MOTELx ’16 | Demon, em análise

Em Demon, uma cerimónia de casamento é tornada num pesadelo quando o noivo é possuído por uma entidade demoníaca e lembra todos os presentes que o Holocausto não é algo distante e esquecido do passado.

demon motelx

Independentemente de qualquer mérito ou demérito enquanto uma obra de cinema, Demon, a terceira e última longa-metragem do polaco Marcin Wrona, tem tido uma difícil viagem pelo circuito dos festivais. Qualquer qualidade que o filme possa ter é usualmente obscurecido pelo facto que, aquando da exibição do filme num dos maiores festivais de cinema da Polónia, Wrona cometeu suicídio. O papel desta produção no estado mental do seu cineasta é algo que tem sido debatido, mas não é isso que nos propomos aqui a analisar. Com tudo isso dito, em relação à trágica morte de Marcin Wrona fica aqui uma nota de tristeza tanto ao nível mais básico e humano, como a um nível cinemático, afinal, com esta morte, perdeu-se uma das poucas vozes no cinema polaco que estava realmente interessada em revitalizar o género de terror a nível nacional.

Seguindo em frente, um dos perfeitos exemplos de como Wrona demonstrava grande criatividade na sua abordagem ao cinema de terror encontra-se bem evidente em Demon. Falamos da conflagração de estilos e tonalidades de outros géneros cinematográficos, como a comédia, a reflexão histórica e o drama familiar. Neste caso, convém mencionar que os jogos tonais e estilísticos devem muito à origem do filme no teatro, sendo Demon adaptado de uma peça de Piotr Rowicki, e é daí que provém a ideia de usar uma história de possessão demoníaca como matriz para se desenvolverem questões da história polaca e do folclore judeu.

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Basicamente, a narrativa foca-se no casamento de Piotr e Zaneta que decorre numa quinta da família da noiva situada numa pequena ilha meio isolada do resto do mundo, mas onde, no passado, os crimes pérfidos do Holocausto chegaram e suas marcas ainda estão bem presentes, como numa ponte que nunca foi reconstruída desde que os alemães a arrasaram no tempo de guerra. Antes da cerimónia, um buldózer faz algumas escavações na propriedade que vai ser herdada pelos recém-casados, e, por entre a terra remexida, Piotr vê ossadas humanas.

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Depois de uma noite tempestuosa, em que o realizador começa a mostrar com zelo e delirante arritmia alguns toques de sobrenatural, o casamento começa de manhã, mas, durante o início do copo-d’água, depressa todos se começam a aperceber que algo está errado com Piotr. O que começam como hemorragias nasais e estranhas mudanças de humor rapidamente resvala em convulsões, espasmos e pesadelos acordados em volta da figura de uma noiva de cabelos castanhos e tez pálida que mais ninguém vê.

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Ela é um dybbuk, um espírito judeu enraivecido e malicioso que, neste caso, pertenceu em tempos a uma jovem rapariga que desapareceu no dia antes do seu casamento durante a 2ª Guerra Mundial. Tal como Guillermo del Toro fez o ano passado com Crimson Peak, a presença terrena deste fantasma pode ser aterradora mas, mais do que qualquer outra personagem em cena, ela é apresentada como alguém vitimado e cuja fúria não é apenas entendível como justificada. Estas facetas da assombração só ganham expressão concreta no terceiro ato de Demon, onde o filme se transmuta por completo e oscila entre o abstrato e a exposição declarativa, mas antes de nos debruçarmos sobre as passagens mais insatisfatórias do filme, falemos dos seus píncaros.

Desde que Piotr é engolido pela terra lamacenta e o filme corta para a manhã do casamento até ao auge da possessão durante uma macabra dança em que o corpo do noivo parece um boneco articulado a ser brutalmente retorcido, Demon é um verdadeiro espetáculo do primor diretorial de Marcin Wrona. Tal como joga com rasgos de humor quase absurdo, o cineasta vai editando mesmo os momentos mais inócuos deste dia infernal com uma ousadia formalista que aliena a audiência e nos previne logo para os males que estão guardados no futuro. Mas não é só em tornar o mundano em algo grotesco e ameaçador que Demon se exibe como um triunfo cinemático. Tome-se como exemplo uma louca cena onde a realidade terrena e a realidade espectral colidem numa frenética dança, em que a câmara vai cortando endiabradamente entre a noiva e seus pais a se divertirem na cacofonia jovial do casamento e Piotr, dançando com a noiva do passado, está num plano de existência distante, onde o som é pouco mais que um ensurdecedor silêncio e rasgos de ruído amorfo. Raramente se vê o passado e presente numa comunhão tão macabra, mesmo nos mais filosóficos filmes de terror.

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Apesar dessa maravilhosa tradução dos temas do filme em mecanismos cinemáticos, no terceiro ato essa tradução ora torna-se impossivelmente opaca ou deixa de existir para dar lugar a longas e forçadas cenas de exposição feitas em monólogos, onde a origem teatral do projeto finalmente mostra a cara de modo inegável. Aqui, o texto tem a triste tendência para se tornar muito didático, o que não quer dizer que o seu conteúdo seja de pouco interesse, antes pelo contrário. O modo como a história e seus crimes se enraízam na identidade nacional de uma nação e de como o passado influencia as vidas presentes é exposto com uma agressividade lancinante.

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É interessante, portanto, que, juntamente com suas instâncias mais verbosas e didáticas, Demon também mostre os seus momentos mais abstratos. Aliás, a coda do filme, desprovida de diálogo e passada na manhã seguinte, é tão opaca no seu simbolismo e significantes visuais que se torna uma peça de cinema tão fascinante quão frustrante. Até temos uma engraçada referência ao The Shining lá metida pelo meio, como um delicioso, mas desconcertante, piscar de olhos ao público que, como será de esperar para um filme do MOTELx, tem uma especial paixão por este tipo de cinema de terror.

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O MELHOR: A prestação do ator israelita Itay Tiran é uma explosão de fisicalidade grotesca e tensão perfeitamente calibrada. A forma como ele joga com o seu corpo e nos mostra o bizarro esforço dos seus músculos durante os epítetos da possessão merecem aplausos, algo a que este magnífico ator já deve estar habituado, sendo mais conhecido pelo seu trabalho em teatro.

O PIOR: A indefinição e falta de desenvolvimento de qualquer personagem que não Piotr. No caso de Zaneta isso é especialmente frustrante e prejudicial para o filme.


 

Título Original: Demon
Realizador:  Marcin Wrona
Elenco: Itay Tiran, Agnieszka Zulewska, Andrzej Grabowski, Tomasz Schuchardt
MOTELx | Terror, Comédia, Drama, Thriller | 2015 | 94 min

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