14º IndieLisboa | El auge del humano, em análise

Confuso, fascinante e diabolicamente ambivalente, El auge del humano é a estrondosa longa-metragem de estreia para o realizador argentino Eduardo Williams. O filme é uma coprodução entre a Argentina, Brasil e Portugal que está na competição internacional do IndieLisboa.

critica el auge del humano indielisboa

Numa Buenos Aires recentemente vitimada por agressivas tempestades e cheias, um jovem chamado Zeke está a deambular pela casa de um dos seus amigos à procura de um computador. Sem nunca cortar para outro plano, a câmara do realizador argentino Eduardo Williams persegue o seu núbilo protagonista e observa as imagens do computador que ele lá encontra. No monitor, perscrutamos um site de pornografia gay aberto, onde está a decorrer um livestream protagonizado por um grupo de amigos em Moçambique a troco de dinheiro. Por esta altura, a audiência de El auge del humano já se habituou a tais cenas, tendo testemunhado Zeke e seus amigos numa semelhante, mas muito mais gráfica, situação apenas alguns minutos antes. Eventualmente, o jovem argentino coloca o vídeo em ecrã inteiro e a câmara de Williams aproxima-se ainda mais do monitor, deixando-o ocupar todo o frame. Efetivamente, estamos a observar os jovens moçambicanos através da perspetiva indireta de uma webcam.

Passado algum tempo, eles cansam-se e ficam um pouco desconfortáveis com os pedidos sexuais dos espetadores online e decidem parar o espetáculo, mas a câmara não deixa de os observar nem corta. Pelo contrário, numa mostra de obstinada mestria formal, Williams leva o plano sequência começado numa casa de Buenos Aires até às ruas noturnas de Moçambique por onde este grupo de jovens deambula sem aparente rumo. Mais tarde, depois de termos acompanhado o dia-a-dia de um desses rapazes chamado Alf, estamos na savana com ele e um outro amigo. Afastando-se do seu companheiro, o nosso segundo protagonista começa a urinar por cima de um formigueiro. Num plano em que todos os cortes são elegantemente escondidos, a câmara circunda a figura de Alf, foca-se no jato dos seus fluidos e segue o seu escorrer pelo sombrio interior do formigueiro. Durante quase cinco minutos a câmara simplesmente explora os infindáveis caminhos por onde formigas se passeiam, até que volta a emergir, seguindo os pequenos insetos pela mão de uma nova figura. Nesta viagem subterrânea, a câmara passou de Moçambique a uma floresta nas Filipinas.

critica el auge del humano indielisboa

O modo como a câmara de Williams desafia todas as barreiras geográficas imagináveis, nestas obstinadas transições, é o píncaro cinematográfico da estreia deste intrépido artista argentino no panorama das longas-metragens. Para além do mais, este impressionante feito técnico funciona também como uma manifestação formal de alguns dos temas principais de El auge del humano, uma obra que examina a relação moderna das pessoas com a tecnologia assim como uma série de outras permutações da crescente alienação entre o ser humano e o mundo que o rodeia. Não é por acaso que Zeke, Alf e os jovens filipinos que protagonizam os três episódios do filme sejam todos facilmente descritos como pessoas insatisfeitas, que caminham pela vida sem destino, rumo ou ambições, que não parecem conseguir formar fortes laços com ninguém a não ser com os ecrãs que lhes dão acesso ao universo virtual da internet.

Lê Também: A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Muito se ouve falar da dicotomia entre a internet e o mundo real, hoje em dia, normalmente da boca de pessoas que ainda veem os últimos desenvolvimentos tecnológicos como um acessório dispensável e não como uma parte essencial e integrante da vida moderna. El auge del humano nega de tal modo esse pensamento que, para as suas personagens, é o mundo material em que os seus corpos habitam que parece ser uma irrealidade, uma sombra ou um sonho em comparação com as suas existências online.

critica el auge del humano indielisboa

Apesar de trabalhar numa estética rudimentar que poderia ser facilmente descrita como realista, Williams nunca deixa o seu filme cair na displicência formal que afeta tantos outros filmes similarmente caracterizados. Para começar, o realizador dirigiu os seus atores e deu-lhes um texto que, não obstante uma superficial banalidade do quotidiano, é quase surreal na sua declamação desafetada. Os diálogos parecem mais os murmúrios sonolentos de alguém mergulhado nas fantasias oníricas de um sonho que qualquer género de concreta expressão do dia-a-dia.  O facto de a maioria do elenco ser composto por atores não-profissionais exacerba este fenómeno, dando a impressão de pessoas esvaziadas a deambular por um mundo a que não pertencem realmente. Talvez também os seus corpos não passem de sombras – a abertura do filme na penumbra certamente suporta essa noção.

Mas o génio de Eduardo Williams e a bravura de El auge del humano vão mais longe. Já muito celebrámos as transições entre os capítulos deste filme mais abstrato que narrativo, mas há outros aspetos técnicos a celebrar. A fotografia, por exemplo, é algo do outro mundo apesar de nunca ser particularmente bela. Ora em composições estáticas, que podiam ser conseguidas com a câmara de um computador portátil deixado aberto, ou em frenéticas passagens de câmara ao onde as personagens se tornam em presas a ser perseguidas pelo espetador, nunca há um momento de conforto formal nesta obra.

critica el auge del humano indielisboa

Para além desse movimento, a própria qualidade de imagem tende a mudar constantemente, começando com 16mm na Argentina, apresentando uma mistura de filmagem digital reproduzida num computador e de novo filmada em película para a secção de Moçambique, e terminando em polida fotografia digital e profissional nas Filipinas. Assim, a própria imagem do filme vai progressivamente saindo da realidade física da fita para se desfragmentar nas possibilidades virtuais do digital.

Consulta Ainda: Calendário | Festivais de Cinema 2017

Tudo isto é fantástico em termos conceptuais e formais, mas certamente vai alienar muitas audiências do filme. Considerando que El auge del humano é parcialmente um estudo sobre alienação, tal reação não é muito preocupante ou incoerente com as intenções do projeto, mas não deixa de ser problemática. Enfim, nem tudo é perfeito, mas esta obra merece respeito, nem que seja pelas suas astutas, e inteligentemente inconclusivas, observações sobre a dinâmica entre os seres humanos e as suas novas divindades tecnológicas.

critica el auge del humano indielisboa

Aliás, para terminar o seu tríptico de jovens errantes à procura de computadores, internet e conexão, Eduardo Williams mostra-nos uma fábrica onde se constroem os mesmos smart phones que dominam as existências das suas personagens. Com este irónico epílogo, o realizador deixa-nos com a cruel ideia que as mesmas invenções que foram edificadas como um modo de nos ajudar a conectar e que realmente vieram quebrar barreiras antigamente inultrapassáveis, também atuam como uma nova barreira por si mesmas. Talvez, no final, a única coisa que consegue genuinamente unir todos nós, enquanto seres humanos, é precisamente a dificuldade que temos em estabelecer conexões entre nós e para com o mundo em que habitamos.

 

El auge del humano, em análise
critica el auge del humano indielisboa

Movie title: El auge del humano

Date published: 13 de May de 2017

Director(s): Eduardo Williams

Actor(s): Sergio Morosini, Shine Marx, Domingos Marengula, Irene Doliente Paña, Chai Fonacier

Genre: Drama, 2016, 100 min

  • Claudio Alves - 86
86

CONCLUSÃO

Tão intelectualmente estimulante como deliberadamente difícil de amar, El auge del humano é um excitante começo para a carreira de Eduardo Williams no panorama das longas-metragens e um dos mais originais filmes a marcar passagem no 14º IndieLisboa.

O MELHOR:
As insanas transições que simultaneamente dividem e unem os diferentes episódios e suas díspares personagens e geografias.

O PIOR: A natureza fria e clínica que marca todo o projeto.

CA

Sending
User Review
0 (0 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Também do teu Interesse:


Leave a Reply

Sending