Benicio Del Toro, um verdadeiro camaleão.©Netflix

Crítica | Em Réptil, de Grant Singer, a culpa não morre solteira

Depois da sua estreia no Festival de Toronto 2023, a Netflix lançou agora na sua plataforma ‘Réptil’, um primeiro filme de Grant Singer, que é um cativante e surpreendente thriller policial, com um elenco notável: Benicio del Toro, Justin Timberlake, Alicia Silverstone e Michael Pitt.

‘Réptil’, o filme estreia em formato de longa-metragem de Grant Singer — mais conhecido pela realização de videoclipes como ‘Starboy’ dos The Weeknd ou ‘Safari’ de J Balvin) é uma das boas surpresas do catálogo de streaming da Netflix, desta temporada, depois do verão. Este filme, escrito por Benjamin Brewer, (argumentista de ‘Tudo Em Todo o Lado ao Mesmo Tempo’) protagonizado por Benicio Del Toro — que também participou no argumento — e com Justin Timberlake, Alicia Silverstone e Michael Pitt, é um thriller policial muito peculiar, sombriamente cómico, que nos atrai logo de inicio e nos prende com uma intriga competente, acessível e cheia de reviravoltas. Para além obviamente de um elenco incrível com interpretações soberbas, complexas e algumas mesmo inesperadas em relação às figuras dos actores: como a do cantor-actor Timberlake ou com um delicioso regresso de Silverstone, que mostra enfim, que infelizmente, os anos vão passando por todos nós, muito rápido. Porém, se quisermos enquadrar este filme, basta recorrer a um dos melhores neo-noir dos anos 90: ’Suspeitos do Costume’ (1995), de Bryan Singer, (ao qual curiosamente Grant, repete o apelido), com Kevin Spacey; ou mais recentemente para As Pequenas Coisas (2021) de John Lee Hancock, com Denzel Washington, Rami Malek, Jared Leto, disponível também na Netflix.

Lê Também:   Os Rolling Stones e Lady Gaga arrasam num pequeno concerto de apresentação do seu novo álbum

Este ‘Réptil’ conta a história de como Tom Nichols (Del Toro), um policia que investiga o brutal assassinato de uma jovem e bela corretora de imóveis, descobrindo durante a investigação toda uma série de impensáveis relacionamentos e conspirações, que envolvem pessoas importantes e das suas relações. De facto o género policial pode ser trabalhado de mil maneiras possíveis nos filmes e com mais flexibilidade que na literatura. Entre as muitas opções há uma que se pode considerar talvez a mais ‘densa’: séria, sombria, concentrada, consciente da sua própria gravidade. E ‘Réptil’ vai precisamente nesse sentido, em primeiro lugar à custa de uma câmara que se movimenta de uma forma precisa e calculada, com os atores nas cenas a andarem e falarem mais devagar do que é habitual no ritmo dos thrillers policiais. E tudo avança metodicamente, de forma lenta, sobrecarregando ainda mais essa suposta seriedade e densidade. Mas talvez sejam essas a sua maior diferença, já que estamos habituados no género a demasiada acção. Começando pelo argumento, do princípio ao fim — com reviravoltas e tudo —, ‘Réptil’ corresponde ao título pois é uma história inteligente, complexa e perturbadora, que aborda uma série de temas e relações intrigantes, que vai muito além do aparente ‘crime passional’, que aliás funciona apenas como ponto de partida. O filme, até começa de forma um pouco confusa, mas a sua primeira sequência termina, dando origem de imediato, a tudo que virá na complexidade que se segue. 




Répteis
Del Toro move-se no seu próprio espaço de interpretação, num filme que é a sua ‘praia’. ©Netflix




O MISTÉRIO DA MENINA MORTA

Will Grady (Justin Timberlake) — que está, diga-se em boa verdade, a fazer um grande esforço para insinuar que está num ‘filme sério’ — é um corretor de imóveis do Maine, com uma aparência elegante — tirando as gravatas berrantes — mas ao mesmo tempo um pouco sinistra. Já que além de um bem sucedido corrector é também um famoso ‘formador’, que ministra cursos e seminários, à maneira evangélica, sobre o tema das vendas de imóveis. Grady, vive com a sua namorada e também colaboradora Summer (Matilda Anna Ingrid Lutz), com quem mantém uma relação um tanto tensa e enciumada. Uma noite, ao chegar a casa, encontra-a morta, com mais de 30 facadas no corpo. A partir daí, o filme abandona de certa maneira Will, para se focar em Tom Nichols (Del Toro), um investigador da polícia, que recentemente se mudou para a mesma cidade, de Maine, depois de um passado um tanto complicado em Filadélfia, onde foi envolvido ou pelo menos tocado, por um escândalo de corrupção policial. O policia é casado com uma mulher simpática e inteligente chamada Judy (Alicia Silverstone), com quem demonstra grande cumplicidade; ao mesmo tempo Tom parece ter uma típica relação de camaradagem com seus colegas de trabalho, um grupo bastante diversificado que inclui excelentes atores como um regressado Eric Bogosian (‘As Vozes da Ira’), Domenick Lombardozzi (‘The Wire’) e Ato Essandoh (‘Jason Bourne’), entre outros. No meio de uma dessas bem humoradas confraternizações, bailes característicos da classe média norte-americana do interior, a que se junta a presença das companheiras e da família, surge a notícia do crime e a investigação recai sobre Tom Nichols.

Lê Também:   Qual era a música que estava em alta no dia em que nasceste?

VÊ TRAILER DE ‘RÉPTIL’




TODOS SÃO CULPADOS

Todos passam a ser culpados deste crime, a começar pelo próprio Will, que já tinha os seus problemas de relacionamento com a vítima. Todavia, há também um extravagante ex-marido de Summer (Karl Glusman) e ainda um tipo meio-estranho chamado Eli (Michael [Carmen] Pitt), que estava logo no local do crime, além de rondar a casa de Will (que parece odiar de alma e coração). E até mesmo é suspeito um bizarro sacristão de uma igreja metodista, que está a ser construída num terreno vendido pela correctora morta que estranhamente, nunca recebeu as suas comissões. A distante e fria mãe de Will (Frances Fisher) ou mesmo um dos próprios polícias também poderão estar envolvidos neste crime local, incluindo o próprio Tom, que coincidentemente fez um significativo corte na mão esquerda, diz ele, enquanto cozinhava. É assim, que todos os personagens parecem suspeitos de uma forma bastante óbvia. Deliberadamente lenta, a investigação vai avançando suspeito a suspeito e durante a primeira hora — dos longos 136 minutos de duração — mistura-se com os momentos da vida privada de Tom e Judy: ele fica irritado com as aparentes tentativas de sedução à sua esposa, por parte de um homem que está a fazer alguns trabalhos de manutenção na sua casa (a tal cozinha, onde se cortou); e ninguém gostaria de ser confrontado com um Del Toro furioso; e também com momentos da camaradagem policial um tanto nervosa e inquieta. O que acontece com Will ou com o excêntrico Eli é na verdade o mais previsível, nesta fase da investigação.

Répteis
Judy é a luminosa e alegre personagem de Alicia Silverstone, companheira de Tom. ©Netflix

Lê Também:   Rock in Rio Lisboa 2024 acaba de anunciar o primeiro artista português e o início da venda de bilhetes




UMA TRAIÇÃO AO ESPECTADOR

Porém, no meio da história, vai ocorrer um inesperado acontecimento que irá alterar toda a investigação. Nesse sentido, o ângulo e a lógica da investigação mudarão de rumo. A partir daí, novamente ‘Réptil’ assume outras dimensões, mais detetivescas, em relação aos temas sobre o qual trata no fundo. Já não se trata apenas de um filme em que é preciso descobrir qual entre meia dúzia de suspeitos matou Summer, mas antes de um filme em que o importante saber o que estará por detrás do crime, quais os interesses, as personagens envolvidas e as suas motivações. Isso é algo que torna a investigação em si e a situação de Tom muito mais interessantes, mas talvez chegue um pouco tarde na história para abalá-la nos seus alicerces. O tom denso permanece o mesmo — aqui, talvez mais justificado, e bem ao estilo de ‘Chinatown’ (1974), de Roman Polanski, um grande clássico do film noir — excepto por alguns momentos. A trama chega ao ponto em que tudo o que parecia fundamental no início basicamente os detalhes da investigação — passa para segundo plano e não importa mais quem ou como, mas sim por que mataram Summer, procurando compreender os acontecimentos, situações e personagens, que conduziram a esse crime. Ou seja, no filme torna-se mais importante aprofundar os motivos de um assassínio, do que passar horas a analisar cabelos e provas do crime. Contudo, soa um bocadinho a uma quase uma traição às expectativas do espectador. O dispositivo funciona? Talvez por isso seja bom avisar o espectador, porque para alguns talvez seja difícil aceitar que passar cerca de uma hora ou mais do filme, insinuando, quem pode ou não ser culpado do crime, e depois inadvertidamente este dizer-lhe: ‘afinal de contas, isso não é importante’. 

Répteis
Justin Timberlake faz um enorme esforço para insinuar que está num ‘filme sério’. © Netflix




A ‘PRAIA’ DE DEL TORO

Lê Também:   The Rolling Stones fazem anúncio inesperado quase duas décadas após o lançamento do último álbum

Apesar de tudo, ’Réptil’ continua a ser um excelente filme com bons momentos de tensão (e alguns também, um pouco tediosos, não esquecer), que vale sobretudo pela forte presença de um fabuloso actor como Del Toro, que consegue dar uma certa gravidade, aos seus personagens sem nunca exagerar: anda, observa e mesmo calado, entendemos quase tudo nele, sem um qualquer gesto a mais ou a menos. As interpretações de Silverstone, Bogosian, Pitt são excelente, mas Del Toro está a outro nível, movendo-se no seu próprio espaço, na sua ‘praia’. Um espaço, que merecia um filme talvez ainda melhor, mas que não podemos esquecer que se trata de uma primeira-obra de Grant Singer. Um destaque, para a luminosa e alegre personagem de Alicia Silverstone, que parece — que apesar das nossas desconfianças, também em relação ao crime — aliviar-nos um pouco dessa densidade dramática e pesada; ao passo que o resto do elenco, parece deixar-se levar um pouco pelo que os seus personagens deveriam ser ou representar, apenas para que o espectador, em algum momento determine qual ou quais dessas várias pessoas — que atuam como suspeitas mesmo quando não, interrogados pela polícia — estão envolvidos no crime. A resolução é bastante perturbadora, porém chegar lá, talvez não seja assim, tão difícil. Mesmo, com todos os seus defeitos temos um bom filme, melhor do que muitas coisas, que passam nas salas ou no streaming. 

Crítica | Em ‘Réptil’, de Grant Singer, a culpa não morre solteira
Répteis

Movie title: Reptile

Movie description: Durante a investigação de um brutal homicídio de uma jovem agente imobiliária, Tom Nichols (Benicio Del Toro), um calejado inspector de uma polícia local de uma cidade do Maine, depara-se com um verdadeiro vespeiro de enganos e traições.

Date published: 23 de October de 2023

Country: EUA

Duration: 136 min

Director(s): Grant Singer

Actor(s): Benicio del Toro, Justin Timberlake, Alicia Silverstone, Michael Pitt, Eric Bogosian

Genre: Drama, Thriller, 2023,

  • José Vieira Mendes - 70
70

CONCLUSÃO:

Não é difícil perceber que ‘Réptil’, de Grant Singer, inspira-se em muitas referências do género, mas sobretudo, nos filmes de David Fincher — está aí chegar às salas pela mão da Netflix, o seu novo ‘O Assassino’ (2023) — aos quais o realizador acrescenta também uma clara influência de Steven Soderbergh, e até de Denis Villeneuve, em ‘Raptadas’ (2013). Apesar de ser uma mistura de todos dessas influências e outras ainda mais clássicas, ‘Réptil’ é um filme muito interessante e cativante, em grande parte devido à magistral interpretação do grande Benicio Del Toro, que eleva o convencionalismo e uma certa ausência de originalidade do filme a um nível bastante elevado. Do melhor que é possível ir encontrando no menu extremamente desorganizado e pouco informativo da Netflix. 

JVM

Pros

Um filme de género, com muitas referências cinéfilas, que nos proporciona enganos, pistas falsas, reviravoltas, assente num bom trabalho dos actores, sobretudo do grande Benicio Del Toro. 

Cons

Nesse sentido, é um filme muito pouco original, um pouquinho lento e até forçado, mas que mesmo assim consegue levar-nos até ao fim, através de um thriller convincente, mordaz e perturbador. 

Sending
User Review
5 (2 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending