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As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, em análise

“As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, também conhecido por “Die bitteren Tränen der Petra von Kant”, é o mais recente capítulo do ciclo dedicado a Rainer Werner Fassbinder.

MARLENE, BENDITA E SUBMISSA ENTRE AS MULHERES…!

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As Lágrimas Amargas de Petra von Kant
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Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), cineasta, actor, dramaturgo, encenador, compositor e ensaísta foi um homem multifacetado e, no campo específico da sétima arte, a sua presença criativa e muitas vezes provocadora ficou gravada de forma perene num conjunto de obras que constituem algumas das melhores e simultaneamente mais influentes e controversas que a cinematografia alemã deu a ver ao mundo numa época em que a reconstrução a partir das ruínas da Segunda Guerra Mundial estava já consolidada. No ano de produção de DIE BITTEREN TRANEN DER PETRA VON KANT (AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT), 1972, Fassbinder já investira antes numa série diversificada de filmes de curta e longa-metragem, entre eles dois que o precederam e que fazem parte integrante do ciclo a ele dedicado (uma iniciativa organizada pela MEDEIA FILMES e a LEOPARDO FILMES), a saber, WARNUNG VOR EINER HEILIGEN NUTTE (CUIDADO COM ESSA PUTA SAGRADA) e HANDLER DER VIER JAHRESZEITEN (O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES), ambos de 1971. Em qualquer deles, o autor imprimia um cunho particular na abordagem das matérias ficcionais e na caracterização das personagens, sendo mesmo o primeiro citado uma espécie de auto-crítica, ao incidir na figura de um realizador cuja personalidade foi concebida a partir da sua experiência pessoal durante a rodagem de um western revisionista intitulado WHITY, 1970. Esta associação e inserção da vida vivida na sua obra manteve-se de um modo subliminar na definição geral do projecto AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT, que aqui analisamos, especialmente no comportamento das personagens que preenchem o espaço fechado da casa da protagonista e sobretudo do seu quarto povoado de objectos que carregam uma carga material e simbólica absolutamente palpável, associados ao universo da alta costura, não obstante serem meras projecções de sombras e luz num grande ecrã. De facto, numa entrevista dada a Christian Braad Thomsen, publicada em “Politisk Filmkunst” (Copenhaga, 1973),  Fassbinder chegou mesmo a afirmar que Petra Von Kant (Margit Carstensen) era ele próprio, Karin (Hanna Schygulla), a mulher por quem Petra se apaixona, seria Gunter Kaufmann, e a fiel, masoquista, misteriosa e quase sempre presente assistente e empregada, Marlene (Irm Hermann), o “retrato” de Peer Raben. Não importa saber quem eles são. Note-se apenas, para o que nos interessa, que são homens as referências num filme em que nem um só participa de carne e osso no desenvolvimento da acção. Estão lá, sim, mas na intriga e nos diálogos pouco abonatórios para o modo de ser e estar masculino a quem Petra, sobretudo ela, atribui defeitos que vão da personalidade dominadora e machista até aos aspectos orgânicos mais básicos, como o “fedor a homem”. Mas quem vem a ser afinal esta Petra Von Kant? Estilista de moda (saberemos depois com uma carreira de sucesso, mas que no entanto parece necessitar de um impulso renovador), no momento em que a encontramos vive mergulhada nos seus conflitos interiores que a fazem passar mal as noites, segundo ela, carregadas de pesadelos que a atormentam.

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Na sequência inicial está na penumbra do seu quarto, dorme. De súbito, uma cortina que se abre com alguma violência deixa entrar a luz do Sol, constituindo este despertar uma espécie de ruptura com os fantasmas e as febris inquietações nocturnas. Mas quem abre essa cortina, Marlene, só pelo olhar que lança sobre Petra, parece não acreditar nessa redenção matinal, antes pelo contrário, ela sabe que ao peso da noite irá seguir-se um pulsar de morte que bate latente como o ritmo de um coração atacado por doença que não controlamos, enquanto a invasão do espaço cenográfico se perfila na relação com outras personagens que irão ser dali para a frente as interlocutoras privilegiadas da protagonista. Marlene, quem será esta mulher silenciosa e oprimida, que não diz uma palavra? Um anjo da guarda ou o anjo exterminador? Na prática, uma mulher pálida e fria, que obedece a ordens sem as questionar, apesar do seu rosto indiciar a mesma estranheza que nós, espectadores, partilhamos pelas manifestações irascíveis e sádicas da patroa. Perguntamos muitas vezes ao longo do visionamento se ela ama de facto Petra ou se gosta de ser o manequim vivo ao serviço da arbitrariedade de quem a domina do ponto de vista laboral e, porventura, social. Finalmente, Marlene será a mulher que, ao deambular por entre as outras mulheres, no seu papel maioritariamente submisso, vai acompanhar a inversão de papéis que se processa quando Petra conhece uma jovem de uma outra classe social, Karin (que lhe fora apresentada pela sua amiga Sidonie, interpretada por Katrin Schaake, burguesinha conformada no papel clássico da mulher e amante) com uma visão do mundo dos homens igualmente diferente, num processo em que a designer de moda vai procurar moldar, como se fosse um improvável Pigmaleão, a jovem que só quer saber de si e do seu pequeno umbigo, arrivista que naturalmente resiste e faz da sua nova mentora gato sapato. De repente, Petra deixa-se submeter a um jogo de poder, consciente que não pode possuir Karin de outro modo, acabando por se deixar humilhar de uma forma não muito distante da que ela usava, e em abono da verdade, vai continuar a usar cada vez que lhe surge a oportunidade de empurrar para o “lugar” de simples criada a inefável Marlene. Escusado será dizer que, aqui chegada, a realização não poupa ninguém e investe contra as contradições das diversas personagens de um modo muito claro, objectivo que prenuncia o despojamento final em que Petra se vê confrontada no seu corpo e alma com os abismos da sua existência, os caminhos percorridos e os que já não deseja percorrer. Fica sozinha, apesar da presença da filha (Eva Mattes) que regressa momentaneamente de uma ausência prolongada, e da mãe (Gisela Fackeldey) que critica a filha por gostar de mulheres e com quem Petra não se relacionava de forma exuberante. No derradeiro quadro desta peça cinematográfica iremos assistir a uma espécie de redenção pela mentira, e Marlene, que sabe melhor do que nunca o que se vai seguir, faz as malas e parte. E esse momento dramático, encenado como se assistíssemos ao desfilar de um intrigante argumento planificado no palco da vida, será a imagem que nos faz regressar ao princípio deste filme convocando a memória das legendas iniciais que nos dizem, mais palavra, menos palavra: “UM CASO DE DOENÇA. DEDICADO ÀQUELA QUE AQUI É MARLENE”.

As Lágrimas Amargas de Petra von Kant
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No Teatro, porque o guião deste filme baseia-se numa peça escrita por Rainer Werner Fassbinder, o final era outro: Petra como que libertava Marlene do seu estatuto de submissão e pedia-lhe: “E agora, fala-me da tua vida”. E ao cair o pano o espectador recordava frase idêntica dita por Petra a Karin. Seria um novo ciclo que se iniciava ou a conclusão relativamente forçada de um mundo e de um relacionamento irrepetível…? No filme, o realizador preferiu o silêncio de Petra que, deitada na cama, apaga a luz e de novo mergulha nas sombras da noite, nas sombras e nas lágrimas da matéria cinematográfica.

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As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, em análise

Movie title: Die bitteren Tränen der Petra von Kant

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Margit Carstensen, Hanna Schygulla, Irm Hermann, Eva Mattes

Genre: Drama, 1972, 124min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Mais uma magnífica cópia restaurada, que nos permite ver, com os olhos bem abertos, a arte e saber do grande Michael Ballhaus na Direcção de Fotografia. Perfeita inserção na banda sonora musical de modernos e clássicos, como THE PLATTERS, THE WALKER BROTHERS e GIUSEPPE VERDI.

CONTRA: Nada.

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