Ciclo Yasujirô Ozu – 120 Anos | Uma iniciativa da Leopardo Filmes e Medeia Filmes
Leopardo Filmes e da Medeia Filmes celebram o talento de Yasujirô Ozu com um ciclo especial dedicado à carreira do cineasta japonês.
Foi e para os devidos efeitos continua a ser o mestre soberano do cinema japonês, felizmente nada desconhecido e cada vez mais divulgado e acessível junto do público que gosta de cinema com C grande. Estou a falar de Yasujirô Ozu, nascido em Tóquio a 12 de Dezembro de 1903 e falecido na mesma cidade e no mesmo dia, sessenta anos depois, a 12 de Dezembro de 1963. Esta coincidência de datas, mesmo que não acreditemos no destino, remete-nos para qualquer coisa de metafísico se pensarmos que estamos aqui e agora a recordar a sua memória, como disse, sessenta anos após a sua morte e cento e vinte anos após o seu nascimento.
NA VERDADE DO CINEMA, OS LAÇOS FAMILIARES E OS ROSTOS QUE PERDURAM…!
Todavia, mais importante do que esta fugaz coincidência de números redondos será o facto de podermos hoje concentrar a nossa melhor atenção na obra de um inegável autor que conseguiu construir uma obra ímpar onde o visível e o invisível coexistiram de forma discreta mas absolutamente eficaz num mesmo plano, numa mesma sequência, num mesmo filme. Nas suas magníficas abordagens de um quotidiano reconhecível aos olhos de qualquer pessoa, filmava as rotinas de cada dia com a exuberância de quem as usa para mais depressa as quebrar. Na prática, apostava em poderosos exercícios de filigrana fílmica protagonizados por actores cuja representação surgia como a síntese dos valores presentes no seio de um ambiente a que se podia colar de certa maneira o conceito de família artística, nada que fosse estranho aos mais sólidos contextos de produção da indústria cinematográfica do Japão.
Deste modo, Yasujirô Ozu moldava e credibilizava a composição das personagens que propunha, integrando-as não apenas nas linhas gerais do argumento ou na especificidade de um guião mas igualmente expondo-as, num círculo de cumplicidades, aos seus pressupostos existenciais, filosóficos e religiosos, neste caso, o budismo. Daí resultavam projectos eminentemente pessoais defendidos pelo realizador e argumentista como se neles concentrasse o desejo de articular um diálogo permanente entre profissionais do mesmo ofício, não importando se estavam à frente ou atrás da objectiva. Todavia, não deixava de existir uma hierarquia, até porque ela fazia parte do modus operandi dos estúdios por onde circulou o seu saber e arte.
Para além das suas aptidões como director de actores, Yasujirô Ozu propunha aos Directores de Fotografia que enquadrassem composições de objectos inanimados que intercalava na montagem, os seus famosos planos fixos, que usava como pausas dinâmicas das narrativas e onde se vislumbrava uma estética similar aos das naturezas mortas ou da pura fixação da realidade circundante, dando-lhes uma carga simbólica que fazia deles peças essenciais para a percepção objectiva do que de subjectivo elas antecipavam ou prolongavam. Dito de outro modo, ele sabia como poucos o peso dialéctico da imagem conjugada com subtis apontamentos musicais que muitas vezes as pontuavam sinalizando a sonoridade atribuída a um espaço ou a uma acção concreta, ou seja, aquilo a que eu chamo cinema em estado de graça. Para mim, pelas razões apontadas e por muitas mais que podia destacar, Yasujirô Ozu perfila-se como uma das figuras maiores da sétima arte, e não apenas da indústria cinematográfica japonesa. Trata-se, sem sombra de dúvida, de um dos poucos cineastas que, não obstante a sua condição humana e mortal, conquistou por mérito próprio (e no início de carreira contra não poucas adversidades inerentes ao quadro político e militar do Japão militarista e imperialista) um lugar cativo no friso mais selecto e sagrado do panteão da História Mundial do Cinema.
Na verdade, Yasujirô Ozu deu-nos a ver nos seus filmes não apenas a superfície mas também a mais profunda dimensão da alma humana, sobretudo na sua obra a partir do final dos anos quarenta, os da consolidação gradual da reestruturação democrática do seu país, onde sempre fez questão de salientar a identidade nacional como pedra fundadora de uma sociedade que devia permanecer confiante no futuro mas imune a valores culturais e idiossincráticos importados do exterior que pudessem esmagar a perene herança histórica, social e cultural do ser e estar nipónico. Nomeadamente, os códigos redutores da liberdade de pensamento que eram insinuados ou impostos pela censura e pelas cartilhas da lógica de ocupação americana na sequência da capitulação do Japão em 1945. Não era porém a rejeição pura e dura do outro. Por exemplo, alguns filmes americanos (de Ernst Lubitsch, entre outros) foram fonte de inspiração que ele não desdenhou, sendo visível a influência que exerceram no início da sua actividade. Tratava-se, isso sim, sobretudo a partir do limiar dos anos quarenta, de afirmar a identidade própria de uma nação.
No que lhe dizia respeito, isso era realizado através da opção muito clara de erguer um corpo fílmico em que a família e as relações entre homens e mulheres nascidos e criados no Japão fossem a matéria principal, sendo aqueles os que deviam definir o sentimento de um povo a que se dava corpo e alma através do material ficcional assumido como cimento dessas mesmas relações, inclusivamente na interpretação com rigor milimétrico das muitas e inexoráveis contradições entre o velho e o novo – uma equação por diversas vezes associada ao seu estilo afortunadamente quase impossível de catalogar e que na prática resultava seguro e pleno de criatividade. Modelo existencial situado habitualmente entre o conservadorismo pacificador da experiência vivida e uma renovada fúria de viver. Por isso costumo dizer que os filmes de Yasujirô Ozu são bons para apaziguar os demónios que atormentam as nossas almas. De facto, visionamos uma e outra e ainda outra das suas obras sem que elas nos retirem a energia capaz de mover montanhas, antes pelo contrário. Transcendência, sim, mas integrada pela mais sublime força redentora da matéria e do espírito. Para usar um conceito que porventura encontra eco na actualidade, uma obra plena imbuída de uma radicalidade livre.
Dito isto, altura para saudar a excelente iniciativa da Leopardo Filmes e da Medeia Filmes que nos dão agora a ver ou rever em estreia dois filmes do realizador, comercialmente inéditos em Portugal, “Nagaya Shinshiroku” (História de Um Proprietário Rural), 1947, e “Tokyo Boshuku” (Crepúsculo em Tóquio), 1957. Mas não ficarão sozinhos para visionamento no grande ecrã das salas de cinema, onde eles devem ser vistos para melhor apreciar as suas inexcedíveis qualidades, fabulosas cópias meticulosamente restauradas em 4K. Para as secundar e nalguns casos complementar, distribuidor e exibidor decidiram organizar um ciclo que as enquadrasse, intitulado “Yasujirô Ozu, 120 Anos”, onde se encontram algumas das obras-primas já anteriormente estreadas do mestre. Por ordem cronológica, “Banshun” (Primavera Tardia), 1949, “Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio), 1953, “Higanbana” (A Flor do Equinócio), 1958, “Hoayo” (Bom Dia), 1959, “Akibiyori” (O Fim do Outono), 1960 e “Samna No Aji” (O Gosto do Saké), 1962.
Não me perguntem quais deles mais gosto, porque não alinho nessas listas de circunstância. Direi antes que qualquer das oito longas-metragens vale cinco estrelas, o 100/100 da MHD. Mais do que isto, só se inventar uma nova escala. Enfim, confesso que para um ou outro filme, os que levaria para a ilha deserta, podia atribuir uma classificação de seis estrelas em cinco. Há pelo menos uns quatro deste lote que, sem qualquer favor, merecem essa distinção.
Por agora fica aqui a apresentação das estreias e não só (para os cinéfilos seguramente algumas das mais importantes a considerar no próximo mês de Dezembro), assim como informação relevante sobre os filmes do correspondente ciclo:
CICLO YASUJIRÔ OZU – 120 ANOS
“Nagaya Shinshiroku” (História de Um Proprietário Rural), 1947
“Banshun” (Primavera Tardia), 1949
“Tokyo Monogatari” (Viagem a Tóquio), 1953
“Tokyo Boshuku” (Crepúsculo em Tóquio), 1957
“Higanbana” (A Flor do Equinócio), 1958
“Hoayo” (Bom Dia), 1959
“Akibiyori” (O Fim do Outono), 1960
“Samna No Aji” (O Gosto do Saké), 1962
Nos próximos dias publicarei igualmente a crítica das longas-metragens agora estreadas, duas obras maiores que se mantinham comercialmente inéditas no nosso país.
João Garção Borges