"Of This Beguiling Membrane" | © Curtas Vila do Conde

Curtas Vila do Conde 2021 | Competição Experimental 4

Vislumbres da Escócia e memórias nova-iorquinas estão em destaque no último grupo de filmes na Competição Experimental do Curtas Vila do Conde 2021. Até ao fim do mês, os filmes estão disponíveis online.

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GLIMPSES FROM A VISIT TO ORKNEY IN SUMMER 1995 de Ute Aurand

O cinema de Ute Aurand cristaliza em si uma sensação de intimidade que poucos outros cineastas conseguem replicar. Ela faz isso através do puro formalismo, usando a textura da película e a expressividade da montagem para evocar a ideia de um olho irrequieto que tudo tenta capturar. Seu mais recente filme, “Glimpses from a Visit to Orkney in Summer 1995”, ganha ainda mais intimidade pelo sujeito que se propõe a homenagear. No centenário da cineasta e poetisa Margaret Tait, vários artistas propuseram-se a celebrar essa senhora escocesa. Para Aurand, o projeto tem especial importância, pois Tait era sua amiga pessoal. Nesta fita, ela recorda uma tarde passada entre mulheres nuns jardins em Orkney, na Escócia.

A estratégia de Aurand passa pela explosão de várias imagens de curta duração, palimpsestos florais que se desencadeiam num frenesim bucólico. Pelo meio, passagens de cor abstrata fazem-se sentir, dando compasso rítmico a um filme sem som para orientar o espetador. Há algo de bucólico, até melancólico, nestas impressões vegetalistas. A fragilidade das plantas filmadas certamente sugere a mortalidade humana, a condição outonal de Tait aquando desse dia em 1995, O resultado é um minimalismo lírico que seduz pela sua modéstia, mas também deixa o espetador a querer mais. Com uns parcos quatro minutos, “Glimpses from a Visit to Orkney in Summer 1995” é uma miniatura poética e um dos filmes mais curtos em competição neste festival.

 

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OF THIS BEGUILING MEMBRANE de Charlotte Pryce

O trabalho da cineasta Charlotte Pryce é inspirado, em certa medida, por “The Secret Commonwealth”. Trata-se de uma coletânea de contos folclóricos, histórias mirabolantes de seres sobrenaturais a pontilharem a paisagem escocesa. O livro remonta ao século XVII, mas as origens de suas ideias são muito mais ancestrais, remontando a mitos primordiais das terras altas. Tal como contadores de histórias outrora olharam para o mundo e dele extraíram a possibilidade de fantasia, também Pryce encara as imagens que a sua câmara capta como poços profundos por onde a imaginação se pode aventurar em busca da água mágica, do néctar dos deuses e das fadas. Logo isso se manifesta quando o ecrã se enche com a superfície aquosa de um ribeiro, por onde insetos leves como plumas flutuam.

A fotografia desse momento é algo esplendoroso. Focando-se no pormenor minúsculo, Pryce consegue descontextualizar a sua documentação natural. Daí emerge uma visão de reflexos doirados, espelhos derretidos que mudam de forma com o passar da corrente aquosa. Contudo, por muito que a ondulação aumente, as silhuetas dos invertebrados mantêm-se retas. Passado um pouco, já as nossas mentes transfiguram a cena numa pintura viva de algo que transcende a natureza. Eles parecem espíritos, sombras fantásticas que caminham sobre a luz líquida do ribeiro. Também se fazem apelos à imagética da Ofélia afogada, essa figura Shakespeariana e seu túmulo aquático, na lama e nas flores. O exercício em si é muito simples, sendo composto por meia dúzia de planos prolongados. Contudo, aquilo que Pryce consegue suscitar é feitiçaria cinematográfica.

 

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MISTY PICTURE de Christoph Girardet e Matthias Müller

Christoph Girardet e Matthias Müller não filmaram uma única imagem de “Misty Picture”. Pelo contrário, seu trabalho consiste na colagem de vários excertos cinematográficos em que as Torres Gémeas aparecem. Ao som da música elegíaca de Chris Jones, assim se desenrola o filme, essa assombração de uma Nova Iorque antes do 11 de Setembro de 2001. Primeiro, focando-se numa série de planos circulares voando em volta da Estátua da Liberdade, até parece que os cineastas estão a iluminar clichés do cinema Americano. Contudo, à medida que as Torres ganham maior domínio sobre o plano, também o tom se transfigura. Lentamente, somos forçados a confrontar o valor simbólico e a realidade humana da cidade. Mesmo que jamais nos aproximemos do cidadão comum, sentimos a sua presença nas ruas, esses vasos sanguíneos da capital financeira dos EUA.

Tanto tempo passa, dos anos 70 à alvorada do século XXI, e por tantos géneros de cinema passamos. Nalguns instantes que dão calafrio, até se veem explosões e aviões circundando os edifícios. Talvez o maior impacto não venha sequer das imagens de destruição em volta das Torres gémeas saídas de filmes de ação, desastres e apocalipses. É a esperança que mais dói, a ideia de que tudo ficaria igual. Num abrir e fechar de olhos, passa uma imagem que anuncia estarmos em 2012. Era certamente um futuro imaginado no passado, uma paisagem que nunca foi possível. Em 2012, já esses monumentos nova-iorquinos tinham há muito caído, seus traços no horizonte perdidos no éter da memória e todos estes filmes e fotos que preservaram seus fantasmas arquitetónicos. A perda queima a carne e o pensamento, a saudade reverbera em “Misty Picture” com força titânica. Ninguém pode ficar indiferente perante tais imagens.

Além dessas três obras, há ainda mais um trio nesta parte do festival. Podes vê-los todos na plataforma online do Curtas Vila do Conde 2021. Ficam aqui as sinopses oficiais que o festival divulgou:

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BAKI TADU É de Kate Saragaço-Gomes e Calum MacBeath Morgan

Tadu Baki adentra-se na selva. Surge como um caminhante que segue imperturbável o seu percurso de costas voltadas para nós – ou de rosto voltado para o caminho. É uma selva-visão, tal como não existem os interiores que completam o final do filme. Aquilo que os realizadores nomeiam de “espaço impossível”, um lugar que não é contextualizado e assim o é porque conjuga coisas que são à partida impossíveis de conjugar. E se o lugar surge fora do tempo e do espaço, também Tadu Baki está longe de poder ser nomeado: não sabemos quem é, apenas que caminha. A dada altura, um “zoom-in” e Tadu Baki gira brevemente a cabeça em direção aos seus ombros, sem que, todavia, ainda nos enfrente. É o corte com qualquer distância. Afinal, a câmara é um espectro e Tadu Baki pressente-a. Agora este é o seu tempo, e aquela a imagem perfeita daquilo que é esquecido, mas, ainda assim, relembrado em jeito de sensação. E que não difere da sequência final, num espaço ainda menos cognoscível do que o anterior, que a luz revela e omite num jogo de (in)visibilidades e onde a alteração espacial magicamente se dá, sem que tenhamos acesso àquela “qualquer coisa” que a provoca.

 

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SURVIVING YOU, ALWAYS de Morgan Quaintance

Morgan Quaintance, vencedor do Grande Prémio Experimental do 28.º Curtas Vila do Conde, regressa com a curta-metragem “Surviving You, Always”, uma romantização intelectual de Timothy Leary sobre as drogas psicadélicas e a vida na metrópole londrina na década de 1990, carregada pela violência da segregação de classe e racial. Morgan Quaintance contrapõe duas realidades distintas no mesmo plano de imagem, uma bipolaridade de mundos e experiências que formam o pano de fundo de um filme desconcertante, desafiante à atenção do espectador: por um lado, a voz de Timothy Leary sobre a influência das drogas psicadélicas na expansão da consciência humana; por outro, o relato de um jovem de South London que passava todos os fins-de-semana sob o efeito de ácidos com um amigo, contado através de imagens fixas e da narração escrita. Seguir ambas as perspectivas é um exercício de distensão da mente, mas a edição contínua de Morgan Quaintance evoca esse sentimento firme, quando se estabelece uma ligação entre duas pessoas. Ainda assim, tal como nas alucinações, existe a ideia que as amizades da adolescência costumam durar para sempre — mas raramente duram.

 

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TRAIN AGAIN de Peter Tscherkassky

Uma vez mais, o comboio. É através dele que Peter Tscherkassky nos faz regressar aos primórdios do cinema. O título, “Train Again”, convida-nos a ver uma e outra vez, permitindo-nos ver outras coisas, ou as mesmas como diferentes. Cavalos que correm, imagens que galopam, indomáveis. Por entre os carris projetamos uma miríade de ficções a preto-e-branco, antevendo o acidente. Engrenagens e carruagens movendo-se a todo o vapor, como as teclas de um piano em marcha; cruzando-se, sobrepondo-se, fundindo-se. Rostos-fantasma, olhares espantados. Trabalhadores que saem da fábrica, transportando-nos até à primeira sessão pública de cinema. “Western”, abstração, ação, fantasia, tudo se precipita sob o olhar. Tudo é movimento. Vertigem. Tscherkassky, cineasta austríaco que é um dos nomes incontornáveis do cinema experimental, tem tido uma forte presença no Curtas, exibindo diversos filmes. Em 2006 expôs na Solar fragmentos da sua obra em película, de que se serve para atravessar as fronteiras entre o real e o imaginário, o figurativo e o abstrato, a luz e a sombra, e sobrevoando diferentes tempos, em imagens fragmentárias e ilusórias, como as memórias.

Explora o resto da nossa cobertura do Curtas Vila do Conde 2021. Os filmes estão disponíveis online até 1 de Agosto. Não percas!

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