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O Mestre Jardineiro, a Crítica | Joel Edgerton no centro da obra de Paul Schrader

Joel Edgerton protagoniza “O Mestre Jardineiro”, a nova obra do realizador e argumentista Paul Schrader.

Era uma vez um jardineiro, perdão, um mestre jardineiro, que habitava numa pequena casa (modesta, austera mas acolhedora) no jardim do paraíso, ou melhor, num amplo jardim instalado na propriedade que outrora pertencera a uma abastada família do Sul dos Estados Unidos. Local onde prevaleceram e ainda prevalecem resquícios dos preconceitos sociais e de classe que, por muitos anos, se associaram ao pior rosto do racismo americano e não só, a saber, o sistema esclavagista como base privilegiada para o recrutamento de mão-de-obra. Pois bem, foi nessas paragens, cujos dirigentes locais e defensores do indefensável saíram derrotados na Guerra Civil, ou Guerra de Secessão (1861-1865), que se ergueu nos nossos dias a estrutura de um capitalismo selvagem que ajudou a construir uma nova sociedade e, no que diz respeito ao filme que aqui se irá analisar, há que dizê-lo, se consolidou um bonito e elegante negócio de plantação e cultivo de flores.

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E esta forma meio irónica que escolhi para apresentar o derradeiro filme de Paul Schrader, com estreia portuguesa marcada para o próximo dia 16 de Novembro, concebido como conto exemplar sobre um homem inserido num contexto de grande singularidade e aparentemente pacífica conjuntura existencial, o muito interessante “The Master Gardener” (O Mestre Jardineiro), 2022, justifica-se plenamente porque o realizador e argumentista desde há muito que vem demonstrando nas suas derradeiras obras um olhar muito especial e moralizante sobre aquilo que podemos designar pelas mil e uma variações em redor de um clássico do cinema de autor que de um modo quase obsessivo usa como referência, o genial Pickpocket” (O Carteirista), 1959, obra maior do mestre francês Robert Bresson. Nele vemos a redenção de homens e mulheres pela ascese comportamental, mesmo nas situações e momentos mais invulgares, e a percepção quase clínica dos caminhos que eles percorrem através dos limites impostos pela sociedade e pela consciência das vicissitudes da natureza humana.

NO JARDIM DO PURGATÓRIO, ENTRE O CÉU E O INFERNO!

O Mestre Jardineiro
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Em “O Mestre Jardineiro”, logo a seguir ao genérico inicial onde se mostra o desabrochar de magníficas, viçosas e coloridas flores, reconhecemos a presença cinzenta e austera do protagonista, Narvel Roth (Joel Edgerton), de quem iremos mais adiante descobrir as qualidades do seu projecto de reinserção social e apaziguamento sentimental que abraçou para esquecer um passado violento e pouco abonatório, em especial face ao seu posicionamento ideológico. Na verdade, podemos dizer, sem muito errarmos, que andou pelos meandros da extrema-direita americana, integrado em milícias paramilitares similares aos “proud-boys” que muito deram que falar no passado recente, sobretudo durante o mandato presidencial de Donald Trump. Daremos conta igualmente de que na actividade de jardinagem, onde acabou por adquirir estatuto de especialista, procurou com sucesso uma nova vocação que o fez superar a agreste memória dos anos de brasa, literalmente gravada na pele, onde se acumulam vários símbolos extremistas como cruzes suásticas e caveiras da morte ao estilo das SS nazis, demonstrações gráficas de um passado seguramente nada glorioso que manifestamente não se encaixaria ontem nem se encaixa hoje nos valores civilizacionais daqueles que defendem a democracia e o chamado estado de direito.




Tudo isto se passa na sombra da casa grande, a mansão onde vive, numa calculada reclusão, a herdeira de uma família latifundiária. Herança consubstanciada de forma pessoal na presença dessa mulher altiva e dominadora, a senhora Norma Haverhill (Sigourney Weaver) que, para os devidos efeitos da relação hierárquica patroa/empregado, mantém com o mestre jardineiro uma relação de sedução que passa não apenas pela verticalidade das relações de classe mas igualmente pela horizontalidade da cama e das práticas sexuais para as quais arrasta o seu homem e presa, admirando com uma espécie de êxtase erótico os desenhos “malditos”, amplamente visíveis no corpo de Narvel Roth, a quem ordena na intimidade e com intencional arrogância que se dispa. Tudo parece correr sobre rodas, não obstante esta prepotência social, mesmo quando a estrada parece um campo minado e esburacado pelo intermitente rebentamento das contradições entre ambos. Mas, a certa altura, as coisas irão complicar-se quando Norma pede a Narvel que acolha no seio dos seus empregados, como aprendiza, a sobrinha mestiça, Maya (Quintessa Swindell), fruto de uma muito criticada relação da irmã com um negro.

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O Mestre Jardineiro
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Uma vez aqui chegados, Paul Schrader, como um autêntico croupier da manipulação ficcional, quer no campo das certezas feitas quer no das surpresas e imponderáveis cujo peso na acção não se pode medir ou pesar automaticamente, pula e avança por cima daquilo que podia ser encarado como a mais redutora visão do destino das personagens em causa e, com arte e saber, dá a volta ao que pensávamos já serem dados adquiridos para investir numa plataforma onde baralha as cartas jogadas com as que ficam por jogar. Dialéctica dominada pela luta pessoal e interior de Narvel entre o exercício do bem contra o mal, luta que se quer redentora e purificadora, servindo-se para os devidos efeitos da libertação da força bruta que aqui se identifica com a controversa protecção da jovem Maya. No processo, vai abrir as portas aos abismos infernais de um passado de que andou a fugir e cuja memória passou anos a reprimir. Tudo, finalmente, por causa de uma dupla de jovens delinquentes, rapazes brancos de uma pungente vulgaridade que nem aparentam sequer ser criminosos encartados, que passam a vida a pressionar e ameaçar Maya a partir do círculo marginal em que estão inseridos e onde ela escorregava na lama dos dias que passam para encontrar e obter a droga que não parara de consumir.




Podemos dizer que a receita aplicada a este filme vem de longe e se encontra desde há muito inserida, quase sempre com visível impacto e eficácia narrativa, na obra escrita e realizada por Paul Schrader. Entre muitos exemplos, recordemos por razões óbvias aquela que muitos designam por uma Trilogia, de que “O Mestre Jardineiro” seria o último capítulo e cujos antecessores são “First Reformed” (No Coração da Escuridão), 2017, e “The Card Counter” (O Jogador), 2021, filmes de que gosto muito e que valorizo com pontuações de merecida robustez numérica.

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O Mestre Jardineiro
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Por um lado, aquilo que sobressai são os labirintos da reforma moral, e por outro a definição das regras do jogo, viciado ou não, que as diferentes personagens querem assumir para redimir os seus e os pecados alheios, no interior de um mundo que mais parece um jardim de expiação, uma espécie de purgatório situado entre o céu (o paraíso) e o inferno, sem redenção e sem retorno. Qual a relação profunda destas linhas de orientação ficcional com a arte da jardinagem propriamente dita? Neste filme, essa será uma pergunta que fica sem resposta, ou antes, que não necessita forçosamente de uma resposta conclusiva. Como se costuma dizer, numa perspectiva laica, ou então para nos situarmos nas proximidades do pensamento calvinista, “Esses são os mistérios da Fé”. Neste caso, pela nossa parte, fé num cinema que se deseja em estado quase puro de vigília sobre o verdadeiro significado e sentido da vida.

O Mestre Jardineiro, a Crítica
O Mestre Jardineiro

Movie title: Master Gardener

Director(s): Paul Schrader

Actor(s): Joel Edgerton, Sigourney Weaver, Quintessa Swindell

Genre: Drama, 2022, 111min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Extrema coerência do realizador na aplicação dos pressupostos ficcionais que remontam a filmes como, por exemplo, American Gigolo, 1980, passando pela escrita do argumento do clássico Taxi Driver, 1976, de Martin Scorsese.

CONTRA: Sem querer fazer os filmes dos outros e sem querer revelar o final de “O Mestre Jardineiro”, direi apenas que, se fosse eu o produtor, diria ao realizador e ao montador para cortarem a dançazinha final que não está lá a fazer nada. Trata-se da minha opinião. Provavelmente há quem defenda essa derradeira sequência. Por isso é que o mundo não se inclina só para um lado. Felizmente! E o realizador de “Blue Collar”, 1978, “Cat People” (A Felina), 1982, e “Mishima”, 1985, sabe-o melhor do que muitos que andam para aí perdidos no purgatório do cinema, que já nem sequer se situa entre as frias e agrestes correntes de ar do céu e as demoníacas labaredas do inferno.

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