11ª Festa do Cinema Italiano | Cinema Paraíso, em análise
“Cinema Paraíso” de Giuseppe Tornatore é um dos maiores clássicos do cinema italiano e está de volta aos cinemas numa versão restaurada. Como parte da presente edição da Festa do Cinema Italiano, o filme foi também exibido numa sessão especial.
Existem, nos anais da história do cinema, inúmeras obras-primas sobre o processo pelo qual um objeto cinematográfico é criado. Em muitos destes e outros projetos, existe uma vaga preocupação em representar-se também alguma da magia inerente ao ato de ver cinema, mas tais impulsos normalmente assumem a forma de exercícios de referências, mais calibradas para as sensibilidades de cinéfilos ferrenhos ou mesmo académicos do que para o espectador comum. Nada disso é negativo, somente um fenómeno que ajuda a tornar filmes que fogem à sua regra em pequenas raridades merecedoras de celebração especial. Nesse pequeno panorama de filmes sobre o espectador, talvez o mais famoso exemplo seja “Cinema Paraíso”, a adocicada sobremesa de nostalgia melancólica que levou o realizador Giuseppe Tornatore e o produtor Franco Cristaldi até ao palco dos Óscares em 1990, onde receberam a estatueta para Melhor Filme Estrangeiro em nome de Itália.
Agora, três décadas depois da sua estreia italiana, “Cinema Paraíso” volta aos cinemas numa versão restaurada. Audiências contemporâneas têm a possibilidade de verem esta carta de amor ao visionamento de filmes dentro da sala de cinema, um espaço que o argumento de Tornatore e Vanna Paoli tudo faz para sacralizar. Não que, verdade seja dita, qualquer sala atual se assemelhe ao ambiente apresentado nos flashbacks mais antigos do filme, com censores religiosos e uma cabeça de leão a vomitar a projeção para uma audiência deleitada. Afinal, tal realidade é a da Sicília nos anos 40 e, apesar de “Cinema Paraíso” não ser, de todo, isente do tipo de miopia causada por excessos de sentimentalismo e nostalgia, é também uma obra fortemente melancólica e essa melancolia nasce do conflito entre a perfeição cristalizada em celulóide e a realidade vivida pelas personagens. O modo como, devido a evoluções tecnológicas, comerciais e culturais, as pequenas salas de cinema da Sicília vão desaparecendo para dar lugar a grandes instituições desumanas é um dos manifestos dessa dinâmica.
Esta é a história de um realizador de cinema que, nos anos 80, regressa à sua terra natal quando sabe que o seu mentor e amigo de infância morreu, despoletando também uma sequência de flashbacks. O mentor do rapazinho, que então dava pelo nome de Toto, foi Alfredo, o projecionista do cinema titular, lugar onde o miúdo passava todas as horas livres perdido na glória projetada através da boca do leão. Inicialmente, a relação dos dois é tempestuosa, mas a rabugice do adulto depressa se transmuta no carinho de um avô carrancudo e Alfredo ensina Toto a manusear o projetor. Graças a esses ensinamentos, Toto torna-se no projecionista da comunidade, depois de um acidente trágico que resultou na cegueira do projecionista mais velho. Apesar de tais problemas, Alfredo é ainda capaz de apoiar o seu aprendiz, mesmo em questões do coração, quando Toto se apaixona pela primeira vez.
Esse romance torna-se no pilar central do edifício emocional do filme, sendo pintado pela memória de Toto adulto como o amor de uma vida. Pela sua parte, Tornatore dá asas à sua imaginação, quase apagando os aspetos mais subdesenvolvidos e forçosos do romance no argumento com simples espetacularidade cinematográfica. É também aqui que Tornatore e companhia apuram o seu exercício em nostalgia fílmica e começam a encontrar nuance na sua celebração elegíaca. Dizemos isto pois o romance de Toto e Elena é assumidamente o produto de um mecanismo cinematográfico dentro e fora da memória nostálgica, dentro e fora do contexto narrativo e dentro e fora do próprio “Cinema Paraíso”.
Toto, que cresce com as constantes citações cinematográficas de Alfredo no ouvido, apaixona-se por Elena através do ato de a filmar com uma câmara de vídeos caseira e a ver como a heroína do filme da sua vida, ativamente narrativizando a existência de si mesmo e desta jovem. A efetiva história de amor dos dois jovens é guiada pelo artifício e estruturas narrativas do cinema clássico, incluindo até a separação forçada pela autoridade de um pai tirano. Não há nada de orgânico neste romance meio obsessivo de Toto e a audiência acaba por acreditar na genuinidade do seu sentimento não graças à verosimilhança psicológica das personagens, mas à sonoridade romântica da banda-sonora de Ennio Morricone e aos outros mecanismos manipuladores de Tornatore.
Infelizmente, devido a uma reação comercial pouco favorável em Itália, existem várias versões deste “Cinema Paraíso” e a mais popular é também a mais curta e ideologicamente simples. Com 123 minutos, esta narrativa é intrinsecamente distinta do corte original de Tornatore, que tem quase mais 50 minutos de material. Na versão curta, a história de amor acaba por viver no limbo da perfeição trágica, permanecendo cristalizada na imagem de dois jovens atraentes, loucamente apaixonados e separados por um mundo injusto. Na versão original, contudo, Toto e Elena encontram-se em adultos, têm um encontro tórrido e, após uma conversa noturna, apercebem-se que talvez o seu amor não tenha sido aquela perfeição cinematográfica destinada a superar qualquer obstáculo e triunfar heroicamente.
Toto também descobre aí a manipulação de Alfredo, seu mentor, e a audiência é confrontada com a suprassuma fricção entre o nosso mundo e a beleza idealizada do cinema, duas realidades que se complementam e influenciam, mas que são também intrinsecamente incompatíveis. Por isso mesmo, o lendário final de “Cinema Paraíso” é mil vezes mais complexo e perturbador na sua versão original. O cenário superficial é o mesmo, no entanto, com Toto a ver todos os beijos, abraços e vislumbres de nudez que Alfredo colecionou ao longo dos seus anos a cortar filmes às ordens do padre da aldeia. Só que, numa das versões, testemunhamos um realizador a ser relembrado da magia de ser espectador, ao mesmo tempo que a maravilha do cinema lhe traz lágrimas e sorrisos à cara durante o luto do seu mentor. Na outra, vemos algo muito diferente.
No corte original de “Cinema Paradiso”, o espectador é obrigado a sacrificar tal passividade, sendo confrontado com um dilema. Depois de sermos postos a par das manipulações de Alfredo, com a falta de glória romântica entre Toto e Elena, é difícil não ver o romance projetado, ou talvez até todo o cinema escapista e idealizado, como uma mentira. Ao mesmo tempo, a prestação de Jacques Perrin como o protagonista adulto, a montagem de Mario Morra, as melodias de Morricone e a sensibilidade de Tornatore impõem à audiência uma visão deste momento como algo catártico e positivo. O espectador, cuja experiência é tantas vezes glorificada por esta belíssima história é assim convidado a racionalizar estas duas realidades e, pela insistência do realizador por detrás das câmaras, a encontrar na natureza intrinsecamente ilusória do cinema, algo belo e transcendente.
Muitos cineastas tentaram encontrar o “real” através da sua câmara. Tal processo, muitas vezes envolveu a desconstrução do ato de fazer cinema e o apontar das câmaras para a criação das obras em si, para longe das salas e rumo ao plateau. Outros artistas, especialmente os grandes vanguardistas europeus, cuspiram em tais noções de realidade e fizeram cinema que celebrava o artifício, embriagando-se em generosas quantidades de cinismo e ironia. Apesar da geral lamechice da história de “Cinema Paraíso”, Giuseppe Tornatore nega ambas essas abordagens, preferindo sinceridade sentimental sem ponta de ironia, sem sacrificar uma visão do cinema simultaneamente ciente da sua falsidade e apaixonada pela sua espetacularidade ilusória. Sim, a maravilha que vemos diante de nós nas salas de cinema em nada tem que ver com a nossa vida, mas isso, diz-nos “Cinema Paraíso”, é a razão pela qual é importante e merecedora do nosso amor.
Cinema Paraíso, em análise
Movie title: Nuovo Cinema Paradiso
Date published: 6 de April de 2018
Director(s): Giuseppe Tornatore
Actor(s): Salvatore Cascio, Marco Leonardi, Jacques Perrin, Philippe Noiret, Agnese Nano, Brigitte Fossey, Antonella Attili, Pupella Maggio
Genre: Drama, 1988, 123 min
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Cláudio Alves - 90
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Filipa Machado - 100
CONCLUSÃO
“Cinema Paraíso” é uma carta de amor ao ato de ver filmes. Na sua história, tão romântica como trágica, testemunhamos a glória escapista do cinema clássico. Ao mesmo somos convidados a examinar a falsidade dessa mesma glória e sua intrínseca incompatibilidade com o caos da vida, por muito que tentemos domá-lo com estruturas narrativas tiradas da ficção. O clássico de Guiuseppe Tornatore não perdeu nenhuma da sua magia nas últimas décadas.
O MELHOR: A banda-sonora de Ennio Morricone, especialmente durante os inesquecíveis momentos finais do filme.
O PIOR: A simplicidade ideológica que a versão mais curta impõe ao espetador. Tirando isso, o maior problema do filme devém da sua indulgência para com os seus elementos mais adocicados, nomeadamente a prestação infantil de Salvatore Cascio.
CA
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