Em ‘Salgueiro Maia – O Implicado’, o experiente realizador Sérgio Graciano recriou com uma razoável competência e não foi fácil, a curta vida do grande símbolo do 25 de Abril de 1974. Estreia a 14 de Abril, no mês em que se evoca também 30º aniversário do seu falecimento.
Sou suspeito para escrever esta análise, porque oito anos depois da Revolução de Abril, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, trabalhar e admirar como pessoa e com comandante o então Major Salgueiro Maia (1944-1992). Entre 1981/82 cumpri o serviço militar obrigatório, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém e depois da recruta e até ao final como miliciano no Regimento de Cavalaria do Campo Militar de Santa Margarida. Portanto convivi com ele bem de perto, sobretudo nos últimos meses da tropa, como um dos instrutores do Esquadrão de Instrução, que ele comandava, quase como uma diversão e numa interacção perfeita, com um grupo de jovens milicianos, muito mais novos. Porém, foi graças a Salgueiro Maia e aos outros capitães de Abril e honra lhe seja feita, que vivemos em democracia e que os jovens da minha geração e das seguintes não tiveram de ir combater para o Ultramar. Fizemos uma tropa quase a brincar às guerras.

Por isso, há tantos filmes sobre tudo e sobre todos, que ver nos ecrãs de cinema, um filme sobre Salgueiro Maia, traz-me obviamente boas memórias, além de recordar as imagens recriadas dos grandes momentos do dia 25 de Abril de 1974, quando eu tinha então 14 anos de idade. Sempre achei fundamental e necessário — independentemente das polémicas e controvérsias políticas e pessoais — que neste universo marcado pelo poder do audiovisual, que era necessário fazer algo para honrar e não deixar cair no esquecimento este militar exemplar e revelar também a sua história de vida, às gerações mais jovens. Salgueiro Maia está para a história contemporânea de Portugal talvez como D. Nuno Álvares Pereira esteve para a crise de 1383-85. Foi uma figura que pela sua capacidade de liderança e pela sua determinação ajudou a dar um outro rumo a Portugal, ainda mais sem pedir nada em troca ou exigir a importância devida. Infelizmente desapareceu demasiado cedo, um pouco marginalizado e apenas junto da família e dos amigos mais próximos, como veremos no filme.
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Maia como era tratado pelos amigos, foi e posso testemunhá-lo em parte, um militar de carreira que conseguiu conjugar uma formação militar com uma sólida formação académica — formado em Ciência Política pelo ISCSP, curiosamente mais uma coisa temos em comum, embora nunca nos cruzássemos por lá — e era efectivamente um homem culto, solidário, e sobretudo um amigo dos seus camaradas e subordinados. Além de militar, prestou vários serviços à comunidade, sobretudo nas terras onde viveu e onde tinha as suas raízes. Tinha também um sentido de humor muito particular e uma certa tristeza marcada no rosto e no olhar. Salgueiro Maia faleceu aos 47 anos, teria agora setenta e sete anos de idade. Por causa da pandemia e da quarentena, o filme teve a sua rodagem várias vezes interrompida e a sua estreia adiada. Chega finalmente às salas e esta estreia, não poderia ser mais oportuna, por causa da evocação do 30º aniversário do seu falecimento e a cerca de dois anos das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

O filme ‘Salgueiro Maia – O Implicado’, de Sérgio Graciano foi rodado em Lisboa nas instalações da Academia Militar, Santarém (na Escola Prática de Cavalaria e Liceu Sá da Bandeira), Pombal e Castelo de Vide, respectivamente as terras onde nasceu, viveu e passou parte da sua juventude. É um filme baseado no livro ‘Salgueiro Maia — Um Homem da Liberdade’, do ex-jornalista António de Sousa Duarte, adaptado ao cinema pelo argumentista João Lacerda de Matos (o mesmo da série ‘3 Mulheres’). Porém foi o produtor e advogado santareno José Francisco Gandarez, — da Sky Dreams, a produtora de ‘Snu’, (2019) de Patricia Sequeira — foi que teve a ideia de adaptar ao cinema, este biopic sobre o grande símbolo do 25 de Abril de 1974. E para isso, convidou Sérgio Graciano (‘O Som Que Desce à Terra’, 2021 e ‘A Impossibilidade de Estar Só’, 2020), um realizador ‘todo-o-terreno’, com grande experiência de direcção de actores tanto na televisão como no cinema, capaz de dirigir este filme de certo modo intimista, que oscila entre o real e a ficção, sobre um homem que soube sempre colocar-se no seu lugar, porque era mais um militar que um político.

O resultado é uma terna e pedagógica história baseada em factos históricos, relatos pessoais, revelações íntimas, emoções reais de quem acompanhou de perto o percurso de Salgueiro Maia, ao longo da sua curta vida: o outro lado de uma personagem, que se tornou mítica na imprensa da época, mas que na verdade o filme revela como homem, estudante, militar, pai, amigo, marido, amante — passa um pouco ao lado a relação extra-conjugal de Maia no ‘exilio’ em Ponta Delgada, com a que deu origem ao processo de paternidade comprovado em 2013, do jovem luso-americano Andrew; e que por último passa também um pouco ao de leve ou melhor o filme não aprofunda muito as controversas posições deste militar de Abril no pós-revolução, dando a ideia de uma espécie de teimosia birrenta. ‘Salgueiro Maia – O Implicado’ é um filme mais sobre o homem nostálgico e decerto modo amargo com a vida — filho único e órfão, perdeu a mãe num atropelamento aos 4 anos de idade — e menos sobre o herói nacional. Na verdade o Salgueiro Maia foi quase um anti-herói, e o filme vai talvez melhor nesse sentido de uma menor veneração. E por esse lado, cumpre a sua missão pedagógica e de uma controlada exaltação. No elenco estão actores como Tomás Alves, Tiago Teotónio Pereira, Filipa Areosa (no papel de Natércia, a mulher de Maia), Gabriela Barros, Federico Barata ou Rúben Gomes.

O actor Tomás Alves que está francamente parecido com Salgueiro Maia, talvez só um pouco mais alto, faz uma interpretação notável, transmitindo de certo modo o enorme carisma e a profunda nostalgia do militar de Abril; destaque também para Frederico Barata, que interpreta o agora General Mário Delfim Tavares de Almeida, que foi o grande amigo do Salgueiro Maia e que o acompanhou desde a Academia Militar, durante o pós-25 de Abril e até ao seu falecimento. De facto não deve ser nada fácil para estes jovens actores representarem figuras tão carismáticas como os dois militares de Abril, sobretudo Salgueiro Maia, um militar de excepção que nunca se deixou levar por extremismos políticos ou por algo que o desviasse dos seus ideais e princípios democráticos. Efectivamente apesar das muitas fragilidades inclusive orçamentais, termos que reconhecer que é talvez o melhor filme de Sérgio Graciano, que deve ter tido um grande desafio em fazer um filme com esta escala e ainda mais sobre uma figura tão importante como o Salgueiro Maia. A chegada às salas de cinema de todo o País de ‘Salgueiro Maia – O Implicado’, um filme que constitui o primeiro retrato em grande ecrã, do homem que é considerado o herói e o símbolo mais puro do 25 de Abril de 1974 é por si só um grande feito e uma oportunidade de chegar ao grande público, como foram ‘Variações’, ‘Snu’ ou ‘Bem Bom’. Um caminho que também é importante para o cinema português e para os seus espectadores!
JVM