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Crepúsculo em Tóquio, a Crítica | Um clássico de Yasujirô Ozu restaurado

O ciclo Yasujirô Ozu – 120 Anos deu a conhecer uma versão restaurada em 4K de “Crepúsculo em Tóquio”.

Muitos consideram “Tokyo Boshuku” (Crepúsculo em Tóquio), 1957, de Yasujirô Ozu, um dos filmes mais sombrios e amargos do mestre japonês. Pessoalmente, não vejo mal nenhum nessa opinião que destaca o lado crepuscular do filme, mas em abono da verdade nem sequer considero que essa percepção, legítima mas redutora, se confirme a cem por cento. Talvez fosse na altura da sua produção ou até nos nossos dias mais adequado defini-lo como um exemplo de ficção realista e austera. Mas para quem conheça a generalidade da obra de Yasujirô Ozu, excepto os filmes considerados desaparecidos, e encontre nela a sua marca e estilo, referências como as que foram apontadas encontram a sua completa e devida justificação, sobretudo na melhor fase da sua filmografia, não constituindo as mesmas nem um defeito nem necessariamente uma virtude. São, antes de mais, sinais indiscutíveis de uma autoria estruturada ao longo de uma carreira de vários anos, perfeitamente reconhecível nas suas linhas mestras consolidadas a partir do final dos anos quarenta.

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Importa além do mais salientar, isso sim, a consequência directa das opções estéticas e éticas de Yasujirô Ozu, assumidas de parceria com alguns dos seus mais próximos colaboradores, destacando a determinação do autor e da sua equipa em focar a atenção nas relações humanas num espaço social, cultural e geográfico e numa relação mais vasta e, por vezes, bem mais complexa que possui como eixo central as matérias que se perfilam compatíveis com o retrato de um povo e de forma mais particular com um determinado núcleo de homens e mulheres com evidentes laços familiares. Uma engenharia ficcional que faz do contacto com a realidade circundante o reflexo natural das relações que os diferentes membros de uma família estabelecem, entre eles e com os outros, num quotidiano igualmente específico.

Crepúsculo em Tóquio
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No caso de “Crepúsculo em Tóquio”, essas relações inserem-se no desejo de ver continuada uma certa identidade nacional que muitas vezes colidia com o desafio de romper com o passado, digamos, o reflexo natural e expectável daquilo que era o Japão no período da reconstrução e da normalização democrática do pós-Segunda-Guerra Mundial. Um mundo pleno de contradições que por vezes não se distanciava muito do que podia ser, num plano político e geográfico mais vasto e visto de dentro para fora, a situação de outros países que de igual modo haviam sofrido as consequências da guerra e onde fervilhavam preocupações similares. Estávamos aqui na era mais fértil para ver crescer os encontros e desencontros dos que procuravam um novo rumo, as pequenas e grandes alegrias que faziam esquecer os difíceis anos de chumbo, a noção dos limites impostos ou consentidos e a vontade de avançar em frente para um futuro mais livre e independente. Em suma, estávamos perante uma sociedade fragmentada que se ajustava a uma nova era, onde as eternas interrogações existenciais continuavam a perfilar-se face a um conjunto de acções e emoções que podiam ser polarizadas ou então anuladas e absorvidas pelas mais básicas rotinas inerentes ao modo de vida adoptado, de bom grado ou não, por qualquer cidadão.




Para o que nos interessa, que forças são essas, que impulsos movem as personagens protagonistas de “Crepúsculo em Tóquio”? No filme iremos conhecer uma família, onde o pai, Shukichi Sugiyama (preciosa interpretação do veterano actor Chishu Ryu) vive sozinho com as suas duas filhas. A mais nova, Akiko Sugiyama (uma notável actriz de expressivo e luminoso rosto, Ineko Arima) apresenta-se como a mais rebelde e aparenta um inconformismo que as voltas do destino acabarão por contradizer. A mais velha, Takako Numata (interpretada pela magnífica Setsuko Hara), mostra-se muito mais conservadora, mas acaba por romper mais depressa com os códigos algo reaccionários e repressores de uma sociedade que não dava estatuto igual ao género feminino e masculino. Na verdade, Takako rompe com o marido, um sujeito de feitio pouco sociável e alcoólico, e acaba por instalar-se com a filha, ainda bebé, em casa do pai. Entretanto, nota-se neste ambiente paterno e doméstico, relativamente normal, uma ausência.

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Onde está a mãe e a mulher, companheira do patriarca, para completar o referido quadro familiar? Não está! Todos pensam que ela morrera. Mas a mãe que julgavam morta vai aparecer mais adiante e em condições difíceis de encarar pacificamente sem despertar fantasmas e recalcamentos, sobretudo por parte da jovem Akiko. Esta, desesperada, andava a procurar o rapaz com quem vivera uma aventura sexual, um boémio que de forma irresponsável a engravidara. Quando finalmente Akiko o confrontou com a verdade dos factos, numa das mais crepusculares sequências do filme, o namorado ocasional não fez outra coisa senão sacudir a água do capote, evitando assumir as suas responsabilidades. Dois jovens muito diferentes, ele manhoso, ela algo ingénua, mas ambos com dificuldades em assumir a verdade. Será, aliás, numa das suas múltiplas incursões pelos bas-fond de Tóquio em busca do seu furtivo amante que Akiko se cruza com a mulher que desconfia ser sua mãe, Kikuko Soma (excelente presença da actriz Isuzo Yamada).

Crepúsculo em Tóquio
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Esta mulher gasta pela vida sustenta-se com um negócio mais ou menos marginal, uma casa onde predominam as jogatanas de mahjong. Saberemos que anos antes abandonara o marido e as filhas para fugir com outro homem. Mas saberemos igualmente que ela sofrera as agruras de muitos japoneses, e não poucas japonesas, que ficaram anos e anos encarcerados por causa dos conflitos bélicos em que o Japão se envolveu, nomeadamente na altura da sua expansão imperialista na guerra com a China, assim como nos conflitos levados a cabo no Sudoeste Asiático e no Pacífico. E Yasujirô Ozu, em vez de cair nas armadilhas melodramáticas e na demagogia que aqui podiam germinar e daqui podiam sobressair, investiu antes numa obra revolucionária (uso aqui a palavra do ponto de vista etimológico), sem rodriguinhos ou concessões morais. Para confirmar esta noção, assistiremos, coisa rara na sua obra, a uma sequência onde se aborda a questão do aborto que já antes pairava no ar influenciando o comportamento e ampliando as angústias de Akiko.




A crueza com que nela se fala de alguns pormenores inerentes a uma prática que era obviamente clandestina dá-nos de forma directa e muito clara um dos lados menos radiantes e mais hipócritas da sociedade nipónica. Pegando mais uma vez na faceta etimológica da palavra, a realização partiu de um ponto inicial preciso da narrativa para fazer depois a rotação da matéria ficcional, junto com as personagens que a consubstanciaram, percorrendo os diversos momentos crepusculares no interior das quatro linhas dos magníficos enquadramentos até ao ponto final em que de certo modo repõe o equilíbrio existencial perdido, fechando o círculo da célula familiar que, após a morte de um dos seus membros, nunca mais será a mesmo.

Crepúsculo em Tóquio
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Seja como for, para além das adversidades, Yasujirô Ozu quis deixar bem presente que a vida continua, e o último plano não podia ser mais categórico na afirmação visual, mas não moral, deste postulado. Diga-se, fá-lo nesse momento como o fez ao longo dos 140 minutos do filme com a estruturação milimétrica de um corpo de imagens admiravelmente fotografadas, num deslumbrante preto e branco da responsabilidade do Director de Fotografia, Yuharu Atsuta, e com uma partitura onde subsistem breves mas incisivos apontamentos musicais do compositor Kojun Saito, alguns dos quais vão sendo repetidos ao longo do processo narrativo com uma eficácia que faz da banda sonora de “Crepúsculo em Tóquio” um exemplo sublime do que deve ser a pulsação dialéctica imagem-som como motor das emoções que emanam de uma acção, neste caso depurada de “gorduras” ou rodriguinhos desnecessários. Na prática, cada música e efeito de som que se ouve em surdina ou em primeiro plano equivale a mil palavras. Por vezes antecipando, outras sublinhando, e outras dando mais força ao que estamos a ver e naturalmente a ouvir nos diálogos. Por isso mesmo, numa série de planos e sequências, os actores não precisam de fazer mais do que ser aquilo que Yasujirô Ozu queria que eles fossem, os intermediários perfeitos entre o autor, eles próprios, e o seu público.

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Pelo que disse e pelo muito que ficou por dizer, um filme indispensável para quem gosta do melhor cinema do mundo, escrito e realizado por um dos melhores cineastas de sempre.

Crepúsculo em Tóquio, a Crítica
Crepúsculo em Tóquio

Movie title: Tôkyô boshoku

Director(s): Yasujirô Ozu

Actor(s): Ineko Arima, Setsuko Hara, Isuzu Yamada, Chishu Ryu

Genre: Drama, 1957, 140min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Imaculada cópia digital, restaurada em 4K.

Direcção de Fotografia (Yuharu Atsuta), Iluminação (Akira Aomatsu) e Direcção Artística (Tatsuo Hamada), irrepreensíveis.

Todos os actores, protagonistas e secundários.

Planificação sublime, prova de eficácia e que não surpreende quem conheça a obra de Yasujirô Ozu. Economia narrativa que, sem dúvida, ajuda qualquer espectador que se preze a ver e rever uma e outra vez os seus filmes, que ao longo dos anos adquiriram o peso que a idade atribui aos clássicos sem no entanto revelarem uma única ruga.

Finalmente, o que não é pouca coisa, pode ser visto em conjunto com outras obras maiores do cineasta, no ciclo que a Leopardo Filmes e Medeia Filmes nos proporciona ao longo do mês de Dezembro e onde se encontram algumas das suas mais admiradas e valorizadas obras-primas.

CONTRA: Absolutamente nada…!

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