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Cuidado com Essa Puta Sagrada, em análise

“Cuidado com Essa Puta Sagrada” regressa aos ecrãs nacionais com o Ciclo dedicado à carreira de Rainer Werner Fassbinder!

ENQUANTO PENSO NUM TÍTULO… SAI UM CUBA LIBRE, POR FAVOR!

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Cuidado com Essa Puta Sagrada
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Em 1971, Rainer Werner Fassbinder perdeu a cabeça, ou se não a perdeu disfarçou muito bem, e enquanto emborcava uns cubas libres reuniu em seu redor um conjunto de figuras, quase sempre do seu círculo íntimo de amizades, gente que conhecera nos meandros artísticos, nomeadamente do universo ocidental e alemão da sétima arte, do cinema de arte e ensaio e de uma série de projectos integrados numa verdadeira ou numa vaga noção de vanguarda, onde o cineasta iniciara a sua multifacetada carreira. Decidiu igualmente instalar-se, para os devidos efeitos da produção e realização a que deu o nome de WARNUNG VOR EINER HEILIGEN NUTTE (CUIDADO COM ESSA PUTA SAGRADA), num hotel situado na costa espanhola. Poucos meses antes, o cineasta rumara a Almeria, mais uma vez em Espanha, e a décors que serviram para dar corpo a produções de filmes similares ao subgénero western spaghetti, acabando por rodar uma espécie de western revisionista, um melodrama sulista e gay, intitulado WHITY, 1970. Filmado em Cinemascope, provavelmente com Sergio Leone no pensamento, seria expectável que esta fantasia (que misturava alhos com bugalhos ao gosto de um certo público disposto a dizer que sim ao primeiro e último filme provocador) fosse, não digo um grande êxito de bilheteira, mas um filme para se ouvir falar dele e dos que a ele dedicaram uma parte da sua vida. Mas não, apesar da selecção e consequente exibição no Festival de Berlim de 1971, nenhuma cópia chegou ao circuito comercial das salas. Foi apenas alguns anos após a morte de Fassbinder que um canal regional da TV alemã o exibiu. Não precisamos de ser génios da psicanálise para detectar aqui a base de uma inebriante irritação contra os que na produção, distribuição e exibição impediram o pouco luminoso destino do filme, mesmo a sensação amarga que ultrapassou o limiar da vida do realizador como, por exemplo, o vermos uma obra concebida para o grande ecrã ser encolhida para o pequeno ecrã e numa época em que, quase de certeza, nem se respeitava convenientemente o ratio original da fotografia. Nem podemos ignorar a raiva prevalecente contra as condições a que se estava sujeito, sempre que qualquer coisa mais difícil de engolir acabava silenciada pela pressão social, política e, quando se fala de cinema, do mundo financeiro que faz o que muito bem lhe parece adequado para salvaguardar os seus investimentos. Na verdade, para muitos produtores, os que despejam lá o seu dinheiro e não os que usam o dinheiro de um vasto leque de subsídios oficiais ou privados, com interesses muitas vezes não coincidentes com o espírito das obras que financiam, o que importa são os resultados, e o prestígio dos profissionais ou amadores que se dane. Em certos períodos ou contextos, nem querem saber se os filmes são do senhor R. W. Fassbinder ou de um qualquer estudante da escola de cinema, jovenzinho imberbe acabado de se inscrever no curso mas com pretensões de, poucos meses depois, ser o próximo e maior cineasta da nossa galáxia. Entretanto, permitam-me fazer aqui uma pausa para pedir um cuba libre… De regresso e com a “sede” mais saciada, diria que CUIDADO COM ESSA PUTA SAGRADA corresponde ao conjunto de setas envenenadas que o seu realizador e argumentista quis lançar sobre esse universo de estrelas, muitas delas cadentes, ou melhor, decadentes e sem brilho, um ajuste de contas e simultaneamente um exercício de auto-crítica. Para isso fez o que, quanto a mim, não foi a sua melhor opção, ou seja, realizar o filme mas não interpretar a personagem do realizador, que acabou por dar ao actor Lou Castell.

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Este, no papel de Jeff, por não dominar a língua alemã, aparece mal dobrado e, no plano narrativo, para salvar um projecto que está encalhado, procurando inverter sem sucesso o impasse da produção. Mas a sua presença irascível e prepotente ainda vem adicionar mais caos ao que até aí víramos, uma profusão de espaços ocupados pelos membros de uma equipa de cinema, que pouco mais fazem do que conspirar e andar no engate, desejosos de se enrolarem uns com os outros a partir de jogos de sedução canalhas. Pelo meio, a maioria usa como carburante uma cascata de cubas libres (e, já agora, vou buscar mais um para mim). Entretanto, a equipa espera e desespera pela chegada da película Kodak, via Madrid, em substituição da que fora prometida pelos produtores germânicos e que, aparentemente, não veio por causa de um cheque careca que o fornecedor alemão recusou. Equipa internacional, polvilhada de alguns profissionais locais, que anseiam pelo dinheiro prometido mas que parece difícil de se obter. Enfim, o costume para quem já viu disto e muito mais. De facto, não será aqui que o filme atinge o seu lado caricatural. Esse será atingido cada vez que uma personagem, visivelmente deslocada do mundo laboral, começa a falar com um paleio de pseudo-esquerda e a questionar a situação política e social na Espanha da ditadura Franquista para logo a seguir soltar, com sotaque meio castelhano, meio embriagado, a frase mais ouvida ao longo dos 103 minutos do filme: “Um cuba libre, por favor”. Perdi a conta a quantos foram pedidos e bebidos. (Huuum! Não devia, mas vou aproveitar para fazer mais um. Desta vez não peço a ninguém, muito menos com os modos com que as personagens beberronas o fazem ao barman, sempre firme e hirto atrás do balcão, que mais parece o irmão gémeo do Manuel, da série Fawlty Towers, mas na versão letárgica e obediente). Na verdade, nem a bebida os leva a lado nenhum, nem o realizador enquanto personagem escapa aos seus efeitos. Em vez de o acalmar, a dita bebida arrasta Jeff e o seu ego para uma espiral de confrontação com o Director de Produção (interpretado e bem pelo próprio Rainer Werner Fassbinder) e, com a ajuda de uma ou outra substância, seguramente proibida naqueles anos de repressão das liberdades ibéricas, ele usa e abusa daqueles que lhe servem de satisfação fugaz e descartável no plano sexual. Finalmente, quando percebe que não há mais condições financeiras para avançar, objectivas ou subjectivas, cai em si. Mas, em vez de racionalizar as coisas, lança uma série de acusações histéricas sobre os que o rodeiam: “Podem ir embora. Não vos quero ver mais! São uns sacanas! Odeio-vos a todos! Exploram-me e, quando é preciso, deixam-me pendurado! Aterrorizam-me. Querem dar cabo de mim, malditos sacanas! Odeio-vos. Korbinian! Quero dez cubas libres! Dez cubas libres, ouviste?” De repente, já não sei quantos eu pedi ou bebi, mas não foram dez. Nem vão ser, porque prefiro um whisky, como o Eddie Constantine, actor convidado para protagonizar a figura que o celebrizou, o famoso detective Lemmy Caution. Podemos dizer que a sua presença e a expressão facial no seu inconfundível rosto, quase impassível perante a rebaldaria reinante, que ele observa sem grandes sobressaltos de alma, pelo menos em público, constitui uma das mais conseguidas e sólidas presenças do vasto elenco, e será dele a frase mais cáustica, acutilante e merecedora de alguma reflexão: Eddie (Eddie Constantine) está na cama com Hanna (Hanna Schygulla), e referindo-se a Jeff, o realizador, diz: “É um amador! Não é assim que se trabalha.” Responde Hanna: “É preciso conhecê-lo bem. Ele consegue dar-te liberdade como actor. Isso é muito raro.”

Cuidado com Essa Puta Sagrada
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Diga-se, a citada puta não é outra aqui senão o cinema, a “vaca” sagrada a que Fassbinder dedicou os melhores anos da sua vida e, no fundo, abraçou convicto, como aquelas personagens que o acompanham na vida real ou na ficção e que emprestaram alguma coisa da sua identidade de modo a exporem as contradições pessoais e colectivas no grande ecrã que, em muitos casos, não se deram ao cuidado de resolver satisfatoriamente na intimidade. Eles sabiam como, num contexto profissional, podiam ser contaminados pela puta sagrada, que podia projectá-los para a ribalta ou arrumá-los a um canto sem dó nem piedade. Neste filme rodado em Espanha, a PUTA ou a VACA SAGRADA pode até ser vista como um TOURO ENRAIVECIDO, de cornos afiados, como por lá se usa, e a cornada que o cineasta queria dar e que, no final das contas, foi ele que levou, lançou-o pelos ares, numa série de piruetas mais ou menos artísticas, fazendo-o estatelar-se no chão daquele Hotel EXCELSIOR VITTORIA, decorado com uma boa dose de artefactos kitsch, que não deixam de ser divertidos, como os anjos papudos e os quadros pendurados nas paredes onde vislumbramos pinturas do género “O Menino da Lágrima” (só de pensar nisso, agora sim, vou pedir mais um cuba libre). Mas o realizador soube levantar-se, sacudir a poeira e dizer o sempre improvável no pasa nada. Mesmo assim, num mundo fragmentado e ameaçado pela dita puta, mais sacrílega e profana do que verdadeiramente sagrada, podemos dizer que o evidente sarcasmo com que R. W. Fassbinder impregnou a maioria das sequências fica na nossa memória como um depoimento cruel, mas sincero, sobre os caminhos cruzados que uma equipa de cinema por vezes experimenta para sobreviver num meio em que o homem surge como o lobo do homem, onde as máscaras que cada um usa ocultam o olhar, que devia ser directo e honesto, de quem surge como interlocutor privilegiado.

Porque mais vale atirar ao alvo e errar do que nada fazer, numa palavra, apesar das minhas reservas como profissional de cinema perante uma ficção venenosa, uma visão relativamente exagerada e grotesca sobre a putaria do cinema, podia muito bem sentar-me ao lado do autor e compreender, como ele, as dores de parto e os riscos, calculados ou não, de uma qualquer produção cinematográfica, assim como o maior ou menor empenho da equipa, real ou ficcionada, que neste filme demonstra de fio a pavio não recear morder a mão de quem os alimenta. Para acabar, brindo com um derradeiro cuba libre e, como diriam os nuestros hermanos, Salud…!

Cuidado com Essa Puta Sagrada, em análise
Cuidado com Essa Puta Sagrada

Movie title: Warnung vor einer heiligen Nutte

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Hanna Schygulla, Lou Castel, Eddie Constantine

Genre: Comédia, 1971, 103min

  • João Garção Borges - 55
55

Conclusão:

PRÓS: Direcção de Fotografia do mestre Michael Ballhaus. Nunca será demais salientar a qualidade da sua arte, assim como atribuir nota máxima para a excelência das cópias digitais restauradas deste ciclo, organizado pela MEDEIA FILMES e LEOPARDO FILMES, que nos permite visionar com inegável prazer as propostas fílmicas de um grande e controverso homem de cinema, tanto no grande como no pequeno ecrã.

Eddie Constantine, o actor que recusa a maquilhagem, e o modo como através do seu rosto impassível lemos a crítica do caos circundante na rodagem de um filme dentro do filme.

A crítica da auto-crítica que circula, aqui com subtileza, ali com brutalidade, por entre os fotogramas e pelo ambiente ficcional proposto por Rainer Werner Fassbinder. Estranha mas curiosa dialéctica.

Banda sonora musical, em que ouvimos as composições do álbum de estreia de Leonard Cohen, o muito bom “Songs of Leonard Cohen” e, entre outras sonoridades extraídas de diferentes universos musicais, faixas do LP “Spooky Two”, da banda blues rock Spooky Tooth. Perguntarão se faz sentido. Bom, se perguntassem ao realizador ele diria que sim, e eu diria porque não. E ambos acabaríamos a pedir, ele um cuba libre, e eu um whisky, já agora irlandês e sem gelo.

CONTRA: Não obstante o que disse, nada!

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