Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo ©A24/ NOS Audiovisuais

Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, em análise

O filme de abertura do South by Southwest em 2022 e uma entrada revolucionária nas narrativas que tocam na temática do multiverso, “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é cinema independente nos píncaros da criatividade e inventidade. Divertido, ultrajante, capaz de emocionar e criar novo sentido, assim é esta raridade realizada pelos Daniels.

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Quando o trailer de “Everything Everywhere All at Once” foi lançado, a sinopse da obra resumia-se a uma única frase: “uma mulher esforça-se para entregar os impostos”. O objetivo seria manter o enredo o mais secreto possível, permitindo a quem vê descobrir este universo complexo por si próprio, em toda a sua glória. É apenas justo, que quem veja esta nova obra distribuída nos EUA pela A24, a mais prolífica distribuidora Indie americana, que ao longo de uma década de existência nos trouxe filmes como “Midsommar“, “O Farol”, “A Bruxa”, “Lady Bird”, “Hereditário” entre tantos, tantos outros clássicos instantâneos, tenha direito a entrar neste novo mundo com uma mente livre de expectativas.

 

Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo (2022) A24
©NOS Audiovisuais/A24

 

Ao fim de contas, “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é diferente de tudo o que já vimos (e é bem provável que receba o estatuto imediato de culto de clássico para os fãs da ficção científica) como uma comédia meta-física povoada por um multiverso que é simultaneamente particular e geral, extremamente pessoal e não por isso menos relacionável. É com mestria que Dan Kwan e Daniem Scheinert conseguem escrever e realizar uma história que é em igual partes americana, com a sua alusão ao sonho americano falhado, a universos paralelos e lavandarias, como é também desenhada de forma a homenagear, de forma cuidada, a cultura chinesa, o seu Kong Fu, a sua ficção e os seus universos afetivos. Nunca um título nos pareceu tão indicado, entre a cacofonia efectiva brilhantemente montada que é esta longa-metragem.

Mas antes de mais, de que forma se resume este filme que, de forma corajosa, assume ser “sobre tudo”, “em todo o lado”, “ao mesmo tempo”? É-nos apresentada a família Wang, imigrantes chineses nos Estados Unidos que converteram o seu sonho americano numa lavandaria hipotecada. Com a vida a desabar em seu torno e uma auditoria fiscal à porta, Evelyn (Michelle Yeoh, “O Tigre e o Dragão”), a matriarca da família e a inegável super-heroína invulgar desta história, está a viver uma vida aborrecida ao lado de um marido, Waymond (Ke Huy Quan, o miúdo de “Indiana Jones e o Templo Perdido” e um mestre de artes marciais na vida real), por quem mantém sentimentos tépidos. Apesar de sorridente e otimista, há muito que Waymond não safisfaz a sede de aventura da sua esposa.

Para piorar tudo, este segmento introdutório do filme diz-nos também que o pai de Evelyn (James Hong, “As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim”), tratado carinhosamente por Gong Gong, se encontra de visita e, apesar de debilitado, continua tão severo como sempre. Já a filha adulta de Evelyn, Joy, (Stephanie Hsu de “Marvelous Mrs. Maisel”) mantém uma relação complicada com a mãe. Evelyn tem dificuldade em aceitar a homossexualidade da filha e esconde-a, inclusive, durante a visita do pai.

 

Um improvável ponto de partida para uma jornada multiverso |©NOS Audiovisuais/A24

É quando Evelyn, Waymond e Gong Gong se encontram a visitar uma agente do IRS (Jamie Lee Curtis, na sua versão menos atraente e possivelmente mais hilariante) que o mundo começa a apresentar brechas que nas cenas anteriores eram leves e subtis. Aqui, o filme acelera e o ritmo não pára de se tornar progressivamente mais caótico até ao clímax final. O enquadramento inicial segue, assim, um ritmo muito distinto do resto da narrativa e fica o aviso para os mais ávidos de sequências de acção: o caos não é imediato, mas é garantido e delicioso.

Neste gabinete de finanças uma versão do seu marido, vinda de um mundo alternativo, informa Evelyn de que o multiverso está em risco devido a um “agente de caos” que ameaça a vida na terra, a vida em todas as suas muitas alternativas, milhares de versões. Evelyn é, segundo ele, a única capaz de parar esta ameaça. Para tal, terá de ser capaz de aceder às memórias das inúmeras outras “Evelyns” que existem em universos paralelos e, com cada salto improvável e aleatório, conseguir aceder a capacidades alheias, como artes marciais, que lhe permitirão lutar contra um perigo inimaginável.

Jamie Lee Curtis em Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo
Jamie Lee Curtis como nunca a vimos antes |©NOS Audiovisuais/A24

Duas horas e três capítulos depois – “Everything”, “Everywhere” e “All at once”, nesta ordem respetiva, eis que abandonamos a sala num frenesim inimaginável, com a perceção de que finalmente compreendemos quais são as muitas hipóteses de um multiverso. A técnica para saltar entre mundos utilizada neste “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” (a qual não ousamos revelar antes da visualização do filme) é fácil de compreender para o espectador, mas a constante alternância entre mundos, cenários e hipóteses deixará a cabeça de qualquer um a rodar.

O filme é um assalto aos sentidos, absurdo por vezes e emocionante e existencial noutros momentos. Como o foi, aliás, o primeiro filme da dupla de “Daniels”, “Swiss Army Man”. Todavia, em “Everything Everywhere All at Once” a dupla de realizadores conseguiu criar uma história mais complexa, com mais nuances e onde o equilíbrio entre o absurdo e o emotivo é recalibrado com resultados muitos positivos.

Segundo consta, os Daniels trabalham nesta obra há mais de 5/6 anos, desde o seu último projeto. Esta atenção ao detalhe, este comprometimento com a criação do universo está à vista de todos. Para Daniel Scheinert o filme tanto é um drama familiar, um filme filosófico, uma história de sci-fi e ou um filme de kong-fu que salta entre universos, com uma relutante heroína no centro de tudo. Para muitos, esta tentativa de tudo encapsular num filme será demais – ambição em demasia, balbúrdia sem eira nem beira. Para outros, contudo, será pura poesia visual.

Porquê poesia visual (com ênfase na criação imagética)? Isto porque os Daniels conseguiram algo verdadeiramente notável – criar um filme de multiverso repleto de mundos dentro de um mesmo mundo e que, na realidade, se passa quase unicamente num aborrecido edifício das finanças.

Jamie Lee Curtis e Michelle Yeoh
Jamie Lee Curtis e Michelle Yeoh |©NOS Audiovisuais/A24

“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” venceu, no SXSW Film Festival, um prémio de Melhor Edição. E é mesmo aí que se encontra a chave para o sucesso desta obra. Um sci-fi independente, que ultrajante e maravilhoso conceito. Dizer que a sucessão de imagens de “Everything Everywhere All at Once” é mais estimulante e variada que a conseguida num universo Marvel parece impossível. E daí, uma montagem frenética, incansável e repleta de cortes rápidos e mudanças de guarda-roupa e adereços permite a um pequeno set transfigurar-se, comportando não só todo o mundo, mas mundos infinitos. Por isso, antes de mais, aplaudimos de pé Paul Rogers, o montador desta longa!

Se em “Homem-Aranha: Sem Volta a Casa” Tom Holland se depara com quatro invasores que lhe trocam as voltas sem realmente transfigurar o seu mundo (isto com um orçamento estimado de 200 milhões de dólares), Michelle Yeoh confronta-se com a totalidade da existência humana e com um multiverso infinitamente mais complexo. Ora, fá-lo aqui, num filme com 12,5% do orçamento do último “Spider Man”. Depararmo-nos com a mestria de toda a equipa técnica deste “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é reconhecer um pequeno milagre cinematográfico – um filme repleto de efeitos especiais, criado por uma equipa de efeitos especiais composta por apenas 12 membros (!!). Os Daniels, que têm aqui os Russo como produtores (realizadores de “Os Vingadores”), recusaram a oportunidade de trabalhar na série Marvel “Loki” para antes focaram todas as suas atenções nesta pérola indie. Que maravilhosa decisão!

Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo Stephanie Hsu
Stephanie Hsu como Joy Wang |©NOS Audiovisuais/A24

 

Nunca o multiverso se mostrou, no cinema, tão repleto de hipóteses, tão tresloucado, tão capaz de nos mandar diretos para o marasmo, num frenesim desalinhado, para mais tarde nos ilustrar como não há nada mais belo do que homenagear valores fraternais. Michelle Yeoh está extraordinária, uma heroína do quotidiano que cresce ao longo do filme, tornado-se mais confiante, mais segura e mais poderosa a cada take. Todo o restante elenco é igualmente forte, do tão versátil Ke Huy Quan, que desempenha na perfeição o Waymond de vários universos, à carismática Stephanie Hsu como Joy, que prova que a sua Mei cheia de presença em “Marvelous Mrs. Maisel” é apenas uma pequena amostra do que consegue fazer, passando claro pela ultimate scream queen, Jamie Lee Curtis, que aqui apresenta uma faceta bem distinta e maravilhosa do seu talento.

A escuridão e a luz, o bem e o mal, a loucura e a quietude, todos coexistem em “Everything Everywhere All at Once”, um filme que nos diz que vale a pena escolher viver, amar, sonhar, não obstante o aparente mar de entropia que nos arrasta para o nada e para a desilusão como parte integrante da vida. Que viagem invulgar e que destino magnânimo, que resiliente obra cinematográfica é esta. Assim se começa, de coração aberto e sentidos estimulados, um novo ano cinematográfico.

TRAILER | TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO, NOS CINEMAS

“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” estreou nas salas de cinema a 7 de abril de 2022, com distribuição assegurada pela NOS Audiovisuais. Prontos para entrar no MichelleVerse? 

Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, em análise
Poster Everything Everywhere All at Once

Movie title: Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo

Movie description: Escrito e realizado por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como Daniels, “Tudo Em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo” é uma hilariante e emocionante aventura de ação e ficção científica acerca de uma exausta mulher chinesa de cidadania americana (Michelle Yeoh) que parece não conseguir terminar os seus impostos.

Date published: 9 de April de 2022

Country: EUA

Duration: 140'

Director(s): Dan Kwan, Daniel Scheinert

Actor(s): Michelle Yeoh, Stephanie Hsu, Ke Huy Quan, Jamie Lee Curtis

Genre: Ação , Comédia, Ficção Científica

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  • Maggie Silva - 95
  • José Vieira Mendes - 50
  • Emanuel Candeias - 87
77

CONCLUSÃO

Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é o filme de multiverso que não sabíamos precisar. É a obra que a Marvel nunca seria arrojada o suficiente para sequer ponderar. É alucinação cinematográfica, é uma experiência sensorial rara e um precioso unicórnio: um filme de orçamento médio que ousa puxar ao máximo pelos seus próprios limites.

Pros

  • A desmedida ambição dos Daniels, no sentido de criar uma obra capaz de honrar o seu tresloucado título;
  • Uma montagem que transforma o ordinário em verdadeiramente extraordinário;
  • Um elenco exímio, encabeçado por uma estrela internacional com uma longa carreira que é aqui honrada e elevada;
  • Uma participação de Jamie Lee Curtis que se define como bem mais que um cameo glorificado;
  • Um equilíbrio notável entre o drama existencial e a comédia apatetada. Para quem viu “Swiss Army Man”, esta parece ser uma competência bem própria desta dupla de realizadores.
  • As PEDRAS e a magia do silêncio (para descobrir spoiler free durante a visualização);
  • As salsichas, grosseiras mas hilariantes, e o romance deste universo (para descobrir spoiler free durante a visualização);
  • “Ratatouille” como nunca antes (uma vez mais, não ousaríamos estragar a surpresa);

Cons

  • Para alguns poderá ser demasiado convulso, para outros tentar incluir demasiadas ideias e conceitos na sua narrativa…Mas vá lá, o que há para não amar num multiverso de kong-fu com selo A24 e um elenco com desempenho estelar?
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