Cartas da Guerra, em análise

Em Cartas da Guerra de Ivo Ferreira, a correspondência entre António Lobo Antunes e a sua mulher, Maria José, durante os anos da guerra colonial é trazida ao grande ecrã. No entanto, a adaptação de D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto está longe de ser uma banal reconstituição histórica da Guerra do Ultramar.

cartas da guerra

Devido ao seu estatuto como um filme de guerra, um projeto de época sobre história recente e como prestigiosa adaptação literária de um autor ilustre, Cartas da Guerra, o novo filme de Ivo Ferreira, é uma obra que traz consigo uma série de expetativas. Ao invés de admirarmos o filme por ter ido de encontro a essas ditas expetativas, ou acusá-lo de não o ter conseguido fazer, olhemos para esta obra, através de outro prisma. Mais especificamente, falemos de como Cartas da Guerra subverte quaisquer ideias preconcebidas sobre o tipo de obra que deveria ser. Isto porque não estamos perante um filme de guerra normal, onde materialidade física e a experiência imediata do conflito são postas em foco, ou de um comentário político sobre um tema histórico ou mesmo de uma comum tradução cinematográfica de uma obra de literatura.

Começando por esse último ponto, convém fazer referência ao mais ousado mecanismo do filme, o voz-off. É certo que o uso desta ferramenta em adaptações literárias é, nas convenções atuais, um normal facilitismo de filmes onde ao invés de se traduzir o texto numa criação audiovisual, muitos cineastas se apoiam no voz-off quase como uma batota. No entanto, Ivo Ferreira pega neste elemento vocal e leva-o aos seus limites, tornando-o a principal base estrutural de todo o filme. Mas não é só a sua predominância que diferencia esta narração da de outros projetos semelhantes, mas também o modo como é executada. Ao invés das titulares cartas de António Lobo Antunes serem lidas pelo ator que o interpreta, a leitora é a destinatária, a sua mulher que está sozinha em Lisboa grávida da sua primeira filha. Na colisão entre a palavra escrita e a voz que a profere, Ferreira estabelece um diálogo invisível de saudade e emoção íntima que vai para além do que é verbalizado.

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Mas se a relação entre texto e leitura remete para uma realidade emocional concreta, o confronto entre o voz-off e a imagem é algo infinitamente mais complicado. Por um lado, é fácil olhar para os espaços detalhados de Nuno G. Mello como um indicador de realismo, mas depois temos de considerar também a formidável fotografia de João Ribeiro, cujo registo a preto-e-branco e rico em aguçados jogos de sombras está longe de quaisquer noções de realismo. Por consequência, as imagens, tal como as personagens, vivem num limbo de onde podem surgir múltiplas interpretações.

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Será que estamos a observar uma ilustração da realidade descrita nas cartas? Estaremos no panorama da memória ou do sonho? Não serão as passagens em África a imaginação de Maria José a tecer imagens das palavras de seu marido? Tentar decifrar ou resolver o filme é uma futilidade, mas é seguro dizer que estamos no campo de um cinema mais lírico que realista, mais preocupado com a subjetividade da perceção humana que com a fisicalidade material. Isso nunca é mais evidente que no momento em que as cartas falam de quão farto António está da cor verde que, para o espetador, não passa de uma abstração apenas existente nas palavras e não na imagem.

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Muitos filmes têm sido invocados em comparações críticas a Cartas da Guerra. A imprensa internacional, por exemplo, foi rápida a fazer a ligação entre este filme e Tabu de Miguel Gomes. Os dois filmes partilham produtora, preto-e-branco e ambos estrearam na Berlinale, mas, na abordagem ao passado colonial português e sua gramática fílmica, os dois projetos estão bastante distantes. Mais perto das aparentes intenções de Cartas da Guerra está A Cor da Romã de Sergei Parajanov. Tal como nessa obra-prima avant garde, a obra de Ferreira propõe-se, de modo bastante direto, a traduzir literatura em cinema, tentando trasladar a experiência da leitura para a experiência cinemática. Só que, quando o soviético fez essa tradução, a sua estética era uma de simbolismo e máxima estilização, enquanto Ivo Ferreira mantém sempre os seus pés bem assentes numa realidade concreta, independentemente do potencial quase onírico da sua observação.

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Fora de considerações sobre intencionalidade literária, temos Treblinka de Sérgio Tréfaut e Fantasia Lusitana de João Canijo, duas obras portuguesas onde o voz-off também é uma constante e onde este se manifesta quase exclusivamente na leitura de registos pessoais sobre guerras do passado. Chamamos a atenção a estes títulos, não como modo de recomendar obras semelhantes, mas como contrapontos à abordagem de Cartas da Guerra. Na obra de Tréfaut, a ilustração da palavra é evitada ao máximo, sendo que a discrepância e o vazio entre o conteúdo textual e sua expressão visual são modos de forçar a audiência a processar a informação e sobre ela refletir. No caso do documentário assinado por João Canijo, temos de novo o uso da discrepância como ponto focal da relação texto-imagem, sendo que aí temos algo mais próximo de um diálogo entre as duas visões diametralmente opostas do passado. Em Cartas da Guerra, esse diálogo antagónico nunca ocorre e esta é assim uma experiência muito mais passiva e mais interessada na fluidez lírica que no comentário histórico.

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Não que esse comentário seja completamente ausente. Temos, por exemplo, um momento fugaz em que se vislumbra uma fotografia de Salazar na latrina usada pelos militares e, noutra ocasião, um discurso na rádio de Marcelo Caetano é ouvido na banda-sonora enquanto vemos, à distância, a execução de revoltosos angolanos. Só que estes momentos não passam de insinuações de uma reflexão histórica que nunca é realmente conseguida na sua plenitude. Estando Cartas da Guerra assente quase unicamente na correspondência do jovem alferes-médico António, a distância e incompreensão para com as complexidades políticas e falta de proximidade com os angolanos é uma extensão orgânica do resto do filme, apenas sugerindo ao leve a mente de um jovem a ganhar nova consciência política. Aliás, a incompreensão, de Angola e do inferno da guerra, é uma das características fulcrais de Cartas da Guerra, onde o desespero de Lobo Antunes em estar preso em África, longe da sua amada, constitui a força motriz de todo o projeto.

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Tal como muita da crítica internacional tem gostado de apontar, Ivo Ferreira, ao suceder na sua construção de um filme singularmente baseado na correspondência de António Lobo Antunes e Maria José, acabou por criar barreiras que limitam as possibilidades intelectuais e representativas de Cartas da Guerra. Apesar disso, esta é uma obra onde se exibe uma proposta ousada e executada de modo belíssimo. O filme pode ficar aquém de outras explorações da guerra colonial no cinema lusitano, mas como uma elegia à paixão entre um jovem militar e sua esposa, Cartas da Guerra é uma inestimável e comovente joia.

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O MELHOR: Não querendo diminuir o trabalho dos outros artistas que contribuíram para o sucesso deste filme ou cair no cansado consenso crítico e popular, há que admitir que a fotografia de João Ribeiro é perfeitamente sublime.

O PIOR: Apesar do voz-off ser muito predominante, existem momentos de diálogos no filme, que, não obstante o bom trabalho do elenco, parecem sempre um tanto ou quanto supérfluos à proposta estilística do filme. Para além disso, essas incursões sugerem um realismo bastante direto e a possibilidade de um comentário exterior à perspetiva de Lobo Antunes que o resto de Cartas da Guerra simplesmente não suporta ou apoia.


 

Título Original: Cartas da Guerra
Realizador:  Ivo Ferreira
Elenco: Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira, Isac Graça, João Pedro Vaz
O Som e a Fúria | Drama | 2016 | 105 min

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