Fevereiros

Fevereiros, em análise

O novo documentário sobre a cantora Maria Bethânia mergulha pela primeira vez na sua espiritualidade e num Brasil onde é possível (pelo menos) conviverem as crenças e religiões.

Desenganem-se aqueles que pensam ir ver mais um documentário musical sobre Maria Bethânia, pois ‘Fevereiros’, realizado por Marcio Debellian, vai em outro sentido, muito mais original e interessante. Mas não menos lírico, colorido e festivo como qualquer concerto ou aparição de Bethânia. Trata-se de uma surpreendente viagem sobre as crenças e a espiritualidade das religiões da Bahia, da devoção da cantora por Nossa Senhora da Purificação e pelo candomblé. E sobretudo um grande momento de afirmação da cultura popular brasileira no seu maior esplendor.

Maria Bethânia
Este não é apenas mais um documentário musical sobre a cantora Maria Bethânia.

Já se fizeram muitos filmes com. e sobre Maria Bethânia, e alguns deles marcantes como por exemplo: ‘Bethânia Bem de Perto’, de Eduardo Escorel, ‘Saravah’, de Pierre Barouh ou mesmo com a forte presença da cantora em ‘Quando o Carnaval Chegar’, de Cacá Diegues. Contudo, nenhum teve a intencionalidade deste ‘Fevereiros’, o segundo de Márcio Debellian sobre a cantora, e que mostra que continua a haver muito assunto para falar e conhecer do Brasil e principalmente dessa figura incontornável da cultura brasileira que é Maria Bethânia.

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TRAILER DE ‘FEVEREIROS’ 

‘Fevereiros’ aproveita bem, e de uma forma afectuosa, a tradição, o Carnaval e as festas populares e religiosas, para as associar à espiritualidade de Bethânia: católica por herança da sua mãe, Dona Canô, devota de Nossa Senhora da Purificação e seguidora do candomblé e do culto das orixás. Bethânia faz como que ‘a junção entre Oxum e Nossa Senhora, entre Santa Bárbara e Iansã, de uma maneira muito bonita, sem melindrar, nem ofender ninguém’, como afirma no documentário a irmã e poeta Mabel Velloso — a única em que o apelido de família figura com dois ‘Ls’. E tudo começa com ‘Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá’, que foi tema do desfile da prestigiada Escola da Samba da Mangueira, campeã do Carnaval no Sambódromo da Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 2016.

No entanto, o documentário ‘Fevereiros’ desenvolve-se em dois cenários: a sorridente e feliz Bethânia (e Caetano Veloso também) no desfile verde e rosa mangueirense, criado pelo artista Leandro Vieira, que é alias outro dos protagonistas do filme e que fala da essência da sua criação ao representar o Brasil negro, mulato, e o País dos excluídos; e com as palavras do escritor e historiador Marco Antônio Simas, que diz que o samba de roda nasceu nos terreiros da Bahia antes de migrar para o Rio. Além de mostrar os bastidores da construção das fantasias e carros alegóricos, o documentário destaca ainda uma sequência inesquecível com Squel, considerada uma das mais belas porta­-bandeiras já vista na avenida — dizem os entendidos, e então companheira de Vieira — uma mulher com a cabeça rapada e pintada de branco, envolta em plumas brancas, que simbolizava uma filha de santo. Isto porque as matrizes religiosas da Escola de Samba da Mangueira são influenciadas pelo candomblé. Por outro lado vê-mos Bethânia na sua terra natal, no seu ritual religioso em Santo Amaro da Purificação, situada no Recôncavo Baiano, onde além dela são apresentados uma série de depoimentos, inclusive dos irmãos Mabel e de Caetano. Os festejos começam a 24 de janeiro, com o novenário, passam pela Lavagem da Purificação, no último domingo do mês — que parte da casa da família Veloso, aberta à cidade mesmo depois da morte da mãe, Dona Canô, em 2012 — e terminam numa majestosa procissão de Nossa Senhora a 2 de fevereiro. Desde criança que as festas religiosas de fevereiro — daí o filme chamar-se ‘Fevereiros’ — são aguardadas fervorosamente pela cantora, que costuma ir para Santo Amaro, para participar ativamente nas missas e procissões.

Maria Bethânia
Um dos grandes momentos do filme é ver-mos Bethânia e Chico juntos em palco.

O cenário carioca é luminoso e festivo, mas a surpresa é a inesperada aparição de Chico Buarque num filme que fala de religião em vez de música, sendo o cantor um agnóstico. Chico parece no inicio pouco à vontade para falar do tema, mas acaba por dizer que mesmo não sendo religioso escolheria o candomblé como a sua religião, pela sua beleza musical. Depois Maria Bethânia e Chico Buarque aparecem juntos no palco, com ela deixando-o algo desconcertado diante do público, num momento imperdível do filme. Caetano Veloso, criador de ‘Milagres do Povo’ está naturalmente muito presente nos seus comentários. É arrepiante ouvi-lo dizer que o escritor Julio Cortázar e a lendária mãe-de-santo Mãe Menininha do Gantuá da Bahia, adivinharam que Bethânia e Caetano são a mesma pessoa. Tanto que quando Bethânia foi fazer a sua iniciação no candomblé, a Mãe Menininha exigiu que Caetano o tinha de fazer com ela, apesar de ser ateu. Curioso é igualmente o depoimento da irmã Mabel, que diz que nunca foi anjo de procissão como Bethânia (porque acreditavam que ela era escura demais), e sempre pareceu estar mais perto de ser em carne-e-osso do que angelical. Jorge Amado tem igualmente uma participação especialíssima, em imagens de arquivo juntamente com a Mãe Menininha.

Por isso, ‘Fevereiros’ é muito mais que um documentário sobre Maria Bethânia, embora seja ela a protagonista, e que com a sua graciosidade e generosidade se abre para falar da religião, da tradição, do samba e do povo. Tudo isto o realizador Marcio Debellian mostra com uma notável e tocante simplicidade: Bethânia em casa, em Santo Amaro, no barracão do Morro da Mangueira no Rio de Janeiro, na igreja ou na procissão nas ruas de Santo Amaro, de braço dado com as afilhadas. Um cenário não exclui o outro e tudo funciona no filme de uma forma harmoniosa, com ritmo, fluidez e sobretudo com comunhão e equilíbrio entre homens e mulheres, brancos, negros ou índios todos no mesmo universo que ultrapassa qualquer ideia de país ou de sobrenatural. E sobretudo mostra que a espiritualidade não precisa de estar ligada a uma única religião.

Fevereiros, em análise
Maria Bethânia

Movie title: Fevereiros

Date published: 8 de April de 2019

Director(s): Marcio Debellian

Actor(s): Maria Bethânia, Caetano Veloso, Mabel Veloso, Leandro Vieira, Luis Antônio Simas

Genre: Documentário, 2017, 75min

  • José Vieira Mendes - 85
85

CONCLUSÃO:

’Fevereiros’ é na verdade uma história de resistência — do povo brasileiro, do samba, das religiões afro — contada através de Maria Bethânia e, do que ela representa. Bethânia usa a música para espalhar a sua poesia pelo mundo, mas fá-lo de uma maneira tão diferente autêntica e popular, que acaba por influenciar a alta cultura. É nesse dom que está a sua espiritualidade, a originalidade e a beleza deste filme.

O MELHOR: ‘Fevereiros’ foge do habitual didatismo em torno da música popular brasileira ao intencionalmente optar pelas origens de sua protagonista e da sua espiritualidade.

O PIOR: As referências algo tardias, já que ‘Fevereiros’ foi lançado três anos após a realização dos dois eventos que o marcam.

JVM

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