ou desta ou daquela. Mas se fôssemos fazer músicas parecidas com outras que já nos correram bem, acho que não é muito a nossa forma de estar e, por isso, acho que gostamos mais de nos pôr em posições de incerteza e desconforto, e depois ver como é que corre. Às vezes corre muito mal e depois, outras vezes, corre bem.

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