"Fanny e Alexander" | © Cinematograph AB

Cinema Natalício | Fanny e Alexander (1982)

Considerado por muitos como o último grande filme de Ingmar Bergman, “Fanny e Alexandre” é um conto extremamente pessoal passado na Suécia do virar do século. Produzido para a TV sueca, mas editado primeiro para cinema, a obra arrasou as expetativas, anunciando-se como trabalho estranhamente acessível para o mestre realizador. Nos Óscares de 1984, “Fanny e Alexander” ganhou quatro estatuetas, para Melhor Fotografia, Cenografia, Figurinos e Filme Estrangeiro. Além disso ainda recebeu nomeações adicionais pela realização e argumento original. Recentemente, o título apareceu na lista dos melhores filmes de sempre da Sight & Sound, ocupando o 53º lugar na votação dos cineastas.

Quando tinha nove anos, Ingmar Bergman trocou a sua coleção de soldadinhos de chumbo pela lanterna mágica do irmão. Essa corriqueira ação viria a mudar o curso da sua vida, iniciando uma obsessão com a imagem capturada, com a criação do espaço cénico, com o espetáculo. Tais gostos perdurariam até à morte do artista, definindo-lhe a existência tanto na esfera íntima como em termos de legado público. De certa forma, a semente para “Fanny e Alexander” foi plantada nesse gesto, tendo só florescido décadas depois naquele que se pode considerar o trabalho mais autobiográfico que Bergman alguma vez dirigiu. Para outros realizadores, inclusive seu filho, ele viria a escrever argumentos mais explícitos em termos factuais, mas nenhum outro projeto sabe tanto a confissão, a um sonho sobre infâncias perdidas.

Diríamos mesmo que mais se descobre sobre o autor vendo este filme do que ao ler a sua muito celebrada autobiografia intitulada “Lanterna Mágica.” É certo que o livro dá contexto aos detalhes narrativos, suas referências e desvios do real, mas é na tela que a emoção desnuda melhor se transmite. Projetados no grande ecrã, os segredos de Bergman espelham-se através de uma autoficção a resvalar na fantasia. Trata-se daquele eterno fado de quem fala verdade a mentir, sendo mais honesto através do engenho artificial do que pela via direta. Afinal, muito podemos ler sobre a relação atribulada de Bergman com seu pai, mas nada nos faz sentir o peso desse laço quebrado de modos mais viscerais que a história contada em filme.

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O mesmo se aplica a inúmeros outros aspetos, há muito crescendo no trabalho do artista até que “Fanny e Alexander” lhe deu oportunidade do manifesto na máxima plenitude. Fugindo um pouco ao melodrama familiar, ponderemos a primeira imagem da fita. Encontramos o pequeno Alexander enquadrado por um proscénio em miniatura, seu olhar vindo diretamente dos bastidores. Ele é como uma figura divina para o teatro em miniatura, mas também nos é apresentado enquanto um ator no espetáculo da vida. Depressa descobriremos que ele pertence ao clã Ekdahl e que os pais passam o tempo a trabalhar numa pequena companhia teatral. A arte de contar histórias corre-lhe no sangue e é isso mesmo que Alexander é – um contador de histórias.

Fanny, a irmã mais nova, será sua maior audiência, sempre silenciosa ao seu lado ouvindo as fantasias que outros poderão considerar mentira. Só que inventar narrativas é como Alexander pondera o seu mundo, algo natural e capaz de redefinir a matéria da própria realidade. Talvez por isso lhe apareçam fantasmas e espectros da Morte – ora produto de uma imaginação fértil ou a porosa barreira entre o agora e o que vem depois a desfazer-se perante a mente criativa. Não que o menino seja figura propriamente proactiva. Na verdade, não obstante o seu título e o papel das crianças na estrutura do épico, “Fanny e Alexander” raramente se deixa ancorar pela experiência infantil. Eles são só um par de linhas na tapeçaria que Bergman aqui tece.

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Em capítulo primeiro, vemos o Natal idílico dos Ekdahls e seu serão em casa da matriarca mais velha, uma senhora meiga que vive em pecado com um burguês judeu. A câmara do lendário Sven Nykvist percorre os espaços herméticos do seu casarão, delineando quadros de rubros encarnados e outros tons de festa invernal. Há tanto para ver em cada composição, tanto esplendor e calorosa beleza, um cheirinho a burlesco e um trago de marotice. Veja-se o detalhe humano que foge à idealização, pequenas máculas de adultério doloroso, casamentos à beira de desabar e tensões intercalasses. Bergman filma esta família com amor, mas tal afeto não apaga complexidades. Até o seu avatar na história – Alexander – não escapa a um retrato multidimensional, por vezes feio.

Como que em resposta maldosa à folia do Natal, a Morte manifesta-se no capítulo seguinte, ceifando a vida do pai extremoso e deixando os meninos titulares meio-órfãos. Estas sequências são estrondosas na sua severidade evocativa, materializando o modo como uma criança poderá entender tal tragédia. Só que o homem que morreu não era bem o pai que Bergman teve em vida, mas sim um sonho risonho. O padrasto de Alexandre estará muito mais próximo da realidade sentida pelo realizador enquanto filho de um religioso austero. O bispo Edvard vem mudar a narrativa, forçando o conforto escarlate a desaparecer perante rigidez Calvinista, cenários despidos e laços de ternura cortados entre sua esposa e o resto da família. Tudo é feito em nome da fé e da retidão moral, pois claro.

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Teatro, sexo, morte, e agora religião – é como se o texto se formasse enquanto coletânea dos temas preferidos do realizador, aqui retorcidos com ironias autorreflexivas. No extremo, poder-se-ia declarar que Ingmar Bergman aqui fez um filme sobre tudo, sobre o que é estar vivo segundo a sua perspetiva e o que significa para si ver o mundo através dos olhos de um artista. Também há traços de trama Dickensiana, não fosse o anti sentimentalismo que todos os cineastas envolvidos trazem ao projeto, renegando alguns dos erros habituais da autoficção. Nas suas passagens mais cortantes, “Fanny e Alexander” é cruel sem catarse ou lição, somente espelhando a negrura que tanto afeta a nossa passagem temporária pelo mundo.

Ou será que o filme é mera expressão da Humanidade em toda sua variedade circense, bem e mal unidos em matrimónio? Quiçá toda uma galáxia de significado possa aqui existir, a especificidade pessoal enquanto veículo para o universalismo mais puro. Auxilia essa leitura o facto de que Bergman seguiu sensibilidades meio populistas na conceção deste que planeou ser o seu último filme (mas não foi). O apelo à emoção bruta é inegável, trespassando por entre o formalismo assombroso com que a câmara é usada, tanto enquanto observadora celestial como moduladora de verdades. A obra-prima confirma-se na sua grandiosidade, incluindo também algumas das mais belas prestações na filmografia daquele que deverá ter sido o melhor realizador de atores na História do Cinema. Enfim, “Fanny e Alexander” é um milagre e sua existência serviria, por si só, como justificação para a sétima arte. Só de pensar nas suas maravilhas, vêm lágrimas aos olhos. Que espanto!

“Fanny e Alexander” está disponível para aluguer através da MEO. Também podes encontrar o filme em formato físico, editado em DVD pela Leopardo Filmes.

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