Efrim Manuel Menuck, Pissing Stars | em análise

Deliberado, conciso, mas sempre lírico e atmosférico, Pissing Stars expõe, sob vários escudos, todos eles escusados, a alma ferida do seu autor, o mítico Efrim Manuel Menuck.

Num mundo ideal, Efrim Manuel Menuck dispensaria quaisquer apresentações. Num mundo ideal, em 1997, teríamos ouvido o OK Computer dos Radiohead, mas não só. Teríamos ouvido também, por exemplo, o impronunciável F♯ A♯ ∞ (nem sei escrever isto no computador, fiz copy paste da internet). Não na rádio, que isso nem num mundo ideal seria possível, mas algures (usem a imaginação) e na íntegra. Num mundo ideal, é a única maneira de ouvir um disco dos Godspeed You! Black Emperor. Em vez disso, no mundo que é o nosso, limitámo-nos a ouvir a “Paranoid Android” e a “No Surprises”. Na rádio, claro. Falemos, então, para este mundo (ou pelo menos parte dele). Lembram-se de 28 Dias Depois? Uma das composições do álbum, a “East Hastings”, aparece lá. Se gostaram, vão ouvir o disco todo (claro) e, já agora, não deixem passar a obra prima Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven (2000), nem o álbum com que assinalaram o seu retorno, após um hiato de quase oito anos, Allelujah! Don’t Bend! Ascend! (2012). Do ano passado é o muito bom Luciferian Towers. Apresentação feita.

Efrim Manuel Menuck - Pissing Stars (2018)
Efrim Manuel Menuck (© Louise Michel Jackson)

Introduzamos agora o homem (ele negá-lo-á a pés juntos) que é o sopro de vida, a cabeça e o coração desta banda. Para além do trabalho com os GY!BE e a sua outra banda Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra, Efrim Manuel Menuck é membro fundamental de uma das mais icónicas editoras independentes, associada ao pós-rock canadiano, a Constellation Records, e co-fundador do estúdio The Hotel2Tango, onde trabalha como produtor e engenheiro de som. No meio desta actividade intensa, encontrou tempo para lançar, em 2011, o seu anterior, primeiro álbum a solo, Plays “High Gospel”. O sucessor chega este ano, marcado pela progressiva experiência com sintetizadores modulares, pelo acontecimento da paternidade e pelo fantasma de um amor doloroso, nunca nomeado mas sempre presente.

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Pissing Stars representa uma inflexão no caminho de um registo mais ambiental, com a distorção da guitarra a recuar e a dar lugar a uma sonoridade mais vaga, mesmo se sempre acre, resultante da exploração, por Menuck, do potencial dos sintetizadores modulares. O anterior álbum a solo apresentava laivos desta direcção, numa fusão psicadélica de loops, amostras sonoras e sons sintetizados com melodias e ritmos retirados um pouco de todo o lado, desde o rock da década de 60 – blues, soul ou os Pink Floyd da era Syd Barrett – até ao krautrock e pós-rock etéreo dos Talk Talk. Mas uma certa indulgência, heterogeneidade e teor algo laboratorial deste primeiro registo a solo são substituídos, em Pissing Stars, por uma economia de meios e clareza de intenção que, ao mesmo tempo que encaminham o novo álbum no sentido da música ambiental, com toda a fluidez e ausência de estrutura que isso implica, também o tornam paradoxalmente mais coeso e conciso.

A coesão de Pissing Stars não resulta de um qualquer plano pré-concebido, posto depois em prática. Nasce de uma concentração, por um lado, num certo tipo de instrumentação e, por outro, num pequeno mas candente núcleo de preocupações afectivas. O tema de abertura “Black Flags Ov Thee Holy Sonne” estabelece, logo à partida, as regras do jogo. Um latente e repetitivo motivo de baixo, distorcido e de travo industrial, afundado na mistura, sobre o qual se vão desenrolando curtos motivos melódicos, de andamento lento e tom melancólico, e o canto lamentoso e fatigado de Efrim (“the good times aren’t the good times anymore”). A certa altura, à promessa de que “the King is a child”, amostras sonoras de vozes infantis ecoam, lúgubres, a resposta negativa dada pelo próprio Efrim: “dead stars”. Uma textura sonora que se vai adensando, num crescendo progressivamente ameaçador, pressagiando uma catástrofe que nunca chega a acontecer, desvanecendo-se apenas. No entanto, nela tecido mas com ela contrastando, soa encantatório o cantado murmúrio de alguém que sossega e adormece uma criança, único som que perdura depois de silenciado o caos em redor.

PISSING STARS |  “LxOxVx/SHELTER IN PLACE”

Efrim Manuel Menuck lançou o álbum explicando que todo ele gira em torno de uma falhada história de amor, o romance de tablóide entre a americana Mary Hart, apresentadora do programa de televisão Entertainment Tonight, e o saudita Mohammed Khashoggi, filho de um barão do petróleo e traficante de armas, que encheu, na década de 80, os jornais e a cabeça do jovem Efrim. Mas esta funciona apenas como um ícone de todas as histórias de amor, como uma máscara que, porque oculta o compositor, lhe permite cantar o amor que o feriu, a ele que fala com a experiência de quem arriscou, não se defendeu e, por isso, viveu: “I’m not speaking from a safe place / Out here the stars fall like knives / But I have loved and been loved”. Com a legitimidade de um homem transfigurado pela dor: “I learned when I was very small / How to breathe through pain / And I never did / Breathe normal again”.

PISSING STARS | “A LAMB IN THE LAND OF PAYDAY LOANS”

Em redor tudo conjura para encher de sal e reabrir esta ferida de amor, fendendo-a até ao infinito, até àquele limiar entrevisto, mas nunca alcançado, para que apontam as paisagens sonoras marciais, mais anunciadoras do que ameaçadoras, cheias de uma acre promessa. A infância, ou como realidade inocente, ou como símbolo de sacrifício, atravessa todo o disco. Desde a capa do álbum, onde um rapaz corre (brinca talvez?) sob um sombrio fundo cinzento e um globo de negrume que sobre ele impende, até às menções explícitas de crianças ou vozes pueris a reverberar, tudo descobre o medo de um pai. Que mundo tem Efrim Manuel Menuck – ele e todos aqueles com quem convive no mundo dos adultos – para oferecer ao filho e às gerações vindouras? A resposta não é simples, o problema não está resolvido nem são credíveis quaisquer promessas de fácil resolução, mas a vida não é sem esperança, mesmo se essa esperança tem de abrir espaço ao humano lacerado pelo mal e pela dor que trazemos em nós. Afinal, Pissing Stars não nasceu só de um tempo conturbado da vida de Efrim Manuel Menuck. Nasceu também sob as estrelas que pontuavam de luz o céu invernoso e de redescoberto espanto a alma do seu compositor (CKCU).

Efrim Manuel Menuck, Pissing Stars | em análise

Name: Pissing Stars

Author: Efrim Manuel Menuck

Genre: música ambiente, experimental, pós-rock

Date published: 2 de February de 2018

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  • Maria Pacheco de Amorim - 86
86

Um resumo

Pissing Stars é vagamente inspirado numa verídica, mesmo se improvável, história de amor que deu que falar em meados da década de oitenta, tendo impressionado o jovem Efrim Manuel Menuck. Em redor destes lampejos rememorados de uma história que viveu, efémera, algures entre as fronteiras do surreal, do trágico e do irrisório, constrói-se uma sonoridade por vezes apocalíptica, por vezes só irada, raiada de melancolia, mas sempre feita, em última instância, de uma esperança que espera, suspensa, camuflada nas nuvens de drones que nos entorpecem os ouvidos e atordoam a alma.

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