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A Zona de Interesse, a Crítica | Um drama inesquecível do realizador Jonathan Glazer

A Zona de Interesse é uma obra do cineasta Jonathan Glazer (“Debaixo da Pele”), protagonizada por Sandra Hüller e Christian Friedel.

O filme sobre o qual irei incidir a minha análise crítica começa por um ecrã negro, mais precisamente um plano negro, que numa sala de cinema faz o máximo sentido e que no streaming ou em casa de cada um se arrisca a passar mais ou menos despercebido. Pior, interpretado como uma não-imagem. E no entanto o negro cinematográfico deve ser sempre considerado uma imagem, como qualquer outra que esteja “encerrada” nas quatro linhas do enquadramento. Por sua vez, na banda sonora ouvem-se sons estranhos, pelo menos não identificáveis numa primeira e ainda até certo ponto inadvertida audição.

O PARAÍSO DOS CANALHAS E O INFERNO ALI TÃO PERTO…

A Zona de Interesse
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Todavia, os sinais do horror já lá estão, bem visíveis e bem audíveis, sinais de morte, atmosferas do vazio, o nada, que poucos segundos depois dá lugar a uma idílica cena de Verão. Trata-se de uma sequência bucólica de puro lazer onde o que parece ser uma normalíssima família – pai, mãe, filhos e alguns amigos – aproveita as delícias de um passeio ao campo e as refrescantes águas de um lago onde alegremente mergulham, nadam e brincam como se aquele mundo fosse parte indelével e integrante de um paraíso perdido algures no Leste da Europa. Estamos a falar de “The Zone of Interest” (A Zona de Interesse), 2023, coprodução entre os EUA, o Reino Unido e a Polónia, escrita e realizada pelo inglês Jonathan Glazer. Parece de facto o cenário de um paraíso ao alcance apenas de um grupo de privilegiados, neste caso de nacionalidade alemã.

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Pouco depois confirmaremos que aquele espaço e o perímetro igualmente ameno da austera, funcional mas confortável casa onde habitam, rodeados de empregados recrutados junto das populações locais, se situa paredes meias com o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. Decorre a acção nos dias negros, de brasa, seria melhor dizer por ali de cinzas, da Segunda Guerra Mundial, numa altura em que se iria ampliar a repressão sobre os opositores do regime nazi e sistematizar a mais dantesca política de genocídio em massa, projecto a que um conjunto de canalhas reunidos na Conferência de Wannsee deu o nome de “solução final”.




Na hierarquia familiar e, digamos assim, militar, encontramos o comandante do campo, um oficial da Schutzstaffel (SS), Rudolf Höss (Christian Friedel). Mas um homem forte, capaz de resistir a uma visão diária e constante da mais cruel violência sobre outros seres humanos, na verdade um zeloso guardião do seu programado extermínio, precisava de uma mulher de armas, que em certos momentos pudesse ser ainda mais imune aos ecos da barbárie que o vento arrastava do interior para o exterior do campo (ao longe, são constantes os gritos de dor e desespero, os disparos dos guardas prisionais) onde as câmaras de gás e os fogos crematórios funcionavam quase ininterruptamente. Hedwig (Sandra Hüller) irá desempenhar esse papel com exemplar dedicação, e a sua personalidade contaminada pelo mais reles cinismo e plasmada no seu rosto suíno não engana ninguém face ao que podemos definir como uma cristalina indiferença perante o sofrimento alheio. Trata-se de uma mulher oriunda seguramente de uma condição social inferior ao do estatuto que agora ocupa, uma mulher de expedientes que se safou bem, conforme salienta a mãe durante uma breve visita a casa da filha.

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Nessa altura, deslumbrada com aquela vida que nem nos melhores sonhos perspectivara, a progenitora congratula Hedwig e, porque ao contrário da filha não deixa de ser uma mulher simples e até certo ponto ingénua, confessa que por ali se lembrara de uma patroa judia para quem fizera limpezas, alguém que poderia estar agora do outro lado do muro. A aguardar a morte ou uma vida de escravatura, não diz ela mas dizemos nós por ela. “Nunca obedeças a quem obedeceu”, sábias palavras de um provérbio popular, que aqui se comprovam quando Hedwig, para admoestar uma empregada por uma questiúncula menor, ameaça reduzi-la a cinzas. Leia-se, fazer-lhe aquilo que só por pura e dura canalhice alguns diziam desconhecer sobre as práticas e os modelos de extermínio operados pelos nazis, já que as cinzas expelidas pelas chaminés dos fornos onde os corpos eram queimados chegavam a esvoaçar até perto de casa, manchando de cinzento a branca roupa estendida.

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De igual modo, Hedwig e as suas amigas não desconheciam as arbitrariedades cometidas sobre os que eram encarcerados no campo de concentração. Na verdade, não hesitavam em confiscar os bens das judias que elas sabiam estar a caminho da morte, mulheres como elas mas que nunca poderiam reivindicar ou recuperar valores como jóias, casacos de pele e um sem número de bens que no fundo as arianas sempre tinham cobiçado antes de adquirirem o poder que os membros do Partido Nazi e os seus mais próximos colaboradores conquistaram através da banalização do MAL. Do mal relativo, que nasce e cresce dentro de cada um, e do mal absoluto disseminado pelas diferentes hierarquias da sociedade e que o poder instalado lhes permitiu exercer de forma brutal e com alguma, demasiada, impunidade.




Na verdade, “A Zona de Interesse” não passa por uma, mas sim por muitas zonas de interesse. Muitos abocanharam-na motivados pelas mais reles idiossincrasias existenciais. Muitos foram movidos pelas suas mais mesquinhas agendas, pelo mais pérfido cálculo egoísta, pelos mais infames desígnios. Neste processo, defenderam intencionalmente princípios miseráveis de comportamento assumindo que não havia limites nem barreiras éticas ou morais que os impedissem de alcançar os fins desejados, qualquer que fosse o preço. Só nos consola saber que não há MAL que sempre dure e que o efeito boomerang funcionou contra os nazis e seus comparsas fascistas que saíram derrotados no final das contas, algumas das quais ainda estão por ajustar. Mas o poder do MAL pode ser despertado a qualquer minuto. Há por esse mundo fora genocídios em marcha, limpezas étnicas, e desta vez não são os judeus as principais vítimas. Só não vê quem não quer ver, como só não via quem não queria ver o que se passava do lado de lá do arame farpado dos inúmeros campos de concentração construídos pelos nazis. Infelizmente, não foram os únicos. Por isso a luta continua e por isso Jonathan Glazer referiu numa recente entrevista que este filme não constitui apenas uma abordagem de factos passados, antes pelo contrário, diz respeito aos nossos dias.

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Mas, regressando ao falso paraíso que o filme retrata, será importante referir que o ilusório e fabricado equilíbrio do casal Rudolf Höss/Hedwig, que aparentava a firmeza e resistência do aço nas relações com o seu correspondente círculo íntimo, logo iria sofrer um abalo de proporções quase épicas para as pretensões de manutenção de um sempre e muito desejado status quo social. Palhinha na engrenagem prenunciadora até de uma hipótese subliminar de ruptura. Tudo devido a uma simples notícia que equacionou a mudança do comandante de Auschwitz e da respectiva família para um outro local, aparentemente menos acolhedor e socialmente relevante. Neste capítulo, o filme que nos descrevera com minúcia a vida como ela era num contexto muito favorável para quem detinha na época as rédeas do poder político-militar, próxima do estado de graça de uma família burguesa mas com perfil de caserna, passa a polarizar uma demonstração cáustica de como era frágil esse mesmo poder face a circunstâncias adversas. Situação que os seus beneficiários, como os protagonistas, e outros quadros intermédios, bem vistas as coisas, não dominavam por completo.

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Para nos fazer sentir o local e o ambiente onde se passaram os acontecimentos descritos no filme, salientemos a notável reconstituição dos ambientes de cores frias (que na componente imagética fazem lembrar os processos fotográficos usados nos anos quarenta) e os pormenores do guarda-roupa e dos adereços. Mas igualmente sublime vai ser o modo como a realização articula estas matérias com o retrato sentimental das diferentes personagens, com o que as imagens nos dão a ver, com o que os sons não dão a ouvir e com o que permanece oculto num segundo plano que evita revelar de uma só vez a devassidão moral. Tudo sem nunca deixar os actores caírem na mera caricatura ou a generalidade dos valores de produção servirem uma vulgar e redutora reconstituição de época.




E, na verdade, o que mais assusta na encenação proposta pela realização acaba por ser a fortíssima sensação de que aquilo que se está a passar diante dos nossos olhos vem sustentado por uma narrativa que procura a verdade, a visão mais acutilante e incisiva do que aconteceu e que, infelizmente, pode voltar a acontecer caso não sejamos capazes de distinguir a linha ténue que separa os mundos incandescentes de LUZ dos mundos enegrecidos pelas TREVAS. Dito isto, se alguma vez passarem, por exemplo, pela belíssima cidade de Kraków, ou Cracóvia, não hesitem e façam o que eu já fiz e voltarei a fazer. Reservem um dia para visitar o que resta hoje dos campos de concentração de Auschwitz e Birkenau. Posso garantir-vos que o dilema que apontei deixa de ser algo encarado como sendo de difícil resolução, pelo menos na intimidade da nossa humana consciência.

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Por isso mesmo, não será certamente por acaso que numa breve mas elucidativa sequência de “A Zona de Interesse” Jonathan Glazer e o seu excelente Director de Fotografia, o polaco Lucasz Zal, nos brindam com imagens e sons do interior desse preservado complexo histórico, um museu para melhor percebermos e não apagarmos da memória o que foi a monstruosa, calculada e aperfeiçoada máquina de dominação e extermínio em massa da Alemanha nazi.

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Depois de “Folhas Caídas”, 2023, de Aki Kaurismaki, e de “Viagem ao Sol”, 2021, de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias (este estreado na última semana de 2023), “A Zona de Interesse” constitui a segunda grande estreia de 2024 e, juntamente com os filmes citados, mais uma obra para nos fazer pensar e repensar o passado, o presente e o futuro da condição humana e os limites impostos pelas suas mais diversas e perversas contradições.

A Zona de Interesse, a Crítica
A Zona de Interesse

Movie title: The Zone of Interest

Director(s): Jonathan Glazer

Actor(s): Sandra Hüller, Christian Friedel, Freya Kreutzkam, Max Beck, Ralf Zillmann

Genre: Drama, 2023, 105min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Excelentes valores de produção. Excelente Fotografia, Som, Direcção Artística, e ainda a minuciosa interpretação dos actores, protagonistas e secundários.

Realização muito eficaz e argumento de uma economia narrativa absolutamente exemplar.

Tudo o que disse e mais um dado relevante: no Festival de Cannes de 2023, recebeu o Grande Prémio do Júri.

CONTRA: Nada.

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2 Comments

  1. PedroMcGd 21 de Janeiro de 2024
  2. Antonio 2 de Fevereiro de 2024

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