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O Casamento de Maria Braun, em análise

Após “Roleta Chinesa” e “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant“, “O Casamento de Maria Braun” marca presença no ciclo de Rainer Werner Fassbinder!

MARIA, QUE NÃO ESPERA POR MILAGRES…!

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O Casamento de Maria Braun
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Nos planos iniciais do filme DIE EHE DER MARIA BRAUN (O CASAMENTO DE MARIA BRAUN), 1979, damos de caras com um acidentado casamento realizado ao som de numerosas explosões provocadas pelo impacto das bombas lançadas pelos aliados sobre alvos previamente determinados para atingir e desorganizar as infraestruturas básicas da Alemanha nazi e, nos planos finais, daremos conta de uma violenta explosão no interior de uma casa burguesa que, de certo modo, despedaça o referido e assombrado matrimónio entre uma mulher de nome Maria (Hanna Schygulla) e um soldado de nome Hermann Braun (Klaus Lowitsch). Pelo meio, o realizador Rainer Werner Fassbinder irá percorrer alguns anos da História alemã desde o imediato pós-guerra, incidindo primeiro nas consequências visíveis da ocupação americana, sejam elas as boas ou as mais controversas, até ao progressivo libertar das grilhetas impostas pelos aliados e a instalação de uma plataforma de desenvolvimento democrático que o Plano Marshall ajudou a conciliar e consolidar, sem no entanto impedir o regresso de antigas formas de corrupção material e espiritual que, no seio de alguns sectores da sociedade, reproduziram velhas fórmulas de dominação ideológica e exploração laboral defendidas desde há muito pela classe plutocrática dominante. Do ponto de vista da crítica social, estamos perante o retrato de um país devastado onde se pratica um manhoso negócio de compra e venda de corpos e almas, um mercado negro em que o valor de qualquer coisa se mede pela necessidade de obter qualquer outra coisa. Deste modo, o guião associa as preocupações do cineasta, que são igualmente as daqueles com quem ele partilha os créditos do argumento, Peter Märthesheimer e Pea Fröhlich, reforçando, a partir de uma sequência de acontecimentos do quotidiano de um país derrotado e devastado, uma visão mais aprofundada das contradições pessoais, e não só, prevalecentes no precário equilíbrio entre a sobrevivência pura e dura, por vezes a qualquer custo, e a necessidade de seguir em frente, esquecendo os anos de chumbo e sobretudo escondendo as eventuais e comprometedoras cumplicidades com o poder nazi, nas suas manifestações mais populistas e perigosas, que no fundo desencadearam os dias negros da Segunda Guerra Mundial. Mas, para ir mais longe na abordagem desta época conturbada, os autores introduziram igualmente no processo narrativo um bom número de conflitos dramáticos, a começar pelo que vai determinar em grande parte o percurso de Maria Braun que vemos, dia após dia, especada na estação dos caminhos-de-ferro com um cartaz pendurado ao pescoço onde se faz um apelo a quem conheça o marido e possa dar informação sobre o seu paradeiro. Maria vive na esperança de encontrar resposta para o enigma que a atormenta, saber o que foi feito daquele que, um dia e meio depois de casarem, partiu para a frente Leste. Será na casa que partilha com a mãe, através do relato de um familiar que conseguiu sobreviver e regressar, que irá finalmente receber a notícia de que Hermann Braun estava morto. De repente, Maria, que até era capaz de acreditar em milagres, sobretudo na possibilidade de um regresso a casa daquele que sempre amou, deixa de acreditar no que quer que seja, a não ser nos expedientes que a sua figura sensual permite engendrar para fazer renascer a sua vida, mesmo que para isso precise de adoptar um modo de ser e estar condicionado pelo meandros do negócio da prostituição. Maria, a noiva, passa a Maria, a pecadora, num bar para militares americanos, maioritariamente negros, quase sempre arrogantes nas manifestações do seu pseudo-poder, na verdade um poder que se revela eficaz quando distribuem bens de consumo como cigarros, meias de nylon ou chocolates, mimos e fantasias para quem deles se viu privado. Troca desigual, sexo por meia dúzia de dólares convertidos em produtos perfeitamente banais, se as personagens vivessem numa era de verdadeira paz. Todavia, Maria nota que entre os militares existe um que se destaca, Bill (George Byrd). Ele quer precisamente o que os outros querem, mas no entanto parece mais calmo e maduro ou, pelo menos, mais sóbrio e educado, e Maria inicia com ele uma relação adulta, que se pode considerar com alguma viabilidade no quadro de um novo e frágil relacionamento familiar. Só que, por ser negro, as coisas não vão ser fáceis, sobretudo quando Maria engravida e alguém lhe diz que nem ela nem o filho serão aceites na sociedade racista e hipócrita onde ela está inserida. Mas o pior estava para vir. Um belo dia, estão os dois na cama quando o ex-combatente Hermann Braun entra no quarto, como se fosse um morto-vivo a regressar do além. Hermann não morreu, contra a mais realista das expectactivas. Está vivo, embora aquela visão da mulher na cama com um homem, ainda por cima negro, seja um prenúncio de morte que o leva a investir com violência contra Bill. Porém, será Maria que resolve a situação, apesar de mal, mesmo muito mal, numa atitude meio racional, meio impulsiva, que provavelmente procurava salvaguardar a possível integridade e continuidade da sua relação com o marido agora “renascido”.

O Casamento de Maria Braun
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De facto, Maria mata Bill, e Hermann, para salvar a mulher com quem casara, dá-se como culpado. No fundo, preso por um crime que não cometeu, acaba por “morrer” uma segunda vez. E Maria Braun, sozinha, parte para uma nova etapa da sua emancipação, que prossegue paralelamente a um desejo óbvio de ascensão social. E aqui começa uma outra era, um novo e singular capítulo na história de Maria que, por artes de sedução, acaba por se infiltrar nos domínios da burguesia industrial, passo a passo e com pezinhos de lã, primeiro como empregada, logo a seguir conselheira e finalmente como amante do capitalista Karl Oswald (Ivan Desny), a quem impõe a sua singular personalidade de empreendedora, sempre pronta a sacrificar a sua honra, se necessário for, para concretizar um negócio mais difícil de alcançar, especialmente quando os interlocutores são americanos (aliás, um dos principais requisitos para ser contratada por Karl foi o saber inglês, como ela diz, aprendido na “cama”). Depois, com o andar da carruagem, Maria e Karl vivem um cada vez mais complexo jogo de máscaras que esconde aquilo que cada um sabe ou não sabe um do outro, nomeadamente a situação de Hermann, que na prisão assiste ao desenlace existencial dos improváveis amantes, até ao momento em que na sequência final regressa mais uma vez ao lar, aquele que Maria conquistou a partir de um relacionamento delineado para obter poder e fortuna, gerando assim um novo casamento de interesses. Situação que, no interior de uma nova conjuntura herdada pelo poder político instalado na República Federal da Alemanha, se associa ao poder económico da situação concreta da herança favorável a Maria e Hermann, que fora planeada por Klaus antes de morrer.

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Rainer Werner Fassbinder dá-nos mesmo uma data precisa para acabar com este drama de uma mulher, da sua família e dos seus homens: a final do Campeonato do Mundo de Futebol disputada entre a Alemanha e a Hungria, ou seja, o dia 4 de Julho de 1954. Nessa final, a Alemanha venceu a Hungria, onde se distinguia o genial Ferenc Puskás, por 3-2. Por um lado, os gritos de alegria do repórter no estádio, relato que se ouve na banda sonora, dão conta de um desportivo “milagre alemão”, que ficou conhecido pelo “Milagre de Berna”. Por outro, O CASAMENTO DE MARIA BRAUN deu a Fassbinder a oportunidade de nos contar o princípio e o fim de um outro inebriante e alegado “milagre alemão”.

O Casamento de Maria Braun, em análise
O Casamento de Maria Braun

Movie title: Die Ehe der Maria Braun

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Hanna Schygulla, Klaus Löwitsch, Gisela Uhlen, Ivan Desny

Genre: Drama, 1979, 120min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Foi a última colaboração, num filme de R. W. Fassbinder, do notável Director de Fotografia Michael Ballhaus.

Na obra do realizador, foi um dos maiores sucessos comerciais da sua diversificada carreira, assim como um dos filmes mais valorizados junto da crítica.

No elenco, destaque óbvio para Hanna Schygulla no papel de Maria Braun (personagem inicialmente pensada para Romy Schneider), que no entanto não faz esquecer a maioria dos outros actores protagonistas ou secundários, incluindo uma breve mas significativa aparição do realizador na figura de um homem do submundo do crime organizado, protagonista de práticas duvidosas no mercado negro, situações que prevaleceram no imediato período de corrupção e miséria do pós-guerra.

Inserção subtil, mas contundente, da História alemã na história pessoal e colectiva das personagens em presença.

CONTRA: Nada.

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