Não Olhem para Cima | Próximo Click, O Fim do Mundo
Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence preparam o planeta para o Fim do Mundo em “Não Olhem para Cima”, a mais recente comédia negra de Adam McKay!
Depois de visionar o último filme de Adam McKay, DON’T LOOK UP (NÃO OLHEM PARA CIMA), pensei escrever uma crítica sobre as suas componentes estruturais, numa perspectiva de análise pura e dura. Mas, depois de rever mentalmente as sequências que mais me despertaram a atenção procurei, como quase sempre faço, sistematizar aquilo que me ia no pensamento, através de uma frase ou uma palavra, ou seja, uma referência sintética destinada a despertar o interesse do leitor para uma visão de conjunto. Procurei assim frases compostas por alguma ironia e sarcasmo, que combinassem bem com o sabor agridoce da componente comédia, que esta obra no fundo acaba por ser, narrativa orientada para a hipótese ficcional não apenas do fim do Planeta Terra, mas igualmente de um sistema de vida maioritariamente submetido, comprometido ou subvertido por um poder político e mediático incapaz de perceber, ou querer perceber, com a devida seriedade e racionalidade, a destruição próxima dos mais elementares valores do comportamento no contexto de uma sociedade civilizada. Deste modo, surgiram por exemplo, CANTANDO E RINDO ATÉ AO JUÍZO FINAL, JÁ NÃO HÁ ESTRELAS NO CÉU… NEM JUÍZO NA TERRA, SÓ MAIS UM LIKE PARA O APOCALIPSE, SE GOSTARES… SUBSCREVE O FIM DO MUNDO, e até pensei algumas em inglês. Para quem for ver o filme e conheça a expressão que designa a bandeira dos Estados Unidos, seguramente perceberá o que quero dizer com o cáustico, STARS AND STRIPES… and THE DAMN FUCKING COMET, e o mais fofinho, NEXT STOP… DOOMSDAY, ou finalmente, e não dei mais corda senão não parava, A PRAYER BEFORE DYING!
Em resumo, inventei uma lista de frases e conceitos oriundos de muita memória cinéfila e não só, e provavelmente isso bastava para aconselhar a olhar de frente este NÃO OLHEM PARA CIMA. Mas, como disse, não queria ficar pelo exercício da crítica pela crítica, mas sim ir mais longe e propor uma reflexão sobre o modo como certas idiossincrasias da nossa maneira de ser e estar estão a ser contaminadas hoje pela anestesia, precisamente, do pensamento crítico que nos afasta gradualmente da consciência dos verdadeiros problemas que atingem o nosso mundo, aparentemente muito desenvolvido. Na verdade, neste filme encontramos por entre as peripécias de um argumento mais ou menos clássico, matéria que nos permite, sob a forma de grande produção cinematográfica, pensar em assuntos bem sérios. Como a necessidade urgente de reaprender a ver, ou saber ver, reaprender a ouvir, e saber ouvir, recuperar a nossa cidadania intelectual contra as mais diversas formas de manipulação de massas. Dito isto, por fim escolhi PRÓXIMO CLICK, O FIM DO MUNDO, cujo significado procurarei desvendar ao longo deste artigo.
Permitam-me, no entanto, primeiro acrescentar aquilo que, na minha opinião, dá ao filme uma dinâmica e uma consistência sociológica que, não raras vezes, está ausente do género em que ele se insere. Na verdade, na História do Cinema são inúmeros os exemplos que podemos dar sobre obras fílmicas, de maior ou menor qualidade, que lidaram com a ameaça do fim do mundo. Muitos foram mesmo para além do fim da nossa civilização, fazendo viajar para outras galáxias os habitantes foragidos da Terra, o outrora planeta azul que passou a existir apenas como um mero calhau em órbita do Sol. Filmes com ameaças de cometas há alguns, e durante o período da chamada Guerra Fria, as duas superpotências de então, Estados Unidos e União Soviética, foram palco de mil e uma histórias, em que o mundo invariavelmente estava prestes a desaparecer. Eram filmes, mesmo sem a parafernália digital dos dias de hoje, que ainda podem ser vistos como autênticos concorrentes dos que hoje usam e abusam dos ruídos, que fazem passar por banda sonora, da acção movida a cem planos por minuto, prato forte dos franchises super-heróicos que, acreditem, não possuem nem metade da eficácia de um DR. STRANGELOVE OR HOW I LOVE TO STOP WORRYING AND LOVE THE BOMB (O DR. ESTRANHOAMOR), realizado em 1964 pelo genial Stanley Kubrick. E que dizer dos monstros que atormentavam os humanos? Lembram-se dos muitos GODZILLA, ou Gojira, como se diz no Japão? Em resumo, muitas e variadas formas de acabar em poucos dias ou horas com as nossas milenares formas de vida. Só que, em 1954, quando os Estúdios Toho, fintando os restos da censura imposta pela ocupação americana, criaram o dito monstro alagartado, produto de uma explosão nuclear que fazia ecoar memórias de Hiroshima e Nagasaki, nem no Japão se iam lembrar que a principal ameaça ao mundo de hoje não fosse a bomba atómica, nem uma quantidade de bichos horrendos e farfalhudos, nem sequer um cometa de cauda ameaçadora, mas sim a plutocracia e o populismo combinados com a anarquia das redes sociais. De facto, os monstros de hoje já não são seres cabeludos nem possuem garras afiadas, são antes mostrengos com unhas de gel e penteados ridículos que ornamentam os escalpes de homens e mulheres com poucos ou nenhuns escrúpulos, oportunistas e arrivistas enriquecidos e pagos com o dinheiro de negócios manhosos, e eleitos com a ajuda da manipulação das redes sociais. São os votos e os clicks que se confundem numa mistura obscena. No filme, veremos uma dessas aventesmas na pele – gritem por socorro – da Presidente dos Estados Unidos. Personagem deliciosamente interpretada por Meryl Streep. Presidente que não hesita em nomear alguém com um passado miserável para um cargo sensível do poder, uma figura de quem fora amante e a quem enviava fotografias das suas partes íntimas. Ela, que não cora de vergonha por nomear o filho para braço direito e esquerdo da sua presidência, um indivíduo que demonstra em incompetência o que não lhe falta em arrogância enquanto político e cidadão. Ela que, no final das contas, não passa de uma marioneta nas mãos dos que possuem ainda mais poder do que o poder federal e nacional, no filme o poder exercido por uma espécie de sibilino pateta alegre, detentor de um lucrativo universo informático, cujo perfil ficcional não anda muito longe da comparação que inevitavelmente alguns possam estabelecer com personalidades reais, apontadas como as mais poderosas e influentes da actualidade. Refira-se que o filme nunca condena directamente o sistema que estas pessoas ajudaram a criar e apoiam. Fá-lo antes de uma maneira subtil. Por exemplo, quando faz entrar em cena a personagem do falso filantropo e arquimilionário que procura ajudar a humanidade a desviar o cometa da rota de colisão com a Terra, figura interpretada por Mark Rylance. Apesar do cinismo com que ele gere a sua “cruzada”, o retrato que dele fica não passa inicialmente de mais um sobre alguém disposto a ganhar dividendos com a situação. Como o poder que ele ostenta ultrapassa o de muitos governos, isso permite-lhe a margem de manobra necessária e suficiente para dar de si próprio uma imagem positiva, como se dissesse “ao menos as minhas empresas contribuem com os foguetões, armados com ogivas nucleares, para impedir o anunciado impacto fatal”. Só que por detrás das boas intenções estão interesses pessoais e cálculos egoístas. Já os políticos, que andam a reboque destas figuras, não ficam bem na fotografia. Na verdade, só acordam para os problemas e para a anunciada colisão do cometa quando as eleições intercalares podem não lhes ser favoráveis, devido a uma sucessão de escândalos, colocando em perigo as ambições da camarilha que ocupa a Casa Branca. Por isso, a Presidente e os seus homens de mão veem-se obrigados a fazer a habitual demagogia, chorar as sulfurosas lágrimas de crocodilo para salvar, não propriamente a humanidade, mas sim o coiro dela e dos seus cúmplices.
Para se perceber melhor o que está em causa, recordemos a linha geral da narrativa. Uma cientista, interpretada por Jennifer Lawrence, descobre um cometa em rota de colisão com a Terra. O impacto irá provocar seguramente o fim da espécie humana e do mundo em que vivemos. Ela e o seu mentor, um professor e cientista interpretado por Leonardo DiCaprio, não se poupam a esforços para alertar o poder em Washington, assim como várias instituições, do perigo iminente. Mas, numa primeira conversa com a Presidente, ninguém quer ouvi-los. Há mesmo uma descrença geral e uma leviandade na apreciação do assunto que, apesar de assistirmos a uma ficção, assusta qualquer um. Sobretudo, quando nos lembramos do que recentemente vimos e ouvimos a partir da Casa Branca. Recordam a receita da lixívia para combater o COVID-19? E essa nem foi a mais grave das barbaridades ditas por um Presidente que continua, contra muitos do seu próprio partido, a sustentar que não perdeu as eleições. Prosseguindo contra as mais desvairadas barreiras e adversidades, os dois cientistas são apontados como loucos. Desesperados, desviam a sua missão de alerta para os meios audiovisuais e são convidados a ir a um programa, igual a muitos que abundam nos pequenos ecrãs, formatos onde a futilidade impera e em que não vinga a mínima noção das prioridades. Programas em que ninguém parece interessado em ouvir o que de sério há para dizer. Programas em que a separação ou o casamento forjado de uma qualquer socialite, uma bimbalhice sem nome, vem antes de matérias que merecem verdadeira atenção. No estúdio e como pivots, dois jornalistas que, iguais a muitos que conhecemos na vida real, passam os minutos a exibir-se e a querer interpretar seja o que for com uma piadinha, um sorriso forçado ou despropositado, uma insinuação picante, um ah, ah, ah para o patego que em casa lhes acha muita graça. Personagens admiravelmente “defendidas” por Cate Blanchett e Tyler Perry. Diga-se de passagem que a presença deste último constitui uma das grandes surpresas e mais-valia do elenco. Na verdade, de acordo com a FORBES, ele continua a ser um dos profissionais mais bem pagos do showbiz americano. Detentor de um justo prémio humanitário, atribuído pela Academia de Hollywood, o Jean Hersholt Humanitarian Award, a sua presença em DON’T LOOK UP prova, de certo modo, que o facto de nadar em dinheiro não o impede de desempenhar neste filme um papel que satiriza os órgãos de comunicação ao serviço do capitalismo selvagem, ainda por cima num filme dirigido por um apoiante convicto de Bernie Sanders, que se considera ele próprio um socialista democrático. Finalmente, este longo processo de combate pela verdade dos factos e pelo despertar de uma consciência global relativamente ao desastre provocado pelo astro, que a grande velocidade atravessa os céus, vai esbarrar com o outro dos poderes que minam a democracia, o mundo desregulado de algumas redes sociais. Uma força de que não podemos ignorar a influência e impacto exercido em muitos milhões de consumidores da internet que, nos sectores mais javardos e sem filtros, usa a arrogância fazendo-a passar por liberdade de expressão. Neste contexto, os cientistas e os que se vão juntando a eles serão alvo de campanhas infames de desinformação, oriundas de meios negacionistas que despejam, sem rei nem roque, as suas mentiras nos comentários e memes de muito duvidoso gosto.
Nas sequências onde através das inserções gráficas são visíveis os estragos produzidos pelas calúnias, pelo gozo desbragado e grunho, pelo veneno destilado por gente anónima ou com falsos nomes, os argumentistas acentuaram a crítica desta falsa noção de liberdade, para que fique clara a percepção de como este novo poder alimenta a possibilidade de perpetuar no outro poder gente de pouca moral que, naturalmente, não hesita usar as mesmíssimas redes sociais para veicular e impor as suas falsas narrativas, publicadas na defesa dos seus meros interesses pessoais e de grupo. Neste caso, para os devidos efeitos, insistindo numa palavra de ordem que contraria a dos cientistas. Ou seja, os políticos corruptos dizem aos cidadãos que os seguem, DON’T LOOK UP (NÃO OLHEM PARA CIMA). Querem assim manter o status e os negócios do costume, mergulhando os cidadãos na ignorância. Enquanto os que defendem a verdade dizem exactamente o contrário. Contra a alienação, OLHEM PARA CIMA. E a razão está do seu lado, porque nunca foi mais urgente deixar de olhar só para baixo e para os ecrãs que nos podem manipular. Os que conceberam o filme, assim como qualquer um que defenda a civilização contra a barbárie dirá: Experimentem olhar para cima, para o céu de dia ou de noite. Porque senão, um destes dias o céu pode muito bem cair-vos em cima…! Se não for um cometa, será outro pedregulho qualquer. E quando acordarem do sopro da explosão apocalíptica, se em vez de acordarem e pensarem pela vossa cabeça, voltarem a fazer click para saber o que se passou, saibam que já devem estar num Paraíso Infernal ou no Inferno propriamente dito. Caramba, que venha o Diabo e escolha…!
E aqui vai um aviso, sobretudo para aqueles que sofrem, sei lá, das consequências de uma intrigante mola que os faz levantar imediatamente quando os créditos finais começam a passar. NÃO OLHEM PARA CIMA, durante e após o genérico final, possui duas sequências muito verrinosas. Uma delas não podia ser mais hilariante. E, mais não digo, senão lá se vai a surpresa.
Em suma, DON’T LOOK UP, num registo de comédia, fala de assuntos muito sérios, com um humor quase sempre sedutor e subtil. Numa primeira fase será visto nas salas de cinema, e mais para o fim de Dezembro passa a fazer parte do extenso catálogo da NETFLIX. Dito isto, cabe aqui salientar um aspecto muito importante do actual panorama cinematográfico, seja no circuito historicamente instituído, seja nas mais activas plataformas de streaming. De facto, abençoada empresa que se pode dar ao luxo de, no meio de muita coisa de interesse discutível, nos oferecer obras dignas de figurar na lista dos melhores filmes contemporâneos. Não será de estranhar, porque quando se garante uma receita generosa com as subscrições multinacionais, a diversidade e qualidade só podem ser opções seguras. Seja como for, esta política editorial merece o nosso aplauso, e será sempre recompensada e capitalizada como perene imagem de marca no campo da produção, distribuição e exibição.
Que venham mais destes filmes, para os olharmos uma, duas, enfim, as vezes que forem necessárias.