Better Call Saul, terceira temporada em análise

Numa época em que tantas vezes se cai no exagero fácil, Better Call Saul é digna de ser considerada uma obra-prima. Vince Gilligan e Peter Gould têm nas mãos uma ilha no atual panorama televisivo. Tanto tempo e paciência a construir, geram agora uma destruição ou colapso que dói mais.

Show, don’t tell. Regra de ouro na escrita para ecrã segundo tantos teóricos como Robert McKee ou Syd Field, o conceito literário atribuído a Anton Chekhov faz sentido. Depende, depois, de uma panóplia de variáveis. Muitos autores, por receio de que o espectador não apreenda tudo, deixam esta máxima para segundo plano e entregam toda e qualquer reflexão numa bandeja. Mas a ação pode falar por si, sem diálogos. Haja para isso equipas capazes. Pensamentos integrados e coerentes. E, claro, atores que saibam comunicar.

Better Call Saul é uma ilha no atual panorama televisivo. A série da AMC valoriza e respeita o espectador, e cada episódio é uma demonstração de como dosear a exposição feita. Vince Gilligan e Peter Gould desafiam o espectador a descobrir e desenhar as personagens. Um estudo gradual em que o diálogo serve como confirmação.

Better Call Saul jimmy chuck

Quando em 2013 foi anunciado que Saul Goodman ia ter a sua própria série, dificilmente os fãs de Breaking Bad (a meu ver, o melhor que já se fez em televisão, com ligeira vantagem sobre The Wire) seriam capazes de adivinhar o peso e a intensidade dramática a que seria sujeito o advogado-caricatura, o comic relief manhoso, coadjuvante de Walter White e Jesse Pinkman.

No seu âmago, Better Call Saul e Breaking Bad são mais parecidos do que aparentam à superfície. O tema ou questão de partida é similar: até que ponto podemos fugir àquilo que somos, à nossa natureza? Enquanto que Walter White (Bryan Cranston) acordou o seu pior lado quando sujeito às piores circunstâncias, em Better Call Saul vemos Jimmy McGill aka Saul Goodman a tentar fazer tudo bem, lutando contra os instintos que, tragicamente, o irão conduzir ao ponto de chegada, já conhecido.

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Better Call Saul é criticada amiúde pelo seu ritmo lento. Curiosamente, o mesmo defeito era apontado às primeiras temporadas de Breaking Bad, e esquecido quando a série “explodiu”. A maravilhosa gestão de ritmos, pausada e paciente, de BCS é 1) lógica e 2) promissora.

Lógica mediante as personagens. Walter White e Jesse Pinkman, de Breaking Bad, eram sinónimos de impulsividade. Nervosismo. Energia. Quando pensamos em Jimmy McGill, Mike, Chuck, Kim ou Gus, vemos pessoas ponderadas, estudiosas e calculistas. Meticulosos pensadores.

Promissora porque, barradas estas primeiras camadas, passa a haver liberdade para agitar as águas. O pay off será maior por já vermos pessoas e não somente personagens, assemelhando-se a narrativa a uma panela de pressão.

Escrita por cirurgiões, Better Call Saul deu vida a um cartoon. Os beats dramáticos parecem coisas menores, quando descritos e não vistos e sentidos, e a jornada de Jimmy McGill (Bob Odenkirk) é tão real que podia ser perfeitamente a vida épica do nosso vizinho do lado.

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Better Call Saul Gus

Ponto assente: esta é a melhor das três temporadas. Aliás, tem existido crescimento de temporada para temporada. E é provável que assim continue. Refinada e rigorosa nos detalhes, já há muito saiu da sombra de Breaking Bad. Embora beneficie sempre da nostalgia e do conforto que carrega ao escrever o passado de um futuro que foi inesquecível.

Globalmente, as duas temporadas anteriores trabalharam um universo bastante restrito de personagens. Aconteceu pouco, mas aprendemos muito. No final da temporada 2, os dados estavam lançados para um confronto de titãs dos irmãos Jimmy e Chuck (Michael McKean), cuja relação dita o batimento cardíaco da série.

Para além de um bónus chamado Gus Fring (Giancarlo Esposito), revelação preparada pelo anagrama das iniciais dos episódios da temporada anterior, e materializada primeiro com a visita ao seu habitat (Los Pollos Hermanos), Better Call Saul brilha desta vez graças a desequilíbrios e consequências. O efeito panela de pressão. O ponto sem retorno.

Better Call Saul Mike

Os dez episódios afastam Jimmy do irmão Chuck. Aproximam Mike (Jonathan Banks) da órbita do narcotráfico, leia-se Gus, Nacho e Hector Salamanca. E levam Kim (Rhea Seehorn) ao limite.

É fascinante acompanhar Mike “a fazer coisas”, seja a elaborada forma como passa de perseguido a perseguidor no primeiro episódio, ou a criativa utilização de um par de ténis. São repescadas várias personagens-satélite de Breaking Bad – Don Eladio, Juan Bolsa, Krazy-8 e Lydia -, Nacho ganha importância, e Howard torna-se menos vazio.

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Mas falar de Better Call Saul é falar de um retrato perfeito das invejas e frustrações dos irmãos McGill. E a receita do sucesso foi simples. Construir um irmão mais novo que só quer sentir-se aceite e ser motivo de orgulho, um anti-herói que faz as coisas erradas pelos motivos certos. E dar-lhe uma oposição, Chuck, devoto ao sentido de justiça e à lei, que nesta temporada não deixa nada por dizer.

A navegar num mar cinzento entre o que é certo e errado, Better Call Saul revela-nos Jimmy McGill, o homem de carne e osso atrás da máscara ou caricatura Saul Goodman. Fá-lo num ritmo corajoso e confiante, com uma cinematografia sem concorrência e, rumo à tragédia, serve-se de um conjunto de atores com background em comédia. Tal como Bryan Cranston, também Bob Odenkirk ou Michael McKean ganharam notoriedade a fazer humor. E muitas vezes é mais difícil fazer e escrever comédia – culturalmente, choramos pelos mesmos motivos, mas rimo-nos de coisas diferentes.

better call saul

Deve-se elogiar o voto de confiança da AMC, uma vez que BCS tem baixado as audiências nos Estados Unidos a cada ano que passa. Uma aposta que se explica por ser a série que pode a curto, médio-prazo valer muitas nomeações e, mais tarde ou mais cedo, prémios. À parte de melhor drama e das categorias técnicas, não será surpresa continuarmos a ver Bob Odenkirk, Michael McKean, Rhea Seehorn e Jonathan Banks entre os nomeados.

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A série que não segue uma bíblia tem nesta temporada vários episódios fantásticos. “Fall”, “Witness” e “Sabrosito”, nomeadamente. Mas nada bate o quinto e o décimo episódios, “Chicanery” e “Lantern”. Em ambos brilha Michael McKean como Chuck, o antagonista com hipersensibilidade a eletricidade e uma das melhores representações de doença mental no pequeno ecrã. Aquele longo monólogo em tribunal e o colapso a esburacar irracionalmente a sua casa, deveriam colocar Michael McKean na pole position para melhor ator secundário.

Better Call Saul Chuck

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Vince Gilligan adora dar-nos pistas. Prepara acontecimentos para que os adivinhemos, mas consegue mesmo assim impactar o espectador graças ao timing e/ou à forma na execução. Em Better Call Saul há acidentes editados como nunca. Há trocas de medicamentos impróprias para cardíacos. E um simples atravessar de um corredor de congelados no supermercado torna-se um desafio para certas personagens.

Não há metamorfose de Jimmy para Saul. Saul está lá, e sempre esteve. É apenas uma questão de tempo, de contexto e de acontecimentos até perder qualquer noção de consciência, qualquer centro moral (o golpe da velhota é cruel, mas Jimmy redime-se depois).

A quarta temporada está confirmada, e o mais provável será Better Call Saul ter 5, ou no máximo 6, temporadas. Rumo à realidade no Cinnabon a preto e branco, há na próxima temporada muita culpa para explorar. Das chamas pode sair a pior versão de Jimmy. E é intrigante aquilo que os autores irão fazer com Kim.

Em 2018 há mais, e uma coisa é certa: com três temporadas, Better Call Saul está ao nível de Breaking Bad. Tem menos momentos e frases emblemáticas, mas compensa noutros campos. Já não está à sombra, e quem sabe talvez um dia consiga mesmo ser melhor. Melhor do que a melhor série de todos os tempos. Para mim.

TRAILER | Nunca Better Call Saul esteve tão bom

Better Call Saul - Temporada 3
Better Call Saul Poster

Name: Better Call Saul

Description: A relação de Jimmy e Chuck atinge proporções catastróficas. Mike aproxima-se do narcotráfico dos cartéis de Gus e Salamanca. Kim é levada aos limites.

  • Miguel Pontares - 94
94

CONCLUSÃO

O MELHOR – A capacidade de navegar num mar cinzento entre o que é certo e errado, a cinematografia sem concorrência, a brilhante construção de personagens e exposição refinada e contida. Neste poema visual, destacam-se os incríveis segmentos “Mike a fazer coisas”, e a relação dos irmãos McGill, que serve de batimento cardíaco à série. Michael McKean merece tudo, e Bob Odenkirk está igualmente excelente.

O PIOR – As baixas audiências que teoricamente não ameaçam a continuidade da série, mas privam muitos espectadores de uma experiência única e a série do patamar de notoriedade justo.

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