Maigret e a Rapariga Morta, em análise
Em ‘Maigret e a Rapariga Morta’, o realizador francês Patrice Leconte tomou a liberdade de adaptar, um dos mais famosos romances de George Simenon, dando, ao taciturno Comissário Maigret, uma bondade e sensibilidade, nunca antes vista. Uma pérola no que diz respeito ao género policial. Estreia a 5 de janeiro de 2023.
Passado na década 50, em Paris, e exalando uma elegância gelada e sombria, o filme ‘Maigret e a Rapariga Morta’, de Patrice Leconte (‘Ridicule’), que agora chega às salas de cinema — teve antestreia na última Festa do Cinema Francês — é uma belíssima adaptação livre do romance ‘Maigret e a Jovem Assassinada’ (1954), de George Simenon (Coleção Vampiro nº525, Livros do Brasil). O filme marca também um regresso de Patrice Leconte ao universo do escritor Georges Simenon, depois do maravilhoso ‘Monsieur Hire-Um Homem Meio-Esquisito’ (1989), a história de um homem solitário, suspeito de ter assassinado uma bela vizinha. Neste ‘Maigret e a Rapariga Morta’, o cineasta francês parece continuar a seguir confortavelmente o ambiente ‘noir’ do romancista belga. Esta segunda incursão, se não atinge a mestria do referido ‘Monsieur Hire – Um Homem Meio-Esquisito’ (1989) ou de outros filmes excelentes de Leconte, é pelo menos uma obra muito inspiradora que nos pode levar sem hesitação a (re)visitar numa sala de cinema, o fabuloso e sempre fascinante universo Simenon-Maigret.
Numa noite fria, o cadáver de uma jovem rapariga, aparece na calçada de uma praça-jardim de Paris, sem qualquer identificação. No seguimento das investigações, verifica-se que a rapariga era menor de idade, não tinha família, sofria de desnutrição, usava joias falsas e um vestido de alta costura alugado, na noite do seu assassinato. Quem é ela? Quem a matou? É este o mistério que o Comissário Maigret, vai tentar desvendar.
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Com o seu co-argumentista Jérôme Tonnerre (‘Confidences Trop Intimes’ (2004), o realizador Patrice Leconte adapta o conhecido romance de Simenon, incutindo em primeiro lugar uma bondade sem precedentes ao taciturno Maigret. Além de omitir obviamente as notas secas, quase cruéis de ironia e desafio social, que estão presentes no romance, principalmente no que diz respeito ao seu final. Há uma espécie de investigação paralela, que faz parte do romance, que foi também retirada para não confundir em demasia o espectador; o filme centra-se sobretudo, nos ‘grandes passos’ de Maigret, para descobrir a verdade, em relação ao assassinato da infeliz jovem. Outra sábia decisão no filme, assentou na opção de retirar a tediosa e por vezes excessiva realidade de uma investigação criminal literária, transposta para o cinema, como as sucessivas visitas ao necrotério ou encontros fúteis com várias possíveis testemunhas, que não adiantam grande coisa em termos de narrativa fílmica. Porém com um espantoso classicismo de um filme que poderia ter sido feito nos anos 50, Leconte procura antes recriar os tempos antigos e críveis de Simenon. Aliás, mantendo a pureza e a atmosfera ‘simenoniana’, que se traduz num estilo frio, marcado também pela luz do veterano Yves Angelo — que foi o director de fotografia de entre outros, do maravilhoso ‘Todas as Manhãs do Mundo’, (1991), de Alain Corneau — que, por meio de um jogo de oposições, traz à tona ainda mais a bondade, uma rara sensibilidade de Maigret, nunca vista; e também uma enigmática, nublosa, cinzenta e nocturna Paris dos anos 50. O Comissário rapidamente torna a investigação quase num assunto pessoal ao trazê-la — literalmente — para dentro de sua casa. O motivo é compreensível: a sua falecida filha teria a mesma idade da vítima e isso é dito no filme. Portanto, daí as explosões de melancolia, tristeza e ternura, que surgem aqui e ali, no rosto do polícia, sobretudo em relação à personagem de Jade Labeste (Betty).
Sendo a vítima uma aspirante a atriz antes da sua horrível morte, explicada obviamente no filme, imediatamente a comparamos com ‘A Dália Negra’, a história de Elizabeth Short, que na vida real ganhou as manchetes póstumas da imprensa de Hollywood, quando o seu corpo foi encontrado desmembrado num terreno baldio, em Los Angeles. Até hoje sem solução, esse crime sórdido, também de uma aspirante a actriz, inspirou o não menos famoso romance de James Ellroy, que foi adaptado ao cinema por Brian De Palma, em 2006. Neste ‘Maigret e a Rapariga Morta’, quando a vítima aparece morta no jardim, há como que uma homenagem ao filme do cineasta norte-americano, que usou um processo semelhante no inicio da investigação no local do crime.
No papel do Comissário Maigret, anteriormente interpretado em outros filmes, por grandes nomes do cinema francês, como Michel Simon, Jean Gabin e Bruno Cremer, está agora um fabuloso Gérard Depardieu — que também perdeu um filho — com toda uma espantosa interioridade, pequenos gestos e olhares e silêncios que falam por si ou nos dizem tudo. Anne Loiret (‘A Vida de Adèle’) está perfeita no papel de Madame Maigret, uma esposa compreensiva que sabe orientar o marido, tanto em casa como no trabalho; em Jeanine, ex-amiga da vítima, está Mélanie Bernier — curiosamente muito parecida, pelo menos aos meus olhos e ouvidos com a saudosa Debra Winger, uma actriz da minha juventude — que sugere uma sensação de comovente desespero e do fazer pela a vida a qualquer custo, por detrás de uma fachada ambiciosa e calculista. No entanto, a revelação do filme, é sem dúvida Jade Labeste, (Betty), que interpreta uma jovem, que vem da província à descoberta de uma Paris e do seu submundo alternativo da ascendente indústria do cinema, que segue um caminho estranhamente semelhante ao da vítima, e que Maigret vai colocar sob a sua proteção. O enredo, na verdade, acaba por ser mais comovente do que propriamente enigmático, o que aparentemente, poderia soar como uma falha para um filme policial, mas que até neste caso trata-se de um elogio e de um a vantagem. De fato, ao contrário dos ‘Quem Matou?, (whodunit) de Agatha Christie, o filme de Leconte, tal como o romance(s) de Georges Simenon, não se preocupa com o ‘quem’, mas antes mais com o ‘porquê’, a razão social do crime. Novamente, o que nos impressiona nesta história é Maigret, antes de tudo procurar a identidade de uma mulher, que foi barbaramente assassinada à facada, antes propriamente de saber quem a matou e os motivos.
No entanto, em relação a Gerard Depardieu — por acaso (re)vi ontem também o magnífico ‘As Bailarinas’ (1974), de Bertrand Blier, filme-escândalo da década de 70, de que falarei dele com muito prazer, um dias destes — é impossível não relacionarmos de imediato, com as acusações de violação e agressão sexual, que o veterano actor, foi acusado recentemente: em 2018, a actriz Charlotte Arnould acusou-o de violação. Em 2019, o caso foi encerrado sem nenhuma acção do Ministério Público de Paris. No final de 2020, após novas diligências de Charlotte Arnould, um juiz de instrução ordenou nova acusação ao actor. Porém em França, uma acusação é encaminhada para a um tribunal ou então leva a uma demissão pública. Porém, até o momento, não aconteceu nem uma coisa nem outra, nenhuma decisão foi proferida, prevalecendo a presunção de inocência de Depardieu. ‘Maigret e a Rapariga Morta’, fala sobre uma jovem aspirante a atriz vulnerável aos poderosos predadores e esse eco, acrescenta ao também ao filme um certo fascínio mórbido e actualidade. George Simenon estava certamente longe de pensar nisso!
JVM
Maigret e a Rapariga Morta, em análise
Movie title: Maigret
Movie description: Uma jovem é encontrada morta numa praça parisiense, usando um belo vestido de noite. O Comissário Maigret vai tentar primeiro identificá-la e depois procurar descobrir a verdade sobre o seu assassinato.
Date published: 26 de December de 2022
Country: França
Duration: 88 minutos
Director(s): Patrice Leconte
Actor(s): Gérard Depardieu, Jade Labeste, Mélanie Bernier
Genre: Drama, Policial, 2022,
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José Vieira Mendes - 70
CONCLUSÃO:
O lendário Gérard Depardieu dá vida a um das personagens mais amados da ficção policial do século 20 em ‘Maigret e a Rapariga Morta’, o novo e primoroso drama policial magistralmente dirigido pelo premiado realizador francês Patrice Leconte (‘Monsieur Hire’), baseado agora num dos best-sellers de Georges Simenon. Paris, 1953. O corpo de uma bela jovem é descoberto na Place Ventimille, com um elegante vestido de noite. Não há nada que a identifique, nem testemunhas. O pensativo e cansado Comissário Maigret (Depardieu) esforça-se para juntar todas as peças deste puzzle. Nas suas investigações cruza-se com Betty (Jade Labeste), uma rapariga que estranhas semelhanças com a vítima, mas que também lembra alguém que lhe é próximo e da sua própria vida. Apesar de várias vezes adaptado ao cinema Depardieu deixa-nos sem dúvida uma marca indelével na personagem do Comissário Maigret, trazendo ternura e dignidade a um homem preparado para ouvir, antes de falar e defender aqueles que não têm voz.
Pros
As interpretações do elenco feminino e sobretudo um fabuloso Gérard Depardieu com toda a sua interioridade, pequenos gestos, olhares que falam ou silêncios que dizem tudo.
Cons
É impossível não relacionarmos de imediato o filme de Leconte, com as acusações de estupro e agressão sexual de que Gerard Depardieu, foi acusado recentemente