Cuori Puri

11ª Festa do Cinema Italiano | Cuori Puri, em análise

Em “Cuori Puri”, a promessa de virgindade antes do matrimónio por parte de uma jovem torna-se numa fonte de conflito quando ela se apaixona por um homem fora da sua comunidade religiosa. Este filme de Roberto de Paolis estreou no Festival de Cannes do ano passado e está agora em competição na 11ª Festa do Cinema Italiano.

Duas figuras correm. Um homem e uma mulher, ambos jovens, ele persegue-a a ela. Ele é Stefano, o segurança de um centro comercial que está a tentar viver de modo legal e estável após uma juventude embrenhado, ora na miséria e aproveitamento interesseiro dos pais que aparentemente se recusam a trabalhar, ora nos esquemas criminosos dos seus amigos e vizinhos. Ela é Agnese, uma rapariga quase a fazer dezoito anos de classe média alta que vive com uma mãe severa e extremamente religiosa, decidida de tal modo a salvaguardar a pureza da filha que lhe confiscou o telemóvel para ela não trocar mensagens com rapazes da escola. A jovem está a tentar roubar um telemóvel para substituir aquele que lhe foi confiscado e o segurança está somente a tentar fazer o seu trabalho. É assim que começa “Cuori Puri”.

Para filmar estes momentos iniciais, o realizador Roberto De Paolis, que aqui assina a sua primeira longa-metragem, escolhe uma abordagem reminiscente dos grandes estudos de personagem de John Cassavetes. Referimo-nos ao uso de grandes planos freneticamente energéticos na sua perseguição predatória dos atores, tão focados e centrados na face expressiva que o mundo em redor é praticamente imaterial, somente um pano de fundo esborratado e sem importância. Não se trata de uma solução formal particularmente original, especialmente se considerarmos o panorama do cinema independente europeu e americano das últimas décadas, mas serve para estabelecer os interesses do filme e seu fofo. Esta é a história de duas forças, dois indivíduos e sua trajetória em relação ao outro, uma trajetória destinada a terminar na colisão dos dois.

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“(…)CUORI PURI funciona muito melhor quando os seus dois protagonistas estão separados(…)”

Para salientar ainda mais essa dinâmica, De Paolis estrutura o filme como se este se tratasse da junção de dois estudos de personagem magneticamente atraídos um para o outro. Desde a escolha de composições simétricas à encenação de passagens carregadas de atração formalmente ilustrada, como o momento em que os olhares de Agnese e Stefano se parecem cruzar quando, em dois pontos opostos da cidade, os dois fitam a mesma coluna de fumo no horizonte. Infelizmente, não obstante todos estes mecanismos fílmicos para salientar a inevitabilidade da colisão entre estas duas forças humanas, há que admitir como “Cuori Puri” funciona muito melhor quando os seus dois protagonistas estão separados, quando o espectador pode somente examinar os estudos de personagem e comunidade singulares e não a forçada interação romântica dos dois.

Esse desequilíbrio do filme, em que as partes são mais gloriosas que o todo, deve-se parcialmente a quão bem definidas as comunidades em cena e algumas das personagens são. Stefano, por exemplo, é, por seu mérito próprio, um protagonista muito mais apropriado a um estudo de personagem com temas de realismo social que a um drama romântico. Pelo menos, é essa a ideia transmitida pelo texto e especialmente pelo ator Simone Liberati que nunca perde uma oportunidade para salientar as qualidades abrasivas da sua personagem, sem, no entanto, deixar de sombrear os lados mais negativos de Stefano com pequenos rasgos de autorreflexão silenciosa e palpável dúvida. Este é um homem arrogante, preguiçoso, xenófobo e criminoso, mas é também uma figura carismática, charmosa e com suficientes princípios para ter remorsos dos seus crimes e erros.

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Agnese, interpretada de Selene Caramazza, é uma figura menos coerente e clara que Stefano. Há que se entender que “Cuori Puri” é, em parte, um estudo do romance entre estes dois indivíduos, e também um retrato das suas comunidades e respetivos valores. Um desses valores representa o grande conflito de Agnese ao longo do filme, a promessa de castidade antes do casamento, a preservação da suposta pureza que sua mãe tanto quer proteger na sua filha. Tal peso temático sobre a caracterização de Agnese talvez seja a grande razão pela qual a personagem parece sempre um tanto ou quanto ambígua e reticente nas suas motivações, escondendo a sua interioridade do olhar da matriarca e do próprio espectador, mesmo quando Caramazza se prostra diante da câmara em epítetos de vulnerabilidade adolescente.

Os problemas inerentes à caracterização de Agnese tornam-se particularmente evidentes quando a estrutura narrativa do filme parece exigir ao espectador que veja no seu romance com Stefano, uma paixão gloriosa e poderosa. É que, de uma perspetiva bastante fria, o romance central de “Cuori Puri” parece simples fruto da atração física mútua de dois jovens bem-parecidos e orientados pelo seu próprio desejo sexual. Nada disso é mau, mas o guião nunca trata esta relação como algo tão simples, querendo pintar Stefano e Angnese como as almas gémeas um do outro, acabando mesmo por encerrar o filme com um abraço dos dois beijado por cálidos raios de sol. Não há nada pior que um romance em que a componente romântica é a parte mais incredível da narrativa.

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“(…)a componente romântica é a parte mais incredível da narrativa.”

Isto é uma pena, pois “Cuori Puri” tem uma série de outros elementos que, caso não fossem subalternos à história de amor pouco convincente, poderiam brilhar por mérito próprio. A análise dos sentimentos de xenofobia na Itália contemporânea e sua diferente manifestação entre distintas classes sócio-económicas é, por exemplo, um dos grandes pontos de interesse do filme, mas está sempre relegado ao background. De igual modo, a ambiguidade moral com que De Paolis retrata os valores conservadores da comunidade católica é também motivo de admiração, sendo que o filme evita vilificar tais ideais e dogmas, chegando mesmo a encontrar razão e tolerância no seu seio, ao mesmo tempo que os observa com palpável distância crítica e alguma dose de julgamento pejorativo. De forma semelhante, a mãe de Agnese e seus comportamentos para com a filha, que incluem levá-la a uma ginecologista para garantir a virgindade da jovem, são pouco examinados por muito complexos e merecedores de atenção que possam ser. Enfim, “Cuori Puri” está longe de ser um mau filme, mas é precisamente a sugestão de grandeza que o torna numa experiência de especial frustração.

 

Cuori Puri, em análise
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Movie title: Cuori Puri

Date published: 11 de April de 2018

Director(s): Roberto De Paolis

Actor(s): Selene Caramazza, Simone Liberati, Barbora Bobulova, Stefano Fresi, Edoardo Pesce, Antonella Attili, Federico Pacifici

Genre: Drama, 2017, 115 min

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO

“Cuori Puri” é uma coleção de oportunidades perdidas, forçando um romance pouco convincente a impor-se sobre um retrato observacional de diferentes comunidades da Itália contemporânea. Uma certa elegância formal e bom trabalho do elenco nunca deixam que o filme caia na mediocridade.

O MELHOR: A inteligente ambivalência com que o filme retrata tanto Stefano como a comunidade religiosa de Agnese, assim como a sensualidade desavergonhada de uma cena de sexo perto do final da narrativa.

O PIOR: O foco inorganicamente dramático na história de amor entre Stefano e Agnese.

CA

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