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Terra de Deus, em análise

A Films4You dá a conhecer “Terra de Deus”, uma obra do cineasta Hlynur Pálmason!

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No final do Século XIX, a Islândia permanecia sob o domínio colonial do Reino da Dinamarca. Durante esse período, o agravamento das condições climáticas nesta parcela insular da Europa situada no Atlântico Norte, a meio caminho entre o continente e a Gronelândia, obrigou muita da sua população a emigrar para o Novo Mundo, nomeadamente para o Canadá. Por esta altura acentuou-se igualmente o sentimento nacionalista, polarizado por volta de 1850, facto que esteve na origem do movimento de luta pela independência liderado por Jon Sigurosson (1811-1879). Em 1874, a Islândia viu a Dinamarca conceder-lhe uma constituição e um governo, não obstante limitado nos seus poderes (só após numerosas convulsões internas e externas, entre outras as ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, foi alcançada a verdadeira independência da Islândia, que optou por uma constituição republicana, a 20 de Junho de 1944).

ENCONTRAR DEUS NA TERRA DOS HOMENS…!

Terra de Deus
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Para os devidos efeitos, o argumento de VANSKABTE LAND (TERRA DE DEUS), 2022, belíssima longa-metragem escrita e realizada por Hlynur Pálmason, situa a acção no final do Século XIX,  numa época em que a Dinamarca exercia o seu poder e influência sobre as populações locais, como já dissemos. Um dos pilares fulcrais dessa influência seria concretizado, no domínio das relações espirituais, com a programada disseminação da fé luterana que, aliás, ainda hoje constitui a religião dominante. E aqui entramos na matéria deste filme que, nas suas primeiras sequências, nos dá conta da missão atribuída a um jovem pastor, Lucas (interpretado por Elliott Crosset Hove). De acordo com as instruções recebidas do seu mentor e superior hierárquico, partiria para uma aldeia do Sudeste da Islândia onde devia supervisionar a construção de uma igreja e permanecer no local como pastor da pequena comunidade de islandeses e dinamarqueses instalada há já alguns anos naquelas remotas paragens. Para lá chegar seguirá por via marítima até uma zona costeira onde os marinheiros o deixam numa praia de areia cinzenta, vulcânica, onde o homem de Deus confronta a sua dimensão humana com o esplendor da Natureza. Misto de surpresa e receio face ao que se perfilava em estado bruto diante dos seus olhos, a presença soberana e dominadora de uma paisagem quase intacta, quase irreal, na complexa e secular variedade da sua antiga dimensão material. Lucas não parecia alheio aos desafios que ia encontrar, uma vez que decidira percorrer não a via mais directa mas a mais ousada e difícil para atingir o seu destino final. Deste modo, preferiu optar pelos magníficos mas sinuosos caminhos da ilha atravessando, passo a passo, uma nova realidade que até ali apenas imaginara. Paralelamente ao que era a sua missão de carácter religioso, chamou para si uma outra missão: registar em fotografias as gentes e paisagens, num esforço complementar ao do propósito original da viagem. Projecto que poderia resultar, muito provavelmente, num primeiro ensaio visual da região do ponto de vista geográfico e antropológico. De facto, logo ao início será referido que o argumento e os acontecimentos que preenchem uma parte considerável da acção de TERRA DE DEUS foram inspirados pela descoberta de um conjunto de fotografias obtidas em condições similares. Pretexto puramente ficcional para desenvolver a narrativa usando de forma criativa uma ideia sedutora sobre um alegado achado arqueológico. Felizmente, nunca veremos o simulacro das referidas fotografias, o que de certo modo destruiria o manto de mistério que as rodeia até ao fim, mas apenas os positivos que por contacto o pastor obtinha a partir dos negativos em chapas de vidro onde fixava as imagens pela aplicação de processos químicos, uma emulsão de gelatina e sais de prata. Estas fotografias serão processadas ao longo do filme como parte integrante do percurso de Lucas, correspondendo a escolhas muito pessoais inerentes ao perfil da personagem concebida pelo realizador e argumentista, ou seja, o que veremos será o resultado imagético daquilo que o autor quis que fosse a noção de ficção sobre uma ficção. Seja como for, para obter as referidas fotografias, Lucas precisou de atravessar uma vasta região com um pesado equipamento às costas, que carregou ao jeito de uma mochila. No caminho irá ser apoiado por um guia local, o veterano e experimentado Ragnar (fabulosa interpretação do actor Ingvar Sigurdsson) que, por sua vez, vinha apoiado por um grupo de homens e uma mulher que, correspondendo porventura ao posicionamento social dos seus membros, irá manter-se discreto e submisso ao longo do percurso. Lucas, por seu lado, veio acompanhado de um intérprete (Hilmar Gudjónsson), com quem irá estabelecer uma relação ambígua, onde quase se destapa o véu de um desejo maior de aproximação. Pressentimos em Lucas o sentimento de não querer contar apenas com o seu companheiro para a óbvia e mera função de o ajudar a comunicar com os outros. Muito clara será igualmente, ao longo da acidentada viagem, o modo como certas contradições se avolumam no plano do seu comportamento. Uma espécie de arrogância feita de muita soberba e insegurança face a uma crescente desconfiança dos outros que o consideram um estrangeiro, e pior, um inadaptado. Princípio de futuros conflitos, uns mais surdos, outros mais audíveis, entre o pastor dinamarquês e os seus interlocutores islandeses. Mais acentuados ainda a partir do momento em que o intérprete morre e deixa Lucas mais isolado no quadro de relações humanas que até ali e com algum esforço aceitara incorporar na sua praxis quotidiana. Perante a sistemática inquietação de não compreender a língua islandesa, aquele novo mundo que o rodeia agiganta-se e desenha sombras negras num caminho que ele pensava ir ser luminoso. No fundo, Lucas não consegue ler o mais íntimo da alma de um povo, que procura dominar com sobranceria, inventando ordens arbitrárias com o ilusório objectivo de controlar os acontecimentos e os obstáculos naturais da sua peregrinação como, por exemplo, a decisão de atravessar um rio contra a vontade de Ragnar. Rio onde a pesada cruz que colocara no dorso de um cavalo se perde ao cair nas águas, sendo arrastada pela corrente. Presságio de incidentes futuros. Na verdade, num momento crítico da sua relação com Ragnar, Lucas atinge uma situação limite e mostra-se incapaz de exercer a sua função pacificadora enquanto pastor ao recusar corresponder a um conjunto de interrogações existenciais que preocupavam o velho Ragnar (que, diga-se, aproveitara uma certa intimidade para o provocar), acabando os dois homens por se debaterem de forma violenta, com consequências fatais. De qualquer modo, o incidente não deixava esquecer que, mesmo no seio das rotinas básicas da aldeia, rodeado de pessoas que aceitavam com bonomia a presença de Lucas, ele era incapaz de se integrar por completo na sua especificidade étnica e cultural. Será sempre como um intruso que se apresenta na vida da comunidade que devia orientar no plano espiritual. Intruso mesmo perante o seu anfitrião dinamarquês (Jacob Hauberg Lohmann), típica figura do patriarca que, depois de o acolher em casa, o remete para uma dependência exterior, procurando evitar o contacto de Lucas com a filha mais velha, Anna (Vic Carmen Sonne). Pouco a pouco, Anna, que está naquela idade em que as moças por ali casavam, não descarta a possibilidade de seduzir Lucas que, por sua vez, não oferece grande resistência. Tentação da carne que ditará o futuro de ambos e o fatal e derradeiro destino de Lucas na TERRA DE DEUS.

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Terra de Deus
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Durante este devaneio algo pueril de um amor impossível no quadro de uma sociedade conservadora e repressora desse e de outros desvios a um conjunto de normas impostas pela moral vigente, Lucas irá conhecer a irmã mais nova da sua improvável amada, Ida (Ída Mekkín Hlynsdóttir). Menina de espírito livre, perfeita antítese de Lucas e da família a que ela pertence. Trata-se de uma jovem adolescente, despreocupada mas consciente da sua condição de futura mulher, que sabe viver em comunhão com a Natureza, que sabe respirar a felicidade que partilha sem pedir nada de especial em retorno. Mas ela sabe igualmente que esta TERRA DE DEUS, seja de Deus ou do Diabo, nunca será a prometida, nem sequer a morada de eleição dos seus mais íntimos desejos. Numa derradeira sequência do filme, Ida irá realizar essa almejada síntese do material com o espiritual, proferindo singelas mas certeiras palavras que se podem ouvir como uma verdadeira oração perante as adversidades que subsistem e que, no fundo, estão na base de um crime. Ela sabe que será herdeira daquele pedaço de paraíso. Mas, para que esse legado possa alimentar os seus sonhos e os das gerações vindouras, necessita compreender e preservar o equilíbrio entre os ciclos da vida e da morte. Por isso, debruçada sobre os restos mortais do homem que não conseguiu construir para si e para os outros um porto seguro nesse mundo complexo, voltado para o imenso oceano mas cercado pelos limites das suas fronteiras humanas, diz: “Tudo vai ficar bem. Não tarda, as flores e a erva começarão a nascer e então fará parte delas”. Pequena pausa. Os olhos húmidos olham para baixo e para fora de campo. Plano próximo, ligeiro movimento sem mudança de escala. Pausadamente, Ida acrescenta: “E isso é lindo”. De seguida, plano geral, monta a cavalo e regressa a casa na direcção da objectiva. Como pano de fundo, um céu pintado de mil cores como se fosse um imenso ciclorama de luz crepuscular. No solo, a erva e as flores rasteiras da estepe começam a despontar, anunciando uma nova estação. Na linha do horizonte a visão imponente de um glaciar. Final deslumbrante que nos dá a visão cósmica da TERRA DOS HOMENS, onde já não se invoca o nome de Deus em vão.




Terra de Deus, em análise

Movie title: Vanskabte Land

Date published: 5 de June de 2023

Director(s): Hlynur Pálmason

Actor(s): Elliott Crosset Hove, Ingvar Sigurdsson, Vic Carmen Sonne

Genre: Drama, 2022, 137min

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse e ainda a magnífica Direcção de Fotografia de Maria von Hausswolff, que aqui usa com grande eficácia o formato clássico 1:33:1. Opção que nos leva a especular se os autores não queriam integrar no plano visual o ratio das placas fotográficas que alegadamente serviram de inspiração para o filme, assim como a proporção das provas que nele vemos serem produzidas. Deste modo, a realização do islandês Hlynur Pálmason faz concentrar o olhar do espectador numa permanente dialéctica entre o que adivinhamos ser a dimensão maior das paisagens naturais circundantes (que normalmente fariam apelo a um formato largo) e as circunvoluções da própria acção quando, no decorrer da mesma, somos convidados a sentir e imaginar o que se passa ou não fora de campo. Trata-se de fazer gerar ao longo do visionamento de TERRA DE DEUS, sobretudo num grande ecrã e numa escala maior do que a vida, a percepção de um espaço natural que nos ultrapassa e que não podemos nem devemos querer dominar na globalidade, fazendo subsistir nele um espaço concreto definido pela articulação subjectiva da linguagem cinematográfica. Trata-se da visão de uma TERRA DE DEUS que só faz sentido quando passa a ser parte integrante da TERRA DOS HOMENS.

CONTRA: Nada.

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