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Napoleão, a Crítica | Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby no centro do novo épico de Ridley Scott

Ridley Scott dá a conhecer o reino de Napoleão Bonaparte, com um filme liderado pelo talento de Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby!

Há dois momentos, digamos, providenciais na mais recente longa-metragem de Ridley Scott, “Napoleon” (Napoleão), 2023, planos isolados ou breves sequências de planos que no espaço subjectivo de poucos segundos nos dão a ver e ouvir mais do que horas e horas de narrativas concebidas para nos fazer o retrato “maior do que a vida” desta ou daquela personagem num determinado contexto histórico. Neste caso, estamos perante a versão revista e actualizada da vida e personalidade do génio da intriga político-militar, síntese biográfica mas não necessariamente exemplar do conhecido protagonista que dá nome a esta nova abordagem cinematográfica de um homem, um estadista e um líder face ao seu destino e ao dever colectivo de um país que do meio do caos viu nascer uma nova era.

UM BURACO DE BALA NO BICÓRNIO E O DESTINO DO HOMEM PROVIDENCIAL…!

Napoleão
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Deste modo, o filme “Napoleão” procura “resumir” nos seus 157 minutos alguns dos momentos chave da História de França e do Mundo, particularmente da Europa entre a Revolução Francesa de 1789 e a morte de Napoleão Bonaparte, por fim derrotado e exilado na Ilha de Santa Helena, a 5 de Maio de 1821. O primeiro momento premonitório de carácter providencial surge logo ao início. Durante a execução de Marie Antoinette, morta na guilhotina, desgrenhada, insultada e rodeada por uma multidão hostil e ululante que se regozijava com o facto de ver rolar a cabeça de um dos representantes maiores da odiada monarquia, o jovem Napoleão (Joaquin Phoenix) aparece-nos como um ser anónimo no meio da confusão organizada, discreto, algo cínico, de aparência circunspecta e sobretudo com um olhar introspectivo, como se o realizador nos quisesse imediatamente dizer que aquela era a personagem que no fim de um regime já estava a pensar no dia seguinte, convicto do seu futuro mas em rota de colisão com o novo poder e os aparentes excessos gerados pelo então prevalecente e conturbado processo revolucionário em curso. O segundo momento dura poucos segundos e acontece no desenrolar dos bem coordenados minutos da reconstituição da Batalha de Waterloo (18 de Junho de 1815).

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Desta vez, estamos no alto de uma colina, na posição onde se encontrava o general Arthur Wellesley, Duque de Wellington (1769-1852). Neste segmento observamos a fase que precede os disparos da artilharia francesa, e a certa altura vemos um atirador especial informar o general de que Napoleão estava na sua mira, podendo assim atingi-lo sem grande dificuldade. O francês nascido na orgulhosa Córsega, alheio ao que se passava ao longe do outro lado da barricada, parecia imóvel, com os olhos fechados, protegido da chuva inclemente que caía no local onde ocorreram os mais agrestes e sangrentos confrontos, combates corpo a corpo combinados com intensas cargas de cavalaria. Mas o Duque de Wellington proíbe o seu sniper de premir o gatilho, que muito provavelmente acabaria com a vida de Napoleão, podendo colocar um ponto final nas hostilidades. E di-lo de forma airosa, como quem fala da guerra como se fosse um jogo de cavalheiros onde os detentores das mais altas patentes, sociais e militares, não andavam para ali a matar-se uns aos outros. Deliciosa forma de Ridley Scott definir com venenoso sarcasmo o arrogante conceito aristocrático de quem, por outro lado, não hesitava em lançar para a morte os seus homens como carne para canhão, obrigados a cumprir estratégias que nem sempre eram as melhores e nem sempre os levavam aos píncaros da glória.




Durante uma carga dos seus atacantes, Napoleão, mais exaltado do que seguro, investe contra os ingleses fazendo-se acompanhar pelos seus mais próximos companheiros de armas, procurando com algum desespero o caminho para a vitória que, como se sabe, acabou por não acontecer. E será nesta altura que o sniper, desobedecendo ao que lhe fora ordenado, dispara. Só que não atinge o alvo desejado mas apenas o chapéu de Napoleão, o bicórnio que fica assim com um bem pronunciado orifício de bala que o atravessou numa das abas. Parece um episódio fortuito no meio da carnificina geral, mas o grande plano que o realizador dedica ao imperador a olhar para o campo inimigo sem se aperceber do “milagre providencial” que o impediu de morrer dá-nos um sinal visualmente relevante de que a realização queria sublinhar a figura de Napoleão como uma personagem diferente das demais.

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Podemos ou não acreditar no destino e na fortuna que aqui se desenha sob o signo da manipulação fílmica, mas poucos serão os que, embalados pela emoção desse instante, são capazes de ignorar que Napoleão sai deste incidente, quer se acredite ou não, como alguém que vive com a protecção de algo que o próprio não controla, quase se poderia dizer uma qualquer entidade superior que o impedia de morrer nas suas inúmeras incursões bélicas. Protecção consubstanciada por uma espécie de diáfano manto divino que se manifestava em diferentes episódios, como por exemplo o da bala de canhão que despedaça o peito do cavalo de Napoleão, saindo o cavaleiro ileso, durante o cerco de Toulon em 1793.

Napoleão
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Ridley Scott quer fazer-nos crer que aquele homem fora bafejado pela providência divina, seja lá o que isso for, a mesma que o imperador invoca quando se refere ao facto de ser ele o homem certo no lugar certo, o rosto do poder da França, o país que encara como a sua primeira amante, paixão que partilhava com a igualmente sempre amada primeira mulher, a imperatriz Joséphine de Beauharnais (1763-1814), interpretada no filme pela actriz Vanessa Kirby. Em “Napoleão”, estas duas personagens, nação e imperatriz consorte, irão partilhar o coração do homem providencial. Mesmo quando ambas o empurram para fora de campo, ele parece ser atraído uma e outra vez pela energia de uma qualquer força magnética que o impele a regressar. Mulher e Pátria, uma e só forma de pronunciar o binómio Amor e Poder. Mulher amada mas não fiel que, aliás, ousara dizer que ele sozinho não valeria grande coisa.




Na verdade, em grande medida esta biografia ficcionada, não obstante ser baseada numa selecção discutível de acontecimentos reais, acaba por ser sustentada do ponto de vista estrutural numa cronologia dos factos e figuras que de uma maneira ou de outra influenciaram o percurso de Napoleão e alimentaram a sua ambição, sendo a dialéctica entre a vida pública e a privada a poderosa força motriz que vai dar maior substância aos acontecimentos relatados, sobretudo os inerentes ao quadro mais íntimo do casal imperial. Há mesmo no argumento um desvio sistemático para os assuntos de alcova. Felizmente encenados com a dura e crua noção de que um homem nem sempre se comporta com a dimensão compatível ao seu estatuto social e ainda ao elevado nível de responsabilidade do seu cargo político e militar. Napoleão parece um ser algo básico nas relações sexuais que estabelece com a mulher.

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Nesses actos prosaicos procura alcançar o prazer, mas igualmente um outro objectivo mais forte do que a satisfação pessoal, ou seja, gerar rapidamente um herdeiro. Desígnio imperial de perpetuação do poder pessoal e familiar que Joséphine não será capaz de preencher. De certo modo, a não consumação do que seria expectável afecta o destino de ambos e constitui o início do fim de um período que culmina na derrota de Waterloo, o desaire que irá empurrar Napoleão para um lugar longe da ribalta e onde já não consegue sequer convencer um grupo de meninas ainda jovens, mas já perspicazes, de que fora o responsável pelas suas glórias passadas, fossem elas de verdade ou mitificadas para mascarar os reveses. Na prática, algumas dessas glórias não passavam disso mesmo, memórias que os dias iam apagando, incluindo as subjacentes a um novo matrimónio com Marie-Louise de Habsburg-Lorraine (1791-1847), arquiduquesa da Áustria que veio preencher, para efeitos de Estado e descendência, o vazio deixado ainda em vida por Joséphine de Beauharnais.

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Para além desta abordagem mais subjectiva da personalidade de Napoleão face aos imponderáveis da existência, Ridley Scott não esqueceu a necessidade de manipular, no contexto da sua gestão dramática, os actos certeiros e os imponderáveis que permitiram a Napoleão subir na hierarquia e conquistar a cumplicidade de outros que como ele assumiram de forma clara e directa o gosto do poder, não apenas pelo poder mas pelos benefícios materiais que o seu pleno exercício permite. Naturalmente, a sua interpretação da ascensão e queda do homem providencial não podia deixar de referir as batalhas que melhor contribuíram para o catapultar para uma posição que não lhe caiu no colo por acaso, e muito menos por artes divinas.




“Napoleão” assinala assim, de forma exuberante mas sintética, as proezas militares que antecederam e se seguiram ao Golpe de Estado que fez de Napoleão Bonaparte o homem forte de uma França que iria ver a República ser posta em causa por um sonho de expansão colonial e imperial. Nesta área, será particularmente eficaz a notável e muito precisa coreografia bélica desenvolvida para nos dar a amplitude do ataque ao Forte de Toulon, em que os ingleses foram desalojados pela astúcia da estratégia desenhada pelas forças francesas onde Napoleão se irá destacar como um verdadeiro e arrojado chefe militar. Esta sequência será mais adiante equiparada em intensidade e economia narrativa à da Batalha de Austerlitz (2 de Dezembro de 1805). A derrocada da infantaria e cavalaria inimiga por afogamento nas águas geladas do campo de batalha constitui um modelo do melhor e mais espectacular que os efeitos especiais e visuais nos podem proporcionar no cinema dos nossos dias.

Napoleão
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No entanto, Ridley Scott e a sua extensa equipa coordenaram a parafernália de pormenores realistas inerentes ao contexto de selvajaria guerreira sem exageros inúteis, filmando as situações limite sem as ampliar artificialmente com o mero e rafeiro objectivo de excitar e promover, digamos, o consumo de pipocas. Opção que faria, isso sim, com que o filme fosse igualmente por água abaixo. Da campanha do Egipto, a produção escolheu a Batalha das Pirâmides sem abordar a ocupação de Alexandria. Percebe-se. Do ponto de vista visual, a monumentalidade das Pirâmides e a imponente presença da Esfinge garantiam a identificação quase imediata da matéria que se quer fazer passar, ou seja, Napoleão no domínio dos antigos faraós. Ele vai mesmo observar o rosto mumificado, olhos nos olhos, de um provável monarca egípcio após mandar abrir o respectivo sarcófago. Mais uma vez o novo poder face ao antigo poder, que ele num gesto intencional “derruba” com um simples dedo.

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Trata-se aliás de outro momento exemplar para definir a maneira de ser e estar de Napoleão, mas desta vez nada providencial. Muito arrogante e até certo ponto humano, por muito que nos custe aceitar o gesto. Nada mais digo sobre esta sequência, vejam o filme para melhor compreenderem e apreciarem o que acabei de dizer. Destaque ainda para a já referida Batalha de Waterloo, cujo desfecho fica claro mas que na minha opinião precisava de maior contextualização no que diz respeito ao quadro das alianças que nela participaram. De igual modo, durante a invasão da Rússia, a entrada na cidade de Moscovo deserta, que podia ocupar muitos e bons minutos, serve sobretudo para dar um primeiro sinal da inversão dos ventos da guerra que passaram a contrariar o plano mais vasto de domínio napoleónico que até ali parecia invencível.




Seja como for, nas contas finais dos prós e contras relativos ao “Napoleão” proposto por Ridley Scott e pelo argumentista David Scarpa, se nunca atinge o nível da reconstituição das batalhas do magnífico “Guerra e Paz”, 1966-1967, e ainda do muito interessante “Waterloo”, 1970, ambos do realizador e actor soviético Sergei Bondarchuk, por si só cumpre perfeitamente os objectivos mínimos. Não obstante, ficamos com a sensação de que o seu futuro no streaming, e numa eventual versão alargada, possa ver acrescentado mais sangue, suor e lágrimas, quem sabe um maior e mais inebriante fulgor épico, em suma, a confirmação da robustez de uma produção que no geral merece para já a nossa melhor atenção.

Napoleao 10 filmes a nao perder nos cinemas ate ao fim do ano 2023
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Mas há que sublinhar algo de muito evidente: filmes como este devem ver visionados de preferência e em primeiríssimo lugar num grande ecrã de uma grande sala de cinema. Os que puderem, não hesitem e façam o favor de ir ao IMAX mais próximo das vossas casas.

Napoleão, a Crítica
Napoleão

Movie title: Napoleon

Director(s): Ridley Scott

Actor(s): Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Rahim, Rupert Everett, Mark Bonnar, Paul Rhys

Genre: Drama, 2023, 158min

  • João Garção Borges - 60
  • Rui Ribeiro - 80
  • Maggie Silva - 50
63

Conclusão:

PRÓS: Muito do que disse e muito do que ficou por dizer. Mas destaco no elenco o actor protagonista, Joaquin Phoenix, que atribui a dose certa de brutalidade ao comportamento de um Napoleão que não era propriamente um homem de boas maneiras e muito menos um grotesco imitador da aristocracia decadente. Há uma ambiguidade permanente na sua maneira de ser, excepto no campo de batalha, que desconcertava quem com ele se cruzava, e isso, seja historicamente factual ou não, para o que nos interessa do ponto de vista ficcional serve como uma luva ao quadro de composição de uma personagem maior do que a vida mas que no fundo era um simples mortal, como outro homem qualquer.

CONTRA: Sabem a pouco algumas das incursões do filme por batalhas decisivas na carreira militar de Napoleão. Será que as vamos ver numa versão para streaming? Se assim for, seria interessante estrear a versão ampliada em sala, nem que fosse por um período limitado. Porque o grande ecrã não se valoriza apenas numa questão de escalas. De facto, a verdadeira escala corresponde ao núcleo duro dos projectos que nos falam de personagens mortais que, por razões próprias e circunstâncias da História, atingiram um lugar no olimpo dos “maiores do que a vida”.

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