O Beco das Almas Perdidas © 20th Century Studios

Classic Fever | O Beco das Almas Perdidas (1947), de Edmund Goulding

Na semana em que estreia a obra de Guillermo del Toro, relembramos “Nightmare Alley – O Beco das Almas Perdidas” o filme original de 1947. 

Passaram 75 anos anos desde a estreia de “O Beco das Almas Perdidas” de Edmund Goulding e precisamente na semana em que estreia o remake de Guillermo del Toro queremos ajudar-te a descobrir esta obra que surgiu numa década importante para o género do film-noir em Hollywood.

Nightmare Alley
Nightmare Alley | © Searchlight Pictures / Kerry Hayes

Em primeiro lugar, se não fosse o novo filme de Guillermo del Toro provavelmente este filme teria passado despercebido aos espectadores portugueses. A sua estreia em Portugal aconteceu em julho de 1949 e poucas foram as vezes em que passou na televisão ou teve sequer direito a uma versão em DVD.

Mesmo com a restauração levada a cabo pela The Criterion Channel, “O Beco das Almas Perdidas” parece um pouco esquecido entre o público nacional. Vamos conhecer esta obra e as razões que fazem dela um clássico imprescindível na tua lista.




O Beco das Almas Perdidas
O Beco das Almas Perdidas © 20th Century Studios

O que vou relembrar de “Beco das Almas Perdidas” hoje?

“O Beco das Almas Perdidas” (1947) será maioritariamente relembrado por ser o filme original da obra do visionário realizador mexicano Guillermo del Toro. Para outros, será o filme mais medíocre de Edmund Goulding (1891 – 1959), um cineasta do cinema clássico, cuja obra acaba por ser envolvida pelo sistema cinematográfico de Hollywood e não tanto classificado como um autor.

Foi ele que realizou por exemplo o profundo  “Vitória Negra”, um dos clássicos em casa já abordados pelo nosso crítico de cinema Cláudio Alves, e também foi ele o responsável por orientar  Greta Garbo, John Barrymore, Lionel Barrymore, Joan Crawford, Lewis Stone e Wallace Beery um elenco de luxo no filme “Grand Hotel”. Ambos os filmes, juntamente a “O Fio da Navalha /The Razor’s Edge” (1946) seriam todos nomeados ao Óscar de Melhor Filme, porém Edmund Goulding nunca concorreu ao Óscar de Melhor Realizador, empatado com Jack Conway, realizador de “A Tale of Two Cities” (1935), por ter feito o maior número de filmes nomeados ao Óscar principal sem receber uma nomeação a melhor realizador.

Além do historial de prémios, em “O Beco das Almas Perdidas“, o cineasta americano dirigiu Tyrone Power, conhecido por tantos pelo seu desempenho em “Testemunha de Acusação” (Billy Wilder, 1957) e as atrizes Joan Blondell, Coleen Gray e Helen Walker. Apesar do potencial destas estrelas, o filme acabou por ser considerado “obra maldita”, uma vez que carreira de Edmund Goulding rapidamente entraria em colapso e acabaria por falecer em 1959. Ainda mais trágico, meses antes do início das filmagens Helen Walker sofreu um acidente horrível que resultou na morte de um homem. A atriz seria absolvida por conduzir com álcool no sangue, mas a sua reputação foi gravemente danificada. A sua mansão foi alvo de um incêndio em 1960, que ainda lhe valeu o apoio da comunidade cinematográfica de então. Já longe do mundo das celebridades, Helen Walker morreu com apenas 47 anos, vítima de cancro, em 1968.




O Beco das Almas Perdidas
O Beco das Almas Perdidas © 20th Century Studios

Mas afinal do que se trata?

O ambicioso Stanton “Stan” Carlisle trabalha num circo como assistente da vidente Zeena Krumbein, cujas habilidades advêm de uma série de golpes feitos com o marido alcoólatra Pete. Stan tem um caso com Zeena [apenas subtendido], que lhe ensina um código secreto, contudo o protagonista começa a desenvolver um caso amoroso com outra colega, Molly e juntos começam a sua pequena empresa dentro da classe burguesa norte-americano. A partir daí, começa a sua aventura por uma teia de intrigas, que irá levá-lo ainda a cruzar-se com a implacável psiquiatra Lilith Ritter.

A personagem de Stan é interpretada por Tyrone Power no filme original, enquanto no remake é por Bradley Cooper; Zeena é interpretada por Joan Blondell e no remake por Toni Colette. Neste filme Coleen Gray dá vida a Molly e no remake a tarefa coube a Rooney Mara. Por último, Helen Walker é Lilith Ritter, a quem Cate Blanchett dá vida no novo filme.

O trailer de “O Beco das Almas Perdidas” de 1947 pode ser visto abaixo.




Porque não devo perder Nightmare Alley?

Toni Collette
Toni Collette | ©20th Century Studios

Muitos dizem que “O Beco das Almas Perdidas” é um film-noir que ajudou Edmund Goulding a demarcar-se do sistema, embora o filme seja produzido e distribuído pela 20th Century Fox, e baseado no best-seller do mesmo nome de William Lindsay Gresham que despertou a atenção do presidente do estúdio, o magnata Darryl F. Zanuck. De qualquer forma, F. Zanuck detestou o filme que viria a retirá-lo da circulação em salas de cinema. Com uma narrativa polémica, é mesmo curioso perceber como a obra passou por este homem todo-poderoso e até pelos membros da censura.

O seu protagonista não é um herói, mas um puro charlatão, um ganancioso e falso vidente que não vê meios para atingir os seus fins. Aqui o circo onde realiza as suas ‘vigarices’ não é sinónimo de diversão, mas de horror e soberba. Não o percebemos literalmente, mas percebemo-lo na sua mente. Para tudo isso, a equipa técnica de “O Beco das Almas Perdidas” e o diretor de fotografia Lee Garmes, jogam muito com as luzes em tom expressionista, como era habitual para a época num filme a preto e branco deste género.

Na trama, somos apresentados a um lugar misterioso, onde os indivíduos marginalizados buscam atingir os seus desejos. Obviamente, é claro em toda a narrativa de “Nightmare Alley” que o protagonista é um vigarista. Curiosamente ninguém conseguia imaginar Tyrone Power no papel de vilão, o que segundo os críticos da época, terá levado o filme ao fracasso junto do público. De qualquer maneira, este é um dos melhores desempenhos do ator que morreu aos 58 anos, após um acidente no set de rodagem de “Salomão e a Rainha de Sabá” (King Vidor, 1959). 

Além disso, “O Beco das Almas Perdidas” lida com as ambições dos americanos, com o “pesadelo americano” como lhe chama Guillermo del Toro. Afinal quanto mais se soube, maior é a queda.

A obra parece querer aproximar ainda a corrupção à ilusão, que pode assumir uma perspetiva política ou até religiosa. Quando fantasiamos, quando cremos em algo divino somos totalmente enganados. Uns deixam-se levar pela mentira, outros não querem ser estúpidos. E há sistemas que beneficiam com isso, seja um partido, uma Igreja ou um indivíduo singular. Para atingir o sonho americano é preciso trabalhar arduamente, mas às vezes é também preciso ser perspicaz e aproveitar a sabedoria dos outros.

Stanton é um desses casos, mas aos poucos perceberá que a entidade divina, o sentido de causa-efeito da trama, estará presente na sua vida. O seu comportamento cínico e céptico começa a ficar visível para si mesmo e isso acontece a cada momento do relacionamento com as três personagens femininas, Zeena, Molly e Lilith. Uma delas simboliza a femme-fatale que conseguirá estar ao nível de Stanton, ao atuar sempre sem escrúpulos.

“O Beco das Almas Perdidas” acaba por refletir algum do contexto da época de 1940, afinal estávamos nos anos do pós-Segunda Guerra Mundial, em que a América e sobretudo alguns homens dominados pelo trauma, drogas e alcoolismo não conseguiam encontrar um lugar no mundo, na sociedade capitalista que queria recuperar à pressa. Em Stan Carlisle há um medo de ser descoberto, mas ainda mais evidente, um medo de ceder às emoções mais puras e inocentes. Stan prefere cometer erros do que viver o sonho americano, porque para ele isto é uma verdadeira treta. Ironicamente, quando pratica a sua arte Stan tem algo a cobrir os seus olhos… Será ele mais ou menos cegos quanto os seus espectadores? Stanton não quer ser enganado, porque a vida dessa forma é menos dolorosa. Terá certamente sido educado numa cultura, como a americana, onde o sonho cumpre-se com o estalar dos dedos.

“O Beco das Almas Perdidas” não um filme brilhante, mas feito de momentos brilhantes e até raros. Mai do que ser um filme de suspense, em que ficamos com o coração nas mãos, Edmund Goulding faz-nos refletir sobre os dramas de uma América que não é feita apenas de sonhos, mas de episódios transtornantes capazes de corromper a alma de qualquer um.




Uma frase de Nightmare Alley para recordar

Nightmare Alley
Bradley Cooper ©20th Century Studios

“O Beco das Almas Perdidas” deixou várias marcas no público, sobretudo pelo termo “geek“. Numa utilização pejorativa como aquela utilizada no filme, um “geek” é uma pessoa alcoólatra ou viciada em drogas que faz tudo para atingir o que quer e que, depois, acaba por cair em desgraça e servir de palhaço ou aberração para entreter audiências. Em baixo deixamos-te uma parte do diálogo entre Stanton e Hoatley.

Stanton Carlisle: How do you get a guy to be a geek? Is that the only one? I mean, is a guy born that way?

Hoatley: Let me tell you something, kid. When you’ve been around this carny a little longer, you’ll learn to quit asking questions.

Segundo o IMDb, o crítico de cinema Eddie Muller da Film Noir Foundation (do vídeo partilhado antes), vários eram os ladrões e vigaristas da época que utilizavam entre si a frase “És amigo de Stan Carlisle?”, para confirmar que estavam ambos interessados em fazer negócios corruptos.




Para ficar no olho e/ou no ouvido

Nightmare Alley
Mary Steenburgen em “Nightmare Alley” ©20th Century Studios

Abaixo partilhamos uma das cenas de “Nightmare Alley” de 1947 onde Zeena irá conhecer o destino do seu marido. É interessante a forma como mescla e atira as cartas sobre a mesa com energia, embora o presságio acabe por assustá-la e chamá-la para a realidade. Aqui percebemos que Zeena é uma mulher madura e atraente, mas também frágil com medo do que está por vir.

Mais curioso, é que na verdade não é o destino de Pete que está a contemplar, mas o do próprio Stan, de um homem que conhecerá o prazer da fortuna, mas que será enforcado pela sua própria ganância. Inesperadamente, a sequência vai abrir portas para o seu futuro no meio elitista.




Onde ver O Beco das Almas Perdidas (1947)?

Nightmare Alley
Bradley Cooper ficou com o papel principal de Stanton Carlisle ©20th Century Studios

“O Beco das Almas Perdidas” (1947) está disponível para streaming, aluguer ou aluguer através da plataforma Criterion Channel. Na verdade, a Criterion lançou também o Bluray em HD desta obra.

Em Portugal, infelizmente não está disponível para streaming. Já o remake de Guillermo del Toro estreia em todas as salas de cinema do país.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *