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Compartimento nº 6, em análise

Já chegou a Portugal o novo drama de Juho Kuosmanen, “Compartimento nº 6” conta com a representação de Seidi Haarla, Yuriy Borisov e Dinara Drukarova. Será que vale a pena?

DE COMBOIO AO ENCONTRO DOS PETRÓGLIFOS

Há em HITTY NRO 6, filme dirigido pelo finlandês Juho Kuosmanen, que em português vai ficar conhecido por COMPARTIMENTO Nº6, uma curiosa utilização e, simultaneamente, uma variação daquilo que se pode chamar o McGuffin, ou seja, um expediente ficcional que inserido no corpo da narrativa a faz desenvolver e avançar, sem que realmente o espectador saiba claramente o que é na verdade, ou melhor, não é. Eu disse variação e não pura e dura utilização desse dispositivo usado na escrita do argumento porque, neste caso, o propósito da viagem que a protagonista vai realizar, numa primeira fase sozinha, faz-se com um objectivo preciso ou minimamente declarado. Deixando em Moscovo o conforto da boa vida entre amigos e a mais do que confortável relação com outra mulher, uma jovem oriunda da Finlândia vai partir da capital da Federação Russa até aos confins do Norte frio e soturno daquele país, mais precisamente até Murmansk, a porta do Ártico, para dali ir ainda mais longe, ao encontro daquilo que deseja ver com os seus próprios olhos, ou seja, uma série de petróglifos que se encontram numa ilha do lago Kanozero, no Sudoeste da Península de Kola. Estes petróglifos existem realmente, foram descobertos na segunda metade dos anos 90, e são considerados dos mais significativos da arte rupestre daqueles lugares remotos. Datam do segundo milénio antes da nossa era. Na verdade, são relativamente recentes, se pensarmos que os mais antigos são de há mais de dez mil anos. Diversos exemplos de gravuras similares podem ser vistos nos quatro cantos do mundo, incluindo Portugal. Os desta região russa são cerca de mil e trezentas imagens gravadas na rocha, disseminadas por dezoito grupos. E depois desta breve nota geográfica e arqueológica, passemos então ao McGuffin propriamente dito. E que coisa vem a ser neste filme o McGuffin? Pensemos na definição clássica que Alfred Hitchcock deu e que se conta assim: dois homens, naturais da Escócia, iam num comboio e um deles pergunta “Que pacote é esse que colocou na bagageira?” e o outro responde “É um McGuffin”. Intrigado, o primeiro volta a perguntar “Mas o que é um McGuffin?” e o outro não hesita e diz “Um aparelho para apanhar leões nas Terras Altas da Escócia”. Mais perplexo agora do que intrigado, o primeiro afirma “Mas não há leões nas Terras Altas da Escócia”, e o outro conclui “Bom, então isso quer dizer que não há McGuffin”. Podemos assim concluir que o McGuffin não existe mas, mesmo assim, na verdade já deu para contar uma história.

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Dito isto, voltemos ao filme onde a nossa improvável aventureira finlandesa acaba de entrar numa carruagem, uma daqueles que só para quem nunca andou de comboio por aquelas paragens pode parecer de ficção. Ela embarca com a mochila bem pesada e muitas memórias por processar. Ou seja, até aí nada de especial. Mas, uma vez lá dentro instala-se, nem mais nem menos, no COMPARTIMENTO Nº6. Nessa altura dá de caras com um jovem russo que, numa primeira abordagem, não parece ser nem muito simpático nem muito diferente do mais comum dos mortais. Bebe demais, come mal, não parece muito educado, olha para a rapariga com um olhar que denuncia segundas intenções, e vomita insinuações sexuais de duvidoso gosto. Os companheiros que não escolhemos podem ser assim e, como aquele, existem mil e um em qualquer parte do mundo. Só que, ao longo dos muitos quilómetros percorridos, o que se passa naquele compartimento ou cabine, como quiserem, não vai ser o retrato de uma simples deslocação ao que bem podíamos apelidar de cu de judas. Pouco a pouco, ao longo do percurso, o rapaz vai começar a surgir como o motor propulsor da narrativa. Sabemos vagamente porque faz aquela viagem, mas durante muitos minutos nunca saberemos ao certo se o que diz pertence ao domínio da mentira, ou melhor, da dissimulação. Nem porque, a meio caminho e numa das frequentes paragens do comboio, decide ir ao encontro de uma mulher mais velha, alguém que já conhecia. Desvio para que arrasta a nossa amiga arqueóloga, numa espécie de sub-viagem com algo de simultaneamente natural e misterioso. Nunca iremos saber com precisão o que lhe vai na alma. Nem sequer quando, na sua maneira muito peculiar de reagir, demonstra sentimentos contraditórios para com a sua companheira de cabine, sobretudo após o momento em que esta ajuda um compatriota a fazer a mesma viagem, rapaz que passa a ser o “concorrente”, o que merece as mais próximas atenções da finlandesa. Diga-se, para mal dos seus pecados. Depois, uma vez chegados ao destino, o russo desaparece, deixando a jovem desamparada numa Murmansk em que ninguém a quer levar ao sítio dos petróglifos. Fazem-no com as mais diversas desculpas, algumas delas com razão de ser. Quem no seu perfeito juízo se lembraria, sozinha e em pleno Inverno, de ir para o Norte da Rússia procurar imagens de há milhares de anos, e em sítios que mais parecem o fim do mundo? Será então a vez do agora já nosso protagonista regressar da mina onde ganha a vida, sim, ele que passou a ser, na breve ausência narrativa, a figura latente deste filme, no fundo, o McGuffin que nos irá conduzir, a nós, assim como a arqueóloga, ao ponto final da viagem. Esta personagem do russo que não sabemos identificar a não ser pelos seus sinais exteriores, funciona como funcionaria o dispositivo ficcional inicialmente citado. Mas com uma variação importante: ele existe, o que não existe materialmente são as suas motivações. Só as da outra personagem. Ela possui um livro, que só vemos de relance. Mas, seja como for, vemos. Um objecto preciso, materialmente relevante. E, no entanto, quem faz avançar a acção e quem abre o caminho para a resolução final não é ela nem o livro, mas sim ele, o russo por quem a finlandesa começa a demonstrar mais do que uma simples amizade passageira. O rapaz que, uma vez no lago e na ilha das pedras gravadas se limita a esperar que a sua, digamos, amiga cumpra o que veio fazer. Os espectadores, esses, ficarão a saber o mesmo que sabiam sobre os petróglifos. E aqui, nada mais digo, porque os surpreendentes últimos minutos dão-nos a medida certa da capacidade do argumentista e realizador gerir uma ficção complexa, plena de humor, que de modo nenhum podemos confundir com comédia, misturado com uma observação realista da realidade de um país frio mas quente, diria mesmo, uma fogueira viva de emoções.

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Finalmente, não podemos deixar de destacar a interpretação da personagem feminina, muito bem defendida por Seidi Haarla e, sobretudo a composição da personagem do jovem russo, um magnífico Yuri Borisov.

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Destaque ainda para a Direcção de Fotografia de Jani-Petteri Passi que, através de escalas e movimentos precisos, dentro e fora do comboio, confere o grau de verdade necessária e fixa a paleta de cor dos locais de rodagem, aquilo que nos permite acreditar nos autênticos caminhos cruzados desta obra de ficção.

Pormenor importante: no último Festival de Cannes, O COMPARTIMENTO Nº6, co-produção entre a Finlândia, Alemanha, Estónia e Russia, recebeu o Prémio do Júri e ainda uma Menção Especial do Júri Ecuménico.

Compartimento nº 6, em análise
n 6 Medeia

Movie title: Compartimento nº 6

Date published: 14 de December de 2021

Director(s): Juho Kuosmanen

Actor(s): Seidi Haarla, Yuriy Borisov, Dinara Drukarova

Genre: Drama, 2021, 107min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Um filme dirigido com um sentido muito agudo dos ritmos ficcionais inerentes a uma viagem em plena harmonia com
os ritmos de uma realidade cultural e geográfica, a meio caminho entre o frio do clima e o calor das emoções pessoais.

CONTRA: Nada, a não ser o facto de filmes assim arriscarem uma passagem breve pelo grande ecrã, mesmo quando
apresentam argumentos de peso, como os prémios recebidos em Cannes.

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