"Chamem-me Dolemite" | © Netflix

Chamem-me Dolemite, em análise

Eddie Murphy pode estar a caminho da segunda nomeação para o Óscar pela sua poderosa prestação na cinebiografia da Netflix, “Chamem-me Dolemite”.

É curioso examinar a alquimia de fama e personalidade que está em jogo quando a cinebiografia se intersecta com o veículo de estrela. Desde que a indústria cinematográfica americana se formatou enquanto máquina de celebridade, a criação de biografias como montra dos talentos de um ator é algo comum. Sempre que um grande nome se associa a um projeto deste tipo, começa-se logo a especular sobre a possibilidade do Óscar, por exemplo. Acontece que, quando uma celebridade dá vida a outra celebridade, o que é efetivamente homenageado não é simplesmente a estrela do passado, mas sim o talento da estrela do agora.

Mais facilmente nos apercebemos das especificidades de um ator, quando estas se subsumem ou entram em conflito com uma ideia já pré-concebida do papel. É mais fácil constatar os engenhos de Meryl Streep quando a vemos dar vida a Julia Child ou Margaret Thatcher do que quando ela interpreta figuras originais. Com a base de uma pessoa real e conhecida, há um meio de comparação assim como algo que nos permite evidenciar tanto a metamorfose do performer, como os pequenos trejeitos e particulares características que fazem dele uma comodidade popular.

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Tudo isto para dizer que “Chamem-me Dolemite” pode ser baseado na história de Rudy Ray Moore, mas o filme é tanto mais sobre Eddie Murphy do que sobre o comediante dos anos 70. De facto, há décadas que Murphy não tinha uma montra tão extraordinária para as suas habilidades e carisma. Não se trata de uma metamorfose camaleónica, mas sim uma evocação do passado filtrada através da persona de estrela do próprio Murphy. O melhor de tudo é que o ator não se deixa ficar por mimetismos superficiais ou charme vácuo, efetivamente minando o legado de Moore e o drama inerente à sua história.

Tão bom é Murphy, que alguns dos problemas do guião são ofuscados pela sua explosiva presença. No início de “Chamem-me Dolemite”, Moore é um cantor fracassado que agora trabalha numa loja discográfica. Num curto espaço de tempo, ele consegue mudar de carreira, torna-se num comediante e alcança sucesso imediato. Daí, ele torna-se numa estrela improvável do grande ecrã e transforma-se num ídolo irreverente do blaxploitation, género dominado por narrativas afro-americanas que dominou os cinemas nos anos 70. A sua personagem mais famosa é, pois claro, Dolemite.

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Todas estas transformações ocorrem sem grande transtorno ou percalço. Em termos de drama humano, é uma proposta um tanto ou quanto limitada que funciona melhor como pornografia de competência do que como uma narrativa empolgante. Não há uma estrutura rítmica que suporte tal evolução e os arcos de personagens são deformados pelos saltos cronológicos do filme. Com isso dito, quando estamos a ver “Chamem-me Dolemite”, nada disso interessa ou afeta a experiência do espectador. Assim é a grandeza de Murphy e, se formos honestos, de um dos melhores elencos secundários do ano.

Rudy Ray Moore é luminoso, seu humor é crasso e potente, sua presença é uma bomba que exige a atenção de todos os que o rodeiam. No entanto, também é sujeito a instantes de dúvida, a reflexões penosas e instantes de vulnerabilidade. No contexto desta cinebiografia, não há dúvida que Eddie Murphy tem o melhor papel, mas os outros atores não ficam por isso abandonados à mercê dos elementos. Wesley Snipes, por exemplo, finca os dentes numa paródia de pretensiosismo, um ator mainstream feito realizador da subcultura, um palhaço que faz rir pela sua seriedade sepulcral em fricção com o absurdo da situação.

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Num registo mais dramático, Da’Vine Joy Randolph traz pathos ao papel de Lady Reed, uma comediante e atriz que trabalhou, durante anos, ao lado de Moore. Ela tem algumas das falas mais divertidas do filme, mas está sempre a acrescentar notas de melancolia e secura ao fundo de cenas. Por seu lado, Tituss Burgess faz o melhor que consegue com uma caricatura hilariante e até lhe dá a aparência de uma personagem tridimensional. O mesmo e pode dizer de Keegan-Michael Key como um dramaturgo demasiado sério para o seu bem, de Kodi Smit-McPhee como um cineasta amador e Mike Epps e Craig Robinson como um compincha que apoia e desafia em igual medida. Basicamente, ninguém em frente à câmara dá um passo em falso.

Por detrás das câmaras, “Chamem-me Dolemite” não é tão imaculado. Já falámos de alguns problemas textuais, mas o grande pecado deste argumento é a condição formulaica da estrutura. Enfim, no que se refere a cenários, figurinos e maquilhagem, a situação é bem melhor. As confeções estilísticas de Ruth E. Carter são de particular aprumo e valem muitos aplausos à designer que, este ano, ganhou o Óscar por “Black Panther”. Menos inspirado é o trabalho do realizador Craig Brewer, se bem que ele se redime com o afeto que trespassa para com as suas personagens e para com o mundo que aqui recriou. “Chamem-me Dolemite” é um filme apaixonado pelo cinema, pelos excessos do blaxploitation e a ingenuidade da expressão artística. Há obras semelhantes mais sofisticadas, é certo, mas pouco metacinema nos faz sorrir tanto como esta comédia.

Chamem-me Dolemite, em análise
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Movie title: Dolemite Is My Name

Date published: 13 de November de 2019

Director(s): Craig Brewer

Actor(s): Eddie Murphy, Wesley Snipes, Da'Vine Joy Randolph, Keegan Michael-Key, Mike Epps, Craig Robinson, Tituss Burgess, Kodi Smit-McPhee, Barry Shabaka Henley, Chris Rock

Genre: Biografia, Comédia, Drama, 2019, 117 min

  • Cláudio Alves - 75
  • José Vieira Mendes - 60
68

CONCLUSÃO:

“Chamem-me Dolemite” é uma cinebiografia cómica que compensa as suas escolhas mais convencionais com um elenco e peras assim como um guarda-roupa exemplar. O filme é hilariante e Eddie Murphy é uma estrela renascida.

O MELHOR: Eddie Murphy e os figurinos coloridos de Ruth E. Carter.

O PIOR: Quanto o argumento é dependente das fórmulas comuns do drama biográfico.

CA

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