"Felizes Juntos" | © Jet Tone Production

Cinema com Orgulho | Felizes Juntos (1997)

Nos anos 90, o New Queer Cinema veio redefinir o que se podia esperar de filmes com temáticas LGBT+. Apesar de normalmente se considerarem obras anglófonas, o movimento expandiu-se por todo o mundo, com “Felizes Juntos” sendo um dos seus mais aclamados títulos. Estreado em competição no Festival de Cannes de 1997, o filme, também chamado “Happy Together” e “Chun gwong cha sit,” veio confirmar a genialidade de Wong Kar-Wai e valeu-lhe o prémio para Melhor Realizador na Croisette. Com Leslie Cheung e Tony Leung nos papéis principais, esta é uma obra-prima apaixonante que, em 2016, foi votado terceiro melhor filme LGBT+ de sempre pelo British Film Institute.

Para aqueles que pensam no cinema somente como arte narrativa, essa crítica do “estilo acima de substância” é muito comum. Trata-se de um cliché redutivo pois ignora o berço da sétima arte e, acima disso, revela desdém para com os seus fundamentos. Desde a sua génese, o cinema de Wong Kar-Wai tem-se revelado perfeito contra-argumento para tais dizeres. Afinal, é impossível considerar um filme do realizador sem se chegar à conclusão que estilo é substância, sendo que a forma audiovisual é o meio pelo qual se definem temas e ideias, pelo qual se transmitem emoções e se inspira transcendência.

Sua filmografia é um tesouro para qualquer cinéfilo com gosto formalista, estando assuntos de narrativa sempre subalternos à evocação de algo além das palavras, além da ação e reação. Pensemos no modo como Wong filma histórias de amor, sua especialidade e fonte de maior renome. Fá-lo através da exuberância plena, mecanismos estilísticos sobrepostos a tudo até que convertem o próprio ecrã numa expressão da alma apaixonada. A tela pulsa como um coração, estando sempre no limiar do exagero e da final desintegração do real. Sofre-se a overdose e agradecemos a golpada sensorial.

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© Jet Tone Production

Talvez por isso possamos definir essas histórias de amor como exemplos de Expressionismo num paradigma moderno, talvez até um Impressionismo cinematográfico. Entre os muitos romances, ora consumados ou castos, que Wong Kar-Wai trouxe ao cinema, nenhum é tão exemplar disso como aquele retratado em “Felizes Juntos.” Também é a união romântica mais complicada, até tóxica, formando um poema que tanto suscita deslumbramento quanto dor. É lirismo tonal num frenesim sentimental, aos saltos junto ao precipício da incoerência. Se lá cai, só acrescenta ao efeito da fita.

Wong, o diretor de fotografia Christopher Doyle, William Chang e Ming Lam Wong na sala de montagem rendem-se à euforia da forma, dando asas à imaginação naquele jeito que só se costuma ver em cinema experimental. De facto, ao estudar as histórias de bastidores, descobrimos uma produção endoidecida e em constante metamorfose, o filme nascendo num parto de improvisos. Aliás, chegado o começo da rodagem, Wong Kar-Wai só tinha um punho de certezas – as personagens e o cenário. Seria este último a capital Argentina, levando o realizador para fora da sua zona de conforto, quiçá atiçando ainda mais o seu impulso para brincar com o processo criativo.

Tudo começa no fim, quando a relação de Lai Yiu-Fai e Ho Po-wing se encontra moribunda, prestes a bater as botas. Em tempos, os dois homens emigraram de Hong Kong para a Argentina, inspirados pelo desejo de ver as Cascatas de Iguazu que terá nascido de um candeeiro animado. A quinquilharia é tão frágil como o elo dos amantes, separando-se quase que de imediato a seguir à chegada. Ambos ficam no país, mas seguem rumos diferentes – Lai trabalha num clube de tango e Ho ter-se-á virado para o trabalho sexual. É com o primeiro que a câmara mais se alia, resvalando para a memória de outros tempos de vez em quando, sempre expressa em preto-e-branco reluzente.

A vida presente, contudo, é dominada por amarelos e luz rubra e sente-se muito solitária. São duas almas perdidas e insulares num país que lhes é estranho. Talvez por isso, pela falta de Norte, os dois estão sempre a reunir-se. Na companhia um do outro, a condição de estar sozinho dissipa-se – talvez a companhia não seja boa, talvez o amor não seja verdade, mas é uma anestesia muito querida. Assim se estabelece um ciclo viciado e viciante, culminando na sua mais recente colisão. Aconteceu quando Ho aparece a Lai, espancado, sem amparo, suplicando a ajuda daquele que em tempos o amou. Essa guarida reacende as labaredas e lá se queimam os dois num amor químico, tóxico, venenoso.

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© Jet Tone Production

Não há vilões nem heróis, anjos ou diabos neste conto de gente maltratada. O apegamento cresce como bolor sobre o quotidiano dos dois, enclausurados num apartamento esquálido que, em certa medida, é o seu Éden. Esse espaço é o principal ponto de transformação para a fotografia de Doyle, repintando as suas paredes com luz colorida. Às vezes é verde ou vermelha, cor-de-rosa para indicar paixão, o amarelo doentio da pele cirrosa, o doirado dos ricos, azul molhado de noites tristes, cinza baça para a manhã fria e uma cama vazia. Dito isso, não há linearidade no uso simbólico, sendo que significados se alteram ao mesmo ritmo com que amor azeda em ódio.

No meio deste inferno que só é céu de vez em quando, uma nova amizade traz nova esperança, a luz que faz a sombra mais negra e atiça o desespero que já lá está. Essa figura fala num farol nos confins do mundo, um lugar onde as pessoas deixam os seus lamentos – como que um presságio de “Disponível para Amar.” Para lá, ele leva o choro de Lai, gravado numa cassete singela e talvez um milagre daí nasça. É certo que o amante mal-amado decide partir, um novo passaporte escarlate rimado com uma poça de sangue. Para trás deixa o apartamento e Ho, assombrado pelo fantasma de um amor tão forte quanto impossível.

Incapazes de serem felizes juntos, estes dois heróis pouco heroicos são um par que marca o espetador, suas mágoas lacerantes capazes de trespassar o ecrã para nos agarrar o espírito. Esse efeito devém das duas prestações formidáveis de Tony Leung como Lai e Lesley Cheung como Ho, mas é principalmente feito dos esquemas estéticos criados por Wong e sua equipa atrás da câmara. Como um palimpsesto de papel de parede, “Felizes Juntos” esboça vidas em fragmentos, detalhes físicos da passagem humana pelo mundo, pela memória de quem fica sozinho com as suas lembranças. É uma história de fantasmas, um assombro, um beijo meio-esquecido condenado ao sonho inconsciente. É tão belo que dói, uma obra-prima de cinema queer com título irónico e um sorriso melancólico.

“Felizes Juntos” está disponível para streaming no catálogo da FILMIN Portugal. Na mesma plataforma, poderás encontrar outros clássicos de Wong Kar-Wai como “Disponível para Amar” e “Chungking Express.”

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