Um Segredo de Família, em análise
‘Um Segredo de Família’ é o regresso do argentino Pablo Trapero aos dramas familiares, desta vez protagonizado pela francesa Bérénice Bejo e pela sua mulher Martina Gusman, ambas num exaltante retrato de mulheres que vivem quase uma realidade paralela, onde nada é o que parece.
Desde ‘Família Rodante’ (2004) até ‘O Clã’ (2015), que a exploração dramática da família, sempre com os traumas da ditadura militar argentina em fundo para reforçar os mistérios, se tornaram o foco principal dos filmes de Pablo Trapero. Este novo thriller do realizador argentino Pablo Trapero, que estreou no Festival de Veneza do ano passado (fora da competição) centra-se sobretudo num excelente trabalho das duas actrizes principais: Bérénice Bejo, que conhecemos de ‘O Artista’, aliás ela é a mulher do realizador Michel Hazanavicius, assim como Martina Gusman (que vimos ao lado de Ricardo Darin em ’Abutre’ ou ‘Elefante Branco’), também a mulher de Pablo Trapero.
‘Um Segredo de Família’ ou ‘La Quietud’, no original, alude para a fabulosa propriedade de uma família da alta sociedade argentina, protagonista desta sofisticada soap, que remete para muitas tramas clássicas a fazer lembrar, entre outras, a série norte-americana Dallas (1978) ou as histórias de muitas telenovelas latinas ou brasileiras da rede Globo. A primeira parte do filme, num registo suave e contido é rica em detalhes reveladores de que há qualquer coisa a mais para além das primeiras impressões. Apercebemo-nos e há sinais dos vários elementos que estão em jogo (duplas infidelidades, incesto, ciúmes, rancores passados, ódios acumulados, traumas, etc.) no conflito; na segunda parte começa então a desatar-se um complexo novelo de sentimentos negativos, despertando raiva, lágrimas, gritos, fúria e quase veneno. Duas irmãs reencontram-se depois de muito tempo separadas. Uma regressa por causa do delicado estado de saúde do seu pai, enquanto que a outra pretende que nada mude. Juntamente com a mãe, as três são obrigadas a reconstruir o passado e a enfrentar os desafios que aparecem no presente. No entanto, nada é tranquilo ou sossegado em La Quietud: na verdade as personagens que habitam o enorme rancho familiar não estão em paz nem com eles mesmos nem com o que os rodeia. Embora todos pareçam flutuar numa aparente calma e num estado de letargia.
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O reencontro das duas irmãs na casa de família a pretexto do enfarto cardíaco súbito do patriarca, que fica em coma gera uma complexa teia de relações, sentimentos e expulsão de demónios que Trapero maneja com habilmente para depois ir até aos limites do inesperado. As duas actrizes Martina Gusman e Bérénice Bejo são tão belas e tão convincentes como irmãs (ou duplas) que chegamos mesmo a confundi-las em algumas cenas; e depois há a memorável interpretação da veterana actriz Graciela Borges, a musa do realizador Raúl de la Torre — conhecido pelos seus velhos filmes sobre tango, que muitas vezes tinham conteúdo sexual — que compõe uma mãe monstruosa de uma arrogância decadente insuportável. A actriz tem uma cena que é fabulosa, quando lhe dá o colapso, enquanto escuta ‘People’, de Aretha Franklin. Como em ‘O Clã’, Trapero volta igualmente a questionar os segredos mais obscuros do seu país revelando por exemplo como esta família se tornou dona de ‘La Quietud’. E o rancho acaba por ser também a personagem crucial que desencadeia o drama e ajuda a desenterrar todos os segredos, que as duas irmãs (Bérénice Bejo e Martina Gusman) e a mãe (Graciela Borges) escondem há anos.
‘Um Segredo de Família’ é um drama intenso que tem algo de buñueliano, mas que sem preconceitos segue igualmente os parâmetros das telenovelas: duas irmãs com uma relação quase incestuosa, os maridos (Édgar Ramírez), os amantes (Joaquín Furriel) de uma e de outra, uma mãe tenebrosa, um pai em coma no leito de morte. Talvez mais mais um dos méritos de ‘Um Segredo de Família’ é a liberdade que dá ao espectador para observar bem de perto estas mulheres, porque o microcosmos de ‘La Quietud’ torna-se numa espécie de laboratório do mundo feminino, das ânsias do desejo e amor maternal ou da falta deles ou da simples vertigem do desejo em geral. Como pano de fundo, está claro uma Argentina das centenas de pessoas desaparecidas, durante o regime militar, um dos grandes traumas nacionais do País, que é tão difícil apagar da História e que provoca aos argentinos quase tantos calafrios, como o Holocausto nazi.
Um Segredo de Família, em análise
Movie title: La Quietud
Date published: 9 de August de 2019
Director(s): Pablo Trapero
Actor(s): Martina Gusman, Bérénice Bejo,, Édgar Ramírez,, Graciela Borges,, Joaquín Furriel
Genre: Drama, Thriller, Argentina, 2018, 117 min
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José Vieira Mendes - 70
CONCLUSÃO:
‘Um Segredo de Família’ é um poderoso drama familiar, interpretado por três grandes atrizes e um retrato de três mulheres que vivem cada uma à sua maneira uma espécie de realidade paralela, onde tudo o que parece não é.
O MELHOR: as magníficas interpretações de Borges, Gusman e Bejo.
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O PIOR: demasiada infelicidade e tanta maldade por vezes cansam-nos.
JVM