Detroit é um retrato cínico, vil e pecaminoso de uma “América Proibida”, que nos dá um valente murro no estômago e ainda se ri na nossa cara. Bigelow arrasta-nos para as ruas segregantes de sessenta e sete, fazendo-nos “cúmplices” de uma tortura psicológica tão real naquela altura como agora.
Detroit de Kathryn Bigelow, poderia refugiar-se no sonho de Martin Luther King, lavando a cara daquele Verão sujo com a liturgia cinematográfica de um desfecho inspirador. Mas Bigelow, não quis ser tão condescende com aquela orgia raivosa de homens iguais perante Deus; Bigelow quis fazer um “statement”, quis “reabrir o processo” daquelas mortes levianas e injustificadas da noite sangrenta no “Motel de Algiers“. E fá-lo como se fosse a voz do povo, como se um deles se esperneasse por entre aquela fúria animalesca com uma câmara oculta como testemunha.
“Bigelow captura a atenção da sua audiência, agredindo-a (no bom sentido) com o lado perverso que ninguém tem coragem de mostrar…”
Num Domingo sem stock de perdões, Bigelow arranca o seu docudrama numa boate clandestina entre a 12 e Claremont, aonde dois combatentes no Vietnam limpavam as vistas e enchiam o espírito com os copos encharcados de bebida cara. Por ali adentro, irrompe logo uma matilha de fardas azuis de peles sem sol, acossando para o cerne da rua os clientes da noite como se de criminosos se tratassem, acicatando os ânimos dos vizinhos afro-americanos descontentes com a rusga. Chamavam-lhe uma “blind pig”, e visavam todos os estabelecimentos que servissem álcool fora de horas. A partir daí, Detroit descamba como um delinquente que perde o rumo.

Ninguém conseguiu pregar olho nos cinco dias subsequentes. Pilhava-se tudo e mais alguma coisa; alvejava-se pelas costas o pobre coitado que só queria uma migalha de pão; apedrejavam-se janelas residenciais e vidros de viaturas alheias…E como se não bastasse, Bigelow ainda descarrega todo o armamento bélico de um exército tendencioso, brutalizando-nos num colete de forças desumano e impotente. Mas é assim, que Bigelow captura a atenção da sua audiência, agredindo-a (no bom sentido) com o lado perverso que ninguém tem coragem de mostrar, o monstro na sua forma mais primitiva antes de ser maquilhado para o mundo visualizar.
“(…) Assistimos a um autêntico massacre físico e psicológico (…) de cortar os pulsos.”
O guião é da autoria de Mark Boal, que regressa de “Zero Dark Thirty” com o dedo inclinado para a descortesia. Como tal, a abordagem à matéria factual de Detroit só poderia ser feita de um modo nada convencional: “esta não é uma estória sobre o poder individual; é uma estória sobre o poder demolidor de uma força policial, que esmaga a liberdade individual”. Krauss (Will Poulter) é o expoente máximo dessa autoridade coerciva, que esconde a ilegalidade dos seus atos debaixo da legalidade da sua farda. Vê-lo de caçadeira em riste com aquele sorriso sádico chega a ser tão memorável como repugnante; mais ainda quando este é chamado à esquadra para ser acusado de homicídio e reage como se fosse algo trivial. É com este tipo de imoralidade sórdida que engolimos Detroit a seco, num desconforto permanente igualmente incapaz de nos afastar para bem longe.

Mas entre aquela catadupa de fotogramas monocromáticos relatados pelo sulista da época, e as descargas de violência gratuita numa cidade sitiada, lá refrescamos os sentidos com as vozes sedosas dos “The Dramatics“, um quarteto R&B de jovens cantores da terra, que vêm a sua estreia cancelada no mítico “Fox Theatre”, devido à iminência de desacatos. Um cliché apropriado ao obscurantismo daqueles tempos ou um simples devaneio cármico, o malogrado nome artístico daqueles rapazes com fome de palco será posto à prova no “estúdio” mais dramático de todos, o Motel de Algiers. Ali, entre a vulgaridade e o cheiro a promiscuidade, Larry (Algee Smith) lança logo aquele olhar felino de vocalista, mostrando ao seu compincha Fred (Jacob Latimore) como se engata duas caucasianas de Ohio.
“Bigelow faz de Krauss o carrasco de uma mensagem dura sem o habitual contrapeso equivalente.”
E enquanto os putos travam conhecimentos de terceiro grau, outros como Carl (Jason Mitchell) resolvem provocar a patrulha exterior, colocando a “Batalha de Algiers” na manchete dos jornais. O edifício mal amanhado com aqueles letreitos de neons retro, é prontamente cercado como se de um conflito entre dois Estados se tratasse, com Krauss e os seus lacaios a picarem o ponto da ocorrência. Dali em diante, assistimos a um autêntico massacre físico e psicológico com as vítimas esborrachadas contra a parede para um interrogatório obsceno de cortar os pulsos. À procura do autor de um alegado disparo, tem de existir um culpado a todo o custo, e é nessa tónica obsessiva que Bigelow assenta a sua pesada e severa proposição cinematográfica, chocando-nos com uma autenticidade que não estará ao alcance de muitos.

Bigelow faz de Krauss o carrasco de uma mensagem dura sem o habitual contrapeso equivalente, que apenas encontra em Dismukes (John Boyega), uma tentativa tímida e fugaz de resfriar a toxicidade ambiental promovida por Krauss. Segurança da loja de conveniência na outra margem da estrada, Dismukes tenta representar aquele agente de autoridade bondoso e servil, mas que acaba maniatado pelo peso da maioria racial.
“Engolimos Detroit a seco, num desconforto permanente igualmente incapaz de nos afastar para bem longe.”
Contudo, a intervenção de Boyega possui o condão de minimizar a carga de tensão emocional, que facilmente se poderia desbaratar num histerismo desmesurado. E embora Greene (Anthony Mackie) – um veterano da guerra, ajude a dar corpo ao role de interpretações sentidas e suadas, o fita de Bigelow é totalmente dominada por este mal necessário que é Krauss. Quer se goste ou não deste estilo de narrativa mais unidimensional, é preciso entender que o objetivo de Bigelow em Detroit é o de informar, e como peça documental de entretenimento possui o seu mérito.

Detroit é um filme peculiar, que nos arrasta para o epicentro de uma revolta popular, com o mesmo caráter intimista e a mesma sensação de improviso in loco já vista em outros trabalhos de Bigelow. Por esse motivo, Detroit pode apresentar-se como uma experiência visceralmente real, mas com sofisticação e sentido estético, tal como forma de arte que ainda é. Curiosamente, o background de Bigelow em pintura com influências do expressionismo abstrato de Kooning, convida Detroit a abstrair-se do rigor dos cenários para exteriorizar os sentimentos à flor da pele, se calhar até em demasia. Detroit é, por isso, um agitador, um mensageiro da verdade, que não julga nem fabrica uma via para tal, apenas dá-nos que pensar.