De Hilde, Com Amor, a Crítica | O sacrifício de Hilde Coppi no grande ecrã
Andreas Dresen conta a história de Hilde Coppi em “De Hilde, Com Amor,” também conhecido como “In Liebe, Eure Hilde” no original alemão. O filme competiu pelo Urso de Ouro na Berlinale do ano passado.
Nascida e crescida em Berlim nas primeiras décadas do século XX, Hilde Rake testemunhou a ascensão do partido Nazi e a transformação da República de Weimar do pós-guerra no Terceiro Reich. Durante o seu trabalho em enfermagem, nos anos 30, ela travou conhecimento com membros do Partida Comunista da Alemanha e, chegado o auge do Holocausto e o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, começou a participar em ações de resistência antifascista. Esta atividade atingiu o seu píncaro quando ela se envolveu com Hans Coppi, regressado à sociedade depois de uma pena de prisão, e com ele casou no verão de 1941.
Juntamente com o marido, Hilde Coppi integrou o grupo que veria a ser chamado de Orquestra Vermelha. Parte dos seus esforços envolveram a guarida de fugitivos e a partilha de informações da Radio Moscou que contradiziam a propaganda Nazi. Os seus ideais Soviéticos ainda a levaram a fazer campanhas ilícitas contra os esforços bélicos dos alemães, promovendo valores antiguerra à revelia do que o seu governo ditava. O heroísmo garantiu-lhe o lugar nos livros de História, mas também teve grandes custos para Hilde, Hans e restantes membros da Orquestra Vermelha. Em Setembro de 1942, ela foi presa, mesmo estando grávida, deu à luz na prisão e, menos de um ano depois, foi executada, tal como Hans havia sido.
Em luta contra o fascismo, no cinema e nas ruas.
Perante tal biografia, não é de admirar que cineastas como o realizador Andreas Dresen e a argumentista Laila Stieler tenham querido homenagear esta mulher no cinema, imortalizando-a além do que os seus feitos e incríveis sacrifícios já fizeram. Assim nasceu “De Hilde, com Amor,” um drama histórico que procura dramatizar os últimos meses na vida desta heroína, cortando entre o verão apaixonado dos Coppi e o desespero de Hilde atrás das grades, passando pela sua relação com o filho recém-nascido e sua sôfrega separação. De facto, o filme tem início no começo do fim, no dia em que ela foi levada para interrogatório e subsequente prisão, convidando-nos ao mundo da protagonista em cenário bucólico.
A primeira imagem que vemos é Hilde a apanhar morangos com a mãe, todo um quadro que suscita logo comparações entre a estratégia visual de Dresen e o que Jonathan Glazer fez com “A Zona de Interesse.” Em ambos os casos, encontramos realizadores em subversão do Lebensraum e suas estéticas. Por um lado, Glazer fê-lo através da exultação dessa imagética com uma abordagem fria e clínica, o contraste entre o conforto de um povo germânico e o custo infernal do seu privilégio a rugir na sonoplastia. “De Hilde, Com Amor” é mais subtil, preferindo puxar pelos mesmos valores estilísticos em prol de uma celebração daqueles que o regime queria fulminar.
Algumas das imagens parecem quase queimadas pelo sol, cheias de brancos que ardem e uma palidez marmórea. Há uma qualidade bucólica em muitas cenas, mas esta estilização fotográfica produz o inquietamento além do êxtase. Jamais nos deixamos confortar ou iludir. Como as personagens históricas, vive-se num paraíso temporário, sempre consciente do perigo e da instabilidade desse Éden. Um dia cairá o Carmo e a Trindade sobre este amor. Não é uma questão de ir acontecer ou não. É uma questão de “quando” ao invés de “se.” Por isso se valoriza mais a união dos dois, tão mais avassaladora pela fragilidade das suas condições.
O pastoralismo com que a diretora de fotografia Judith Kaufmann retrata os dias de amor e liberdade dos Coppi também ajuda a estabelecer um choque sensorial entre essas memórias doiradas e o pesadelo em cinquenta tons de cinza das prisões Nazis. O som não é tão violento como no filme de Glazer, mas também há expressividade nesse elemento. Pensemos no primeiro interrogatório de Hilde, quando os modos amistosos do oficial são visceralmente contraditos pela agressividade sónica de uma máquina de escrever. Tudo funciona no sentido de imergir o espectador na subjetividade da protagonista. O mais impressionante é quando Dresen consegue isso através da distância.
Liva Lisa Fries é incrível como Hilde.
Como quando Hilde é forçada a despir-se diante das guardas prisionais ou no momento da sua morte pela guilhotina. Em tais passagens, a câmara afasta-se da mulher, considera-a de forma quase clínica e nega-nos acesso à sua vulnerabilidade. Em termos paradoxais, dá-lhe uma dignidade que outros mecanismos, mais puxados para o melodrama de um grande plano choroso, não conseguiriam produzir. É evidente que tais escolhas só funcionam porque são sustentadas por um grande trabalho de ator. Liv Lisa Fries é incrível no papel principal, rendendo-se à fisicalidade da mulher a passar pela gravidez, o parto e pós-parto, a solidão extrema que a deixa sedenta por qualquer toque terno, o corpo drenado de esperança.
Só temos pena que esse retrato se afirme acima de outras considerações. Hans, por exemplo, permanece uma não-personagem até ao fim, esboço esbatido cujos ideais políticos são tão abstratos como os da esposa. Assim acontece num argumento tão empenhado em desenhar a paisagem sentimental de Hilde Coppi, que torna as suas convicções políticas algo secundário, quase incidental. Não será esta escolha estrutural uma traição ideológica? Estes revolucionários não mereceriam um filme mais ativamente político que este? Não se trata de uma questão panfletária, de querer um discurso didático ou prescritivo. Somente se interrogam as prioridades textuais.
Enfim, preferimos terminar a crítica com o elogio ao invés do ataque. Por isso celebremos um dos aspetos mais interessantes da fita, sua mostra de como alguém na situação de Hilde se consegue manter lúcida, buscando o conforto em algo tão inócuo como o sol que passa pela janela fosca da casa-de-banho ou as memórias impregnadas num vestido vermelho. Trata-se de uma das facetas mais humanas deste drama, uma reivindicação da vida perante um culto da Morte. Nos tempos que correm, com o fascismo de novo gritado nas ruas, a história de Hilde é importante, tanto o seu sacrifício como a sua resiliência, o modo como nunca vacilou. E assim celebramos o seu legado que, no filme, nos aparece rematado pelas palavras do filho, nascido na prisão e ainda vivo, ainda cheio de amor pelos pais que nunca conheceu.
De Hilde, Com Amor
Conclusão:
- “De Hilde, com Amor” evoca as memórias de um verão idílico, um sonho no meio do pesadelo fascista, tão mais precioso por quão efémero foi, tanto o calor da estação como a felicidade que nela floresceu. O amor perdura, mas o sonho morre. Esta é, no fim, a biografia de uma vida curta, a história de Hilde Coppi, cujo heroísmo deve ser celebrado, no cinema e nas ruas. Apoiado numa prestação notável de Liv Lisa Fries, esta obra de Andreas Dresen é um drama histórico com triste relevância nos dias que correm. A abordagem estilística é muito sóbria, quase a tombar num minimalismo relativo em contexto de época.
- Dito isso, o filme parece estranhamente relutante em explorar as ações específicas das personagens e sua luta contra o nazismo, preferindo um tom elegíaco para com Hilde, um poema honorífico que não reflete as convicções de uma mulher disposta a sacrificar tudo pela causa. Não vemos aqui más intenções, somente o vício comum da cinebiografia. Só queríamos melhor para o legado desta figura da resistência contra os nazis, contra o fascismo, contra a desumanidade.