Atlantide©Nitrato Filmes

‘Atlantide’, em análise

O aclamado video-artista e cineasta italiano Yuri Ancarani, em ‘Atlantide’, mostra-nos a cidade de Veneza como nunca vimos antes no cinema. Um filme que é quase uma obra-prima da arte e do cinema contemporâneo. Estreia na próxima quinta, 14 de Abril.

‘Atlantide’, do aclamado video-artista e cineasta italiano Yuri Ancarani (n. Ravenna, 1972), — esteve em 2016 no New Directors/New Films, de Espinho, também com o assombroso ‘The Challenge’ — é um uma verdadeira obra-prima do cinema contemporâneo. Foi um dos primeiros filmes a ser exibido na secção Orizzonti do Festival de Veneza 2021, estreou recentemente na 15ª Festa do Cinema Italiano (na secção Altre Visioni) e chega agora às salas de cinema nacionais, para nos mostrar uma Veneza completamente diferente e como nunca vimos antes no cinema. ‘Atlantide’ refere-se obviamente a Atlantis (Atlântida), a famosa cidade submersa da mitologia grega e platónica e aqui Veneza é vista também como a metrópole marinha, onde água corre pelas suas ruas entre os seus edifícios e ilhas. A cidade de Veneza é-nos absolutamente familiar a nível visual, quer lá tenhamos estado ou não e por isso não é necessário mencionar as referências cinematográficas anteriores, que a descrevem como a ilha dos amantes; ou destacar no filme os lugares da nossa tentação de fotografar obsessivamente, as suas pontes, as suas ruas tortuosas e escuras ou o tráfico de gôndolas, vaporettos ou outros barcos de transportes de cargas ou pessoas. O filme segundo o realizador Yuri Ancarani, começou praticamente sem argumento ou personagens. A história desenvolveu-se ao longo de quatro anos de observação, em que conheceu e acompanhou um grupo de jovens venezianos. Os diálogos e situações são retirados mesmo das suas vidas reais e concretas. Ancari esforça-se assim por nos mostrar a Sereníssima (não tão serena assim…) de uma forma diferente, optando por observar esse caráter civil da cidade, mas de um ponto de vista revelador e noturno.

VÊ TRAILER DE ‘ATLANTIDE’

Na forma de uma ficção contaminada pelo documentário o realizador constrói um espantoso e hipnótico retrato desse inquieta juventude veneziana, saída dos confins da noite; ou melhor a história de verdadeiros gangs de jovens, que vivem em Veneza, nos seus subúrbios ou nas várias ilhas da Laguna, mais ou menos desertas, entre os campos de alcachofras e os canais da cidade. Parecem muitos, mas são cada vez menos e cada vez mais perdidos (como Daniel, o personagem principal) quanto ao seu futuro, devido ao inexorável despovoamento da cidade, esvaziada de habitantes e repleta quase sempre de uma enorme massa de turistas. ‘Atlantide’ funciona quase como uma investigação documental e social sobre estes aspectos menos conhecidos da grande Laguna e da Sereníssima. Yuri Ancarani mostra-nos as incursões desses jovens na cidade dos canais e da sua vida quotidiana e inconsequente, entre a pequena delinquência, botellons, festas, sexo, consumo e tráfico de drogas, através de Veneza, pelos canais ou pela lagoa a bordo dos pequenos barcos chamados ‘barchini’, (pequenos barcos a motor), em vez de serem motoqueiros, de terra firme. Estes barcos são personalizados com luzes LED e equipados com aparelhos de som altos e motores potentes, para fazerem corridas a alta velocidade, entre eles ou para encetarem fugas e desafios às lanchas da polícia local.

Atlantide

Daniele (Barison), o personagem principal e real é um jovem distraído e taciturno que vive em Sant’Erasmo, uma das ilhas das margens da Lagoa de Veneza. Vive com o avô e vai se desenrascando à custa de pequenas tarefas e da sua inteligência funcional, isolado até do seu grupo de amigos. Ocupa-se explorando uma existência incerta, em busca apenas de prazer e adrenalina, expressa no culto do seu barchino (barco a motor). Na verdade, a sua obsessão e dos outros jovens venezianos, concentra-se na reconstrução de motores cada vez mais potentes, para transformar as pequenas lanchas da lagoa, em barcos de corrida perigosamente rápidos. Daniele também sonha bater o recorde de velocidade no barchino, que o levará ao topo da tabela de classificação, registada num dos postes de madeira, que servem de marcadores dos canais. A sua namorada Maila (Dabalà) ostenta um piercing no lábio superior, é-lhe completamente dedicada, mas não aprecia a sua perigosa e neurótica paixão. O sonho de Daniele, para ganhar o respeito dos amigos, pode mesmo acabar em tragédia. O declínio que corrói as relações, o ambiente e os hábitos dessa geração sem raízes é assim observado em ‘Atlantide’, a partir da perspectiva atemporal da belíssima paisagem veneziana e dos seus arredores, as ilhas e a Lagoa, que muda de tons ao longo das estações do ano e das horas do dia. O ponto de partida é este simples conto de iniciação masculina centrado em Daniel. Porém violenta e destinada ao fracasso, esta história aparentemente verdadeira, explode arrastando consigo uma cidade fantasma nas madrugadas, quase numa espécie de naufrágio psicadélico nocturno. Mesmo assim, o cineasta consegue estabelecer  igualmente uma curiosa dialéctica entre o jovem veneziano da classe baixa e as massas turísticas que por lá passam diariamente. Num eloquente reverso, uma turista captura mesmo Daniele com a câmera do seu telemóvel, apontando-o como uma espécie de atração local, um curioso personagem que habita nesse ambiente exótico. No entanto, o filme está sempre ao lado dos moradores de Veneza, muitas vezes quase invisíveis durante o dia, sendo os turistas uma presença alienígena na realidade da noite.

Atlantide
Atlantide/©Nitrato Filmes

O filme, ainda sem as marcas da pandemia e também com os barcos de cruzeiro a atravessar a cidade — agora felizmente já estão proibidos — parece querer registar de perto a grande mudança que Veneza e sua lagoa estão a viver, através de uma perspectiva que parece quase indetectável e muito particular aos olhos dos turistas e viajantes: o olhar desses jovens, das suas vidas, das perspectivas e também dos seus barcos, que durante o dia são invisíveis. A fotografia e a banda sonoras são magnificas e alucinantes. Há um momento de uma perseguição da polícia a uma barchino que é uma verdadeira sequência de um filme do 007 James Bond. Porém, o realizador, guarda-nos a grande surpresa para o epílogo e para um grand finale inolvidável. É verdadeiramente assombroso esse desenlace final que dura cerca de dez minutos que abandona a representação realista, para criar um circuito visual psicadélico que poderia ser reproduzido isoladamente numa galeria ou numa das Biennale de arte contemporânea de Veneza. Embora pudéssemos acusar este fragmento de estar muito desconectado das sequências anteriores, é notável ver-mos a transformação dos canais venezianos num abismo de curvas retorcidas, com uma grande força didática, obrigando-nos a observar as coisas de forma diferente, para não perdermos de vista o que são na realidade. Uma trip mesmo! Por isso e por tudo, ’Atlantide’ é um filme genial e quase um obra-prima!

JVM

Atlantide, em análise
Atlantide

Movie title: Atlantide

Movie description: O aclamado video-artista e cineasta italiano Yuri Ancarani em ‘Atlantide’, mostra-nos Veneza como nunca a vimos antes no cinema, através da perturbadora história de Daniele e dos seus amigos venezianos, condutores dos rápidos barchino.

Date published: 11 de April de 2022

Country: Itália, França, EUA, 2021

Duration: 100'

Director(s): Yuri Ancarani

Actor(s): Daniele Barison, Jacopo Torcellan, Bianka Berényi, Maila Dabalà

Genre: Ficção, Drama

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  • José Vieira Mendes - 95
95

CONCLUSÃO

Atlantide’, do italiano Yuri Ancarani, é um filme fabuloso que nos mostra outro lado de uma Veneza sem turistas, povoada por jovens, pequenos delinquentes, que se transportam em pequenos barcos a motor a alta velocidade, numa cidade e nas ilhas onde vivem cada vez menos habitantes. Yuri Ancarani recupera parte da ideia fantástica  da cidade submersa do mito grego, para esta sua segunda longa-metragem, na qual incorpora elementos de ficção ao seu típico olhar documental. O resultado é uma obra  notável a roçar o sublime, com um discurso suficientemente aberto para que nenhuma interpretação pessoal pareça exagerada. Imperdível para os amantes de Veneza e para os outros…

Pros

Tudo neste filme, a história de Daniele, as corridas e perseguições nos canais, mas sobretudo a alucinante sequência final absolutamente hipnótica dos canais e pontes de Veneza.

Cons

É mesmo deixar passar ao lado e perder este filme que não é de todo um bilhete postal de Veneza, mas antes uma obra notável de arte e do cinema contemporâneos.

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