Deus Existe e Vive em Bruxelas, em análise

 

Em Deus Existe e Vive em Bruxelas, Jaco Van Dormael concebeu uma visão ácida e irónica da divindade cristã, olhando Deus como um cretino que se diverte com o sofrimento humano.

 

Deus Existe e Vive em Bruxelas Título Original: Le tout nouveau testament
Realizador: Jaco Van Dormael
Elenco: Pili Groyne, Benoît Poelvoorde, Catherine Deneuve
Género: Comédia
Alambique | 2015 | 104 min[starreviewmulti id=18 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’]

 

A representação de Deus tem sido uma constante na história do cinema, desde os primeiros anos de filmes narrativos em que tal presença divina era somente uma voz celestial manifesta em intertítulos. Com o avançar do desenvolvimento da arte e das sensibilidades morais e estéticas da sociedade, representações divinas no módulo cristão passaram a ser bastante mais complexas que uma simples voz vinda dos céus. Na sua mais recente obra, Jaco Van Dormaelr concebeu uma visão de Deus (Benoît Poelvoorde) que segue um pensamento intrinsecamente pós-moderno e irónico, substituindo qualquer benigna entidade toda-poderosa por um blasfemo cretino mesquinho que criou o mundo como modo de se entreter com o sofrimento humano. Deus Existe e Vive em Bruxelas, e com ele estão também a sua subjugada e abusada mulher (Yolande Moreau) e sua juvenil e revoltada filha, Ea (Pili Groyne), sendo que seu filho, Jesus Cristo ou JC (David Murgia) há muito o abandonou numa tentativa de salvar a humanidade.

Esta bizarra unidade familiar habita um apartamento sem portas no meio da capital belga, onde o único acesso ao exterior é um caminho secreto que termina numa lavandaria. É por essa passagem que Ea foge, após de ter, numa explosão de indignada fúria, enviado a toda a humanidade as datas das suas mortes, invalidando o poder de seu pai, e de desligar o seu computador, a fonte de dito poder. Deus é assim forçado a vaguear as ruas de Bruxelas como um sem-abrigo hostil em busca da filha, enquanto Ea vai colecionando histórias e seis apóstolos, concebendo assim um novo testamento e tentando retificar a crueldade de seu pai, que vê a humanidade como um jogo Sims celestial que existe para lhe apoquentar o aborrecimento. Uma panóplia de ideias tão absurdas como fascinantes são imediatamente despertas por estas premissas narrativas e a coleção de imagens em Deus Existe e Vive em Bruxelas que estão carregadas de informação e simbolismo.

Deus Existe e Vive em Bruxelas

Por exemplo, um dos elementos mais interessantes, que é sugerido pelas escolhas estilísticas do autor, é a imagem do todo-poderoso computador. No mundo atual em que vivemos e em que o computador não é, de todo, uma alienante novidade ou estranha criação de tecnologia exclusiva para o uso de alguns, como o era nos anos 80 onde deflagrou pelo cinema uma estranha e deliciosa fobia pela tecnologia, essa mesma ferramenta é algo banal. Por isso mesmo, ela é perfeita para ser a ferramenta de criação do universo e da humanidade. Algo nunca posto em questão pelo filme é, interessantemente, o facto de como o computador é quem parece ter todos os poderes atribuídos a Deus. Apesar de estar sob o controlo de divindades humanoides, é o objeto mecânico que em si detém a chave para a existência humana, Isto é tão jocosamente divertido como perfeitamente apto à sociedade contemporânea em que o computador é tanto um ídolo de adoração, como uma omnipresença inescapável e necessária.

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Infelizmente, nem todas as imagens do filme são tão formidáveis como a do computador divino e o argumento, da autoria de Dormael e Thomas Gunzig, está recheado de conceitos nunca desenvolvidos, enchendo o edifício cinematográfico de Deus Existe e Vive em Bruxelas de ideias que não levam a lado nenhum. Um dos maiores e mais repreensíveis problemas da narrativa, e exemplo dessa menoridade ideológica, é a sua limitação de todos os conflitos humanos ao prisma do amor romântico e desejo sexual. Mesmo os apóstolos cuja inicial apresentação não pareça pedir qualquer desfecho romântico, acabam por ver o seu arco narrativo reduzido a uma farsa sexual ou a um romance triunfante.

Deus Existe e Vive em Bruxelas

Esta limitada perspetiva atinge os seus tristes píncaros nas duas apóstolas e na representação feminina de modo geral. A mais jovem apóstola, Aurélie (Laura Verlinden), é introduzida e definida a partir da sua beleza que provoca inveja nas mulheres e lascivo desejo nos homens, enquanto Martine (Catherine Deneuve) passa de uma dona de casa rica e descontente a uma mulher que encontra romance com um gorila, levando o simbolismo sexual dos filmes de King Kong à sua descarada apoteose. Será até possível encontrar o mal disfarçado racismo desses arquétipos cinematográficos nesta narrativa, ou encontrar na figura da mulher de Deus, uma personagem que, ao invés de ser uma refrescante e feminista divindade, é mais uma exacerbação de perniciosos e sexistas clichés? Talvez seja uma leitura rebuscada de Deus Existe e Vive em Bruxelas, mas o facto é que tais imagens despoletam debate, especialmente num filme que tanto pede para a audiência se maravilhar perante as suas ideias sem, no entanto, ter em conta que essa mesma audiência é capaz de pensar por si mesma e questionar as ideias que lhe são oferecidas neste circo de absurdidades.

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É claro que, convém referir, é precisamente nos seus momentos de maior irracionalidade e indisciplina cinematográfica que o filme descobre as suas maiores glórias, quer seja em questão de experimentação formal ou no panorama da simples parvoíce de alguns momentos do texto. Esse absurdo é concretizado com uma impressionante polidez, mais típico de uma respeitável obra de cinema de prestígio do que de uma irreverente comédia negra com pretensões de provocação. Apenas os efeitos visuais deixam algo a desejar com pássaros simbólicos e um peixe espectral a serem de especial e desconcertante incompetência técnica.

Deus Existe e Vive em Bruxelas

Tão claramente artificial como esses momentos de desleixada magia digital são as presenças humanas do filme, encarnados por um formidável elenco que certamente inspira confiança e promete genialidade mesmo que não cumpra tal promessa. Enquanto a família divina é perfeitamente encarnada por intérpretes que abraçam os arquétipos provocatórios que estão a representar, mesmo as suas faces mais repelentes, as pessoas sob o seu comando e guarida são curiosamente desumanos e unidimensionais. Parte desse registo é uma clara consequência do mundo estilizado e absurdo em que toda a narrativa se desenrola, mas, apesar dessa clara justificação, é difícil não observar o elenco de apáticas e desumanas personagens sem questionar se, na sua procura por estilização, o realizador e o elenco não terão concebido algo inapropriadamente alienante. Quando a humanidade, a causa de Ea e sua missão, é tão claramente uma construção artificial, será que o filme não se torna um pouco inconsequente? É claro que é facilmente argumentável que esta espécie humana é assim pois foi criada à imagem do Deus que protagoniza o filme em toda a sua cruel magnificência, pelo que uma humanidade “humana” seria algo improvável.

No final, Deus Existe e Vive em Bruxelas é uma obra tão empolgante e fascinante como é frustrante. O filme muitas vezes sugere grandeza na sua introdução de uma infinidade de interessantes e subversivas ideias sobre Deus e teologia cristã, mas na sua definitiva forma, a mais recente obra de Jaco Van Dormael peca pelos limites das suas ideias provocatórias, apenas existindo como um projeto ambicioso que, apesar de agradável, nunca chega aos píncaros a que parece almejar.

CA

 

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