‘Km 224’, em análise

Chegou aos cinemas ’Km 224’, o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, protagonizado por Ana Varela e José Fidalgo, que acompanha a história de um divórcio problemático em que duas crianças são as ‘armas de arremesso’, mas valha-nos isso, são também as principais figuras do filme.

Se está a pensar divorciar-se e tem filhos, pense duas vezes e veja ‘Km 224’ a nova longa-metragem do veterano realizador português António-Pedro Vasconcelos (Parque Mayer), que chega agora às salas de cinema. Não é nada de especial como filme, mas a probabilidade de se ver ou conhecer alguém ali retratado é muito grande. Trata-se de mais um filme na linha da obra do realizador — que vai ter em simultâneo no Cinema Nimas, uma espécie de retrospectiva das suas obras documentais mais desconhecidas — que quase sempre teve a preocupação de levar ao (seu) cinema o grande público, para ver filmes falados em português. Dir-se-ia, que em ‘Km 224’, levou esta questão ao limite, com uma história do dia-a-dia de muitas famílias, que de um momento para o outro deixa-me de o ser, tornando-se numa verdadeira batalha de sentimentos e emoções. O argumento foi escrito pelo realizador, em parceria com a jornalista e escritora Filipa Martins e marca também a reconciliação de uma espécie de longo ‘divórcio traumático’ de APV, com o produtor Paulo Branco.

Km 224
Ana Varela e José Fidalgo são o casal em conflito.

O filme, foi rodado maioritariamente em Lisboa durante o verão de 2021, em plena pandemia, no ‘novo normal’, com limitações, que aliás não se notam. Protagonizado por Ana Varela e José Fidalgo, o filme acompanha uma história de um divórcio problemático, que acaba por se transformar numa verdadeira guerra, em que nenhum dos antagonistas sai vencedor; em vez de canhões ou espingardas, as ‘armas de arremesso’ do casal, são as duas crianças. Aliás são sem dúvida as duas crianças, os grandes protagonistas e talvez o melhor mesmo deste novo filme de APV, um filme com um enredo que não anda muito longe, para o bem e para o mal, de uma telenovela nacional a querer ser cinema. Um jovem casal lisboeta, algo estereotipado, formado por Mário (José Fidalgo) e Cláudia (Ana Varela), aparentemente depois de vários casos de infidelidade mútua, parecem caminhar para uma processo de divórcio, que envolve advogados e que é marcado sobretudo pela disputa da guarda partilhada dos dois filhos (Mateus [Gonçalo Menino] de 5 anos e Francisco [Sebastião Matias] de 6). Mário é na verdade um pai pouco despreocupado, que vê na brincadeira com os filhos, a principal forma de os educar e os puxar para o lado dele. Porém um tanto por incúria, por azar ou melhor por causa de uma agitada vida profissional de arquitecto, o pai acaba por sujeitar os filhos a situações um pouco confrangedoras para o bem-estar das crianças: com esquecer-se de os ir buscar à escola, perder as malas das roupas crianças ou vesti-los da forma pouco adequada. Já Cláudia por sua vez é mulher de carreira ambiciosa e bastante focada no seu trabalho, como executiva de um grupo hoteleiro internacional e menos permissiva com as crianças. O acordo do casal vai no sentido de os dois miúdos morarem alternadamente com os seus progenitores.

VÊ TRAILER DE ‘KM 224’

Porém, esta situação é logo posta em causa quando Cláudia parece estar em vias de aceitar uma promoção na sua empresa e ir trabalhar para Sevilha (Espanha), com as naturais distâncias de Lisboa. Deixando obviamente Mário com poucas oportunidades de conviver com os filhos, apesar do seu desajeitado comportamento paternal. No entanto, parece ser, — neste aspecto fala-vos, quem passou por uma experiência idêntica — a sabedoria das duas crianças, Francisco e Mateus que levarão os pais a reavaliarem as suas mais profundas certezas e a porem de lado os rancores, para que mesmo separados possam ter um relacionamento civilizado e a partilha equilibrada dos filhos. E neste aspecto as interpretações dos dois miúdos são absolutamente magistrais. Na verdade, os problemas do casal de ‘Km 224’ são os mesmo de sempre: as exigências da vida moderna, sobretudo na inversão dos papéis, as mulheres são e ainda bem mais activas, trabalham fora de casa e ascendem profissionalmente, muitos maridos/homens que trabalham como profissionais liberais, excesso de trabalho do casal, stress de horários e desgaste dos pais, que vêem no facilitismo, uma forma de compensar as crianças da falta de atenção, demasiada ambição profissional e hedonismo de ambos parceiros, egos demasiado elevados e sobretudo uma vida muito mais aberta a contactos com outras pessoas atraentes e que ajudam a sair da rotina de um casamento, que muitas vezes já perdeu a chama da paixão, a ideia de uma segunda oportunidade para ser feliz, etc. .

Km 224
A espontaneidade e a naturalidade dos miúdos Gonçalo Menino e Sebastião Matias.

Enfim um rol de questões que na maioria dos casos quem sofre ou não são tidas em conta, são as crianças, que também são um dos foco do problema e da resolução dele. E talvez por isso a história de ‘Km 224’ não deixa de ser relativamente cativante e oportuna, mesmo que banal e superficial. Mas o que há de novo neste filme? À partida, no enredo e no final, infelizmente, absolutamente nada! É efectivamente um filme que acaba por dar continuidade à obra de António-Pedro Vasconcelos, que nos últimos anos tem tido sempre a ambição de fugir às normas do cinema de autor português, procurando fazer filmes à imagem dos de Hollywood — qualquer semelhança com Kramer contra Kramer’ (1979) é uma pura e anedótica coincidência — isto é com as componentes ‘comercial’ e de entretenimento muito fortes, com o objectivo de chegar à maioria dos espectadores pouco habituados a ir ao cinema para verem filmes falados em português. Utilizando para isso como protagonistas, diga-se sempre bons actores, — Ana Varela e José Fidalgo dão aqui também o seu melhor — e bastante conhecidos do grande público, através sobretudo da televisão. E além dos das personagens principais, também o restante elenco vai nesta linha de pensamento do realizador, com destaque para Rui Morrisson, como o frio advogado de Claudia, Susana Arrais a exuberante advogada de Mário, a sempre surpreendente Lia Gama, no papel da avó Graça, e sobretudo para a sobriedade de Joana Africano — uma revelação — no papel de Sara, a nova empregada-namorada de Mário, que chega à sua vida da forma demasiado fácil e imprudente. E neste aspecto, vejam o filme, e vão ver como tenho razão!

Km 224
Ana Varela é Claudia uma mãe ambiciosa, mas cuidadosa.

Porém, um dos maiores problemas de ‘Km 224’, é a superficialidade como trata todas estas questões complexas do divórcio, dos relacionamentos, dos conflitos familiares e sobretudo das disputas do poder paternal. De uma vez por todas, estas questões relacionadas com os divórcios e com a partilha dos filhos deviam ser tratadas por assistentes sociais ou psicólogos, técnicos em princípio mais bem preparados par lidar com estas situação. Por isso, seria muito interessante por exemplo o realizador e a argumentista terem decomposto melhor e mais profundamente as questões jurídicas, que põem muitas vezes advogados e juízes — que deviam antes ter um papel mais sensível, moderador e na verdade não têm — a analisar friamente com base na lei, complicando questões, que têm mais a ver com sentimentos, emoções, afectos, amor; e sobretudo onde estão envolvidas crianças e pessoas que não cometeram nenhum crime. Mesmo que haja da parte do realizador, uma preocupação para não se colocar nem do lado de um nem de um nem de outro e mostrar quase sempre o ponto de vista das crianças. No entanto, duas horas ou mais de filme são demais — até para um ‘filme comercial’ — para contar uma história tão simples de situações tão banais, sem complexidades, que acrescenta pouco ao que já conhecemos e principalmente que não cria situações inesperadas, reviravoltas, tensões exacerbadas, climax, cenas que prendam o espectador: não basta uma leve discussão e sair da sala. Quando parece que há um crescente de emoções, tudo se desvanece num ápice, num ritmo que deixa o espectador desconcertado, sem o levar a pensar ou a reflectir sobre a situação e o que se está a passar. O melhor mesmo de ‘Km 224’ é sem dúvida a espontaneidade dos dois miúdos (Gonçalo Menino e Sebastião Matias) que se mostram à altura dos melhores actores infantis do cinema que já vimos. Neste aspecto, temos que dar mérito ao realizador — que já tinha trabalhado com outra criança em ‘Jaime’ (1999) — porque não é fácil dirigir crianças no cinema e a estes dois miúdos pequenos, tudo lhes sai bem e credível.

Km 224
José Fidalgo é Mário, o pai porreiro e demasiado despreocupado.

Resumindo, ’Km 224’ é um daqueles filmes, que não é nem bom, nem mau, vê-se sem pretensões, mas que dificilmente arrastará muitos espectadores às salas de cinema. Apesar do tema, das boas intenções,  das dificuldades de filmar naquela momento, ‘Km 224’ deveria ser um filme bastante melhor. Além de se estender demasiado no tempo, tornando-se por vezes aborrecida é pouco directo e eficaz na sua mensagem e no tratamento de múltiplas questões que se pretende abordar. Sobretudo é um filme que se ‘estende ao comprido’ com aquele final absolutamente disparatado e sem lógica, de fazer a entrega das crianças ao ‘Km 224’ de uma auto-estrada da Estremadura espanhola.  Como se isso fosse possível mesmo dando de barato, que estamos no campo da ficção??? Ou afinal da realidade? Momento esse, que é bastante estranho para fechar e que ainda por cima dá o título ao filme. Enfim como espectadores merecíamos também muito melhor, sobretudo vindo de António-Pedro Vasconcelos, uma grande figura da cultura e da cidadania portuguesa, que sobretudo tem muitas vezes considerações sobre os ‘males’ e feito muitas críticas ao sistema de financiamento e tendências do cinema português da actualidade. 

Aqui D'El Rei
A série de televisão ‘Aqui D’El Rei’, uma das obras que vai passar no ciclo.

PS: O Ciclo ‘António-Pedro Vasconcelos: Algumas Obras Raras’, vai estar também no Cinema Nimas, em Lisboa de 28 de Abril a 3 de Maio. APV é um cineasta de 83 anos,  com uma longa carreira de sucessos, mas é mais conhecido pelas suas obras de ficção, do que pelo documentário. Neste programa breve, dividido em quatro sessões e com 5 filmes, trata-se de uma oportunidade de conhecer algumas das obras menos vistas nas últimas décadas, da sua filmografia: ’27 Minutos com Fernando Lopes Graça’ (de 1969, um retrato do compositor onde se vislumbra também o retrato do país) e ‘Cantigamente’ (de 1976, o seu episódio para uma série da RTP, sobre o Portugal dos anos 30 e 40, onde APV desmonta o fascismo através dos filmes, do teatro e das canções daquelas décadas). Segue-se ‘Aqui d’El Rei (1991), na versão série de televisão, a que o realizador prefere, e que foi escrita com Vasco Pulido Valente e Carlos Saboga, um impressionante fresco histórico sobre a expedição de Mouzinho de Albuquerque a Moçambique, em finais do séc. XIX, para capturar Gungunhana. Veremos ainda os documentários ‘Emigr antes… e depois?’ (1976), que segue algumas famílias de emigrantes que no ‘Verão quente’ de 1975 vêm passar férias a Portugal, na zona da Guarda, fixando as festas familiares e festividades da estação que nessa altura se celebram, e ‘Adeus, até ao meu Regresso’ (1974), realizado quando chegava ao fim a guerra colonial, que aqui é retratada como uma memória ainda muito próxima. Algumas das sessões serão apresentadas e com uma conversa no final com o realizador.

JVM

Km 224, em análise

Movie title: Km 224

Movie description: ‘Km 224’, o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, conta a história de Mário (José Fidalgo) e de Cláudia (Ana Varela), um casal que atravessa um processo de divórcio conflituoso, marcado pela disputa de guarda dos dois filhos Mateus (Gonçalo Menino), de 5 anos, e Francisco (Sebastião Matias), de 6 anos.

Date published: 23 de April de 2022

Country: Portugal, 2021

Duration: 139'

Director(s): António-Pedro Vasconcelos

Actor(s): Ana Varela, José Fidalgo, Gonçalo Menino, Sebastião Matias, Rui Morrison, Lia Gama

Genre: Ficção, Drama

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  • José Vieira Mendes - 60
60

CONCLUSÃO

António-Pedro Vasconcelos, é um dos mais reconhecidos e multi-facetados  cineastas portugueses, que deu ao cinema nacional alguns dos seus maiores sucessos de público e apoio da crítica. Desta vez com ‘Km 224’, é pouco provável que vai conseguir os seus duplos objectivos com esta história demasiado banal e superficial que conta a história de Mário (José Fidalgo) e de Cláudia (Ana Varela), um casal lisboeta da actualidade, que atravessa um processo de divórcio traumático, marcado pela disputa de guarda dos seus dois filhos Mateus (Gonçalo Menino), de 5 anos, e Francisco (Sebastião Matias), de 6 anos. Enfim há dias melhores.

Pros

A espontaneidade e a credibilidade que sustentam os dois miúdos (Gonçalo Menino e Sebastião Matias) que se mostram à altura dos melhores actores infantis do cinema português.

Cons

A banalidade da história e superficialidade com que tudo é tratado, apesar do realismo, neste drama oportuno e cativante de um conflito familiar, mas tão igual a tantos outros.

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