Dunkirk © Warner Bros.

Dunkirk, em análise

Dunkirk é uma epopeia impressionista de gritos mudos e corpos limpos, amarfanhados numa tela catastroficamente bela em constante sobressalto. Nolan reinventa o típico “war movie”, ejetando Dunkirk da violência gratuita do “war porn”.

Dunkirk

“Iremos até ao fim. Lutaremos na França. Lutaremos nos mares e oceanos, lutaremos com confiança crescente e força crescente no ar, defenderemos a nossa ilha, qualquer que seja o custo. Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos.”

E assim rematou Churchill o seu auspicioso discurso em plena voz na Câmara dos Comuns a 4 de Junho de 1940, no rescaldo daquela que ficou conhecida nos anais da estória como a Operação Dínamo. “Drôle de Guerre” ou “Guerra da Mentira” lançaram o mote preambular que abriu as hostilidades da Segunda Grande Guerra. Depois da “Wermacht” (exército alemão) ter invadido a Polónia a 1 de Setembro de 1939 com um “Blitzkrieg” (ataque relâmpago) para reivindicar o “Corredor Polonês”, inviabilizado pelo Tratado de Versalhes após a derrota na Primeira Grande Guerra, um temeroso batalhão ariano de 800 mil soldados nazis marchava agora em direção à majestosa “Linha Maginot“, aonde os Aliados (franceses e britânicos) montavam a sua vanguarda defensiva. Fortalezas, bunkers, artilharia pesada, plataformas de metralhadoras e armas anti-tanque, artilharia anti-aérea, depósitos de munições e postos de observação estendiam-se num raio de quatrocentos quilómetros ao longo da fronteira franco-germânica. Mas a muralha de trincheiras revelou-se insuficiente para travar o flanqueamento da “Panzerdivisionen” de Guderian, que arrepiou caminho pelos Ardenas, encurralando uns e outros contra o Canal da Mancha.

Dunkirk

1. Terra

E chegamos finalmente a Dunquerque, aonde Nolan monta o tripé de uma gigante e maciça lente de 70mm, que cavalga na sombra fugitiva de Tommy (Fionn Whitehead), enquanto as rajadas inimigas farejam a sua morte. Então, caímos subitamente no assento do inferno, já com os olhos vincados e os ouvidos desafunilados, sem grandes falas ou explicações, tal como o “parco” guião que Nolan condensou em setenta e seis páginas vividas e sentidas sem necessidade de legenda. Aqui, pouco interessam os nomes ou as patentes, os heróis ou os sacrificados. Aqui, nada é mais relevante que o relato incomensurável de uma nação, que elevou das areias os seus capacetes sem nada por baixo, que sobreviveu pela união de mãos e braços, pernas e pés comandados pelo somatório dos seus atos racionais, instintivos ou casuísticos.

Hardy é daqueles que consegue falar com o vidro da alma, que se dá bem com o aperto espacial e restrição facial.

Tommy é, por isso, a testemunha mais sincera e honesta de Nolan, aquele refugo improvável que fica para experienciar aquilo que as palavras jamais conseguirão descrever. E que bem se saiu o novato na pele indesejável de um soldado a contas consigo mesmo, que carrega no rosto o estigma da obliteração eminente. Vemos por ele os corpos a darem à costa sinalizando a subida da maré; vemos por ele a correria pelo pontão a furar por mil cabeças combatentes com um estropiado numa maca; vemos por ele os bombardeamentos fustigantes da Luftwaffe (força área alemã) a estoirarem como bolhas de água; vemos por ele os olhares fundos e resignados de Gibson (Aneurin Barnard) e Alex (Harry Styles) que quase choram de esperança por regressarem inteiros a casa…Mas Nolan quis que estas personagens anónimas só existissem no seu presente como cordeiros atirados às feras à espera de um resultado, sem o peso de um passado que caísse nas boas graças do espetador. Nolan despojou os intervenientes da sua bagagem psicológica, e se por vezes essa omissão possa atravessar-nos a mente, a toada implacável daquele cenário de guerra ajuda a mitigar o conteúdo pessoal em favor da causa.

Dunkirk

2. Ar

E enquanto a narrativa quase documentarista quase “malickiana” de Nolan, se demora cerca de uma semana pelo areal explosivo de Dunquerque, outra linha temporal emerge no cockpit de Farrier (Tom Hardy) – um valoroso piloto da RAF (força aérea britânica) com um “Spitfire” mortinho por incinerar as asas de uns quantos “Heinkels”. E percebe-se que Hardy tenha sido o escolhido para se enclausurar num habitáculo com sessenta centímetros em seu redor, suspenso por uma plataforma giratória, amordaçado por uma incómoda máscara de oxigénio.

Tommy é (…) a testemunha mais sincera e honesta de Nolan, aquele refugo improvável que fica para experienciar aquilo que as palavras jamais conseguirão descrever.

Mas Hardy é daqueles que consegue falar com o vidro da alma, que se dá bem com o aperto espacial e restrição facial, tal como já o havia provado em “Locke” e “O Cavaleiro das Trevas Renasce”. E vê-lo a serpentear pelo céu atlântico com o horizonte às cambalhotas na ofegante câmara de Hoyte Van Hoytema (diretor de fotografia), é como estarmos conectados ao gatilho de Farrier. Numa hora compactada, Nolan volta a recortar o tempo para colá-lo mais em diante, sem antes emprestar o seu relógio a Hans Zimmer (produtor musical) para adulterar o ritmo. E ele bem que nos ilude superlativamente com os batuques manométricos e pulsações cardíacas enxertadas nos motores raivosos daquelas velozes máquinas voadoras como trompetas do caos. Collins (Jack Lowden) – o seu wingman – segue-lhe as pisadas com o mesmo furor até Dunquerque, segurando a paisagem da evacuação marítima.

Dunkirk

3. Mar

Famintos, exaustos e contemplativos, assim se encontrava a franja da infantaria de Sua Majetade, enlatados e comprimidos entre o mar e umas tábuas de madeira, à espera que nada lhes caísse encima, a não ser um mísero cobertor e um chá quente. Seria essa a missão do comandante Bolton (Kenneth Branagh), que tentava elevar os ânimos e agarrar os seus homens ao cais, impedindo que a sua voz fosse silenciada pelos estrondos sem demora. Nada nem ninguém saía daquela praia, os navios de salvamento e os contratorpedeiros afundavam mesmo antes de partir.

Nolan volta a recortar o tempo para colá-lo mais em diante, sem antes emprestar o seu relógio a Hans Zimmer para adulterar o ritmo.

Mas Nolan consegue arranjar mais um dia para salvar as tropas encalhadas em Dunquerque, capturando a civilização no iate recreativo de Mr. Dawson (Mark Rylance), que nos píncaros do seu snobismo patriótico de marinheiro aposentado, avança com o seu filho Peter (Tom Glynn-Carney) pelas águas rasantes e inflamadas em busca de sobreviventes. Por entre um hiato de sorte, de perseverança, de providência divina, o seu barquinho de madeira vai atar o tempo que Nolan desentrelaçou, unindo esta sua Inglaterra à sua “finest hour”.

Dunkirk

“Um milagre de salvamento, alcançado pelo valor, pela perseverança, pela perfeita disciplina, pelo serviço impecável, pelos recursos, pela habilidade, pela fidelidade inconquistável, é óbvio para todos nós.”

Dunkirk é, sem sombra de dúvida, o filme de guerra menos convencional da estória do cinema, mas nem por isso o menos apelativo. Nolan tem o mérito de retratar um conflito armado sem nunca revelar fisicamente o inimigo, sem nunca apresentar de bandeja um role de corpos dizimados e ensanguentados. Se vêm à procura de um “Saving Private Ryan” ou um “Platoon” é melhor irem bater a outra porta. Dunkirk é um rosto angustiante, um desabafo introspetivo, um choro engolido, um grito abafado, um silêncio falado, uma sinfonia emocional…

Dunkirk
dunkirk poster

Movie title: Dunkirk

Movie description: “Dunkirk” inicia-se com centenas de milhares de tropas britânicas e aliadas a serem cercadas por tropas inimigas. Encurralados na praia, de costas para o mar, enfrentam uma situação impossível à medida que o inimigo se aproxima.

Director(s): Christopher Nolan

Actor(s): Tom Hardy, Cillian Murphy, Kenneth Branagh

Genre: Ação, Drama, Guerra

  • Miguel Simão - 90
  • Ângela Costa - 90
  • Cláudio Alves - 73
  • Rui Ribeiro - 95
  • José Vieira Mendes - 85
  • Catarina d'Oliveira - 85
  • Maria João Bilro - 80
  • Filipa Machado - 85
  • Miguel Pontares - 85
  • Daniel Rodrigues - 78
85

CONCLUSÃO

No final eles apenas sobreviveram, mas isso bastou. A fita de Nolan é curta, mas absorvente; pouco dialogada, mas freneticamente ritmada; é cirurgicamente contida, mas emocionalmente rica. Dunkirk é um filme que não comunica pela sua mensagem, mas pelos seus feitos. Tecnicamente é irrepreensível, mas isso já seria de esperar vindo de quem vem. Hardy, Rylance, Fionn e Styles reúnem a experiência sénior com a frescura da juventude, materializando competentemente o espirito heróico do primeiro épico de Chris Nolan.

O MELHOR – O realismo cru e palpável sem artíficios e gimmicks visuais; quase ausência de diálogos não retira impacto emocional; manipulação exímia do ritmo da ação; fotografia excecional; banda sonora épica.

O PIOR – A abordagem menos convencional do teatro de guerra poderá não apelar aos mais puristas do género.

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