Luís Corte Real, autor de "O Deus das Moscas Tem Fome"| ©Saída de Emergência

O Deus das Moscas Tem Fome | Entrevista a Luís Corte Real

A MHD entrevistou o autor de “O Deus das Moscas Tem Fome”, uma primeira obra que, além de apresentar o fabuloso personagem Benjamim Tormenta, ainda brinda o leitor com uma descrição fiel da Lisboa de Eça de Queirós. No horizonte estão mais livros, uma adaptação para BD… e “porque não, encontrá-lo no catálogo da Netflix?” pergunta Luís Corte Real.

A “Coleção Bang!” conhecida por lançar em Portugal autores de literatura fantástica da atualidade e muitos clássicos e a revista “Bang!” uma publicação semestral e gratuita dedicada à fantasia, ficção científica e horror são referências de relevo para os apreciadores destes géneros literários.

Luís Corte Real é o criador de ambas, tendo também fundado a editora Saída de Emergência, no âmbito da qual editou autores como Nora Roberts e Mark Manson (“mas vocês não querem saber disso!”).

BOOKTRAILER | “O DEUS DAS MOSCAS TEM FOME” JÁ ESTÁ NAS LIVRARIAS

Conta que as estantes da sua casa estão ocupadas por todo o tipo de livros, desde banda desenhada a manuais de “Dungeons & Dragons” e “Call of Cthulhu”. Pode-se também encontrar muitos jogos de tabuleiro, action figures e mais caixas de Lego do que aquelas que consegue montar.

Com influências que vão de H. P. Lovecraft e Arthur Conan Doyle a Mike Mignola, “O Deus das Moscas Tem Fome” é a sua primeira obra, que define como “uma espécie de X-Files na Lisboa de Eça de Queiroz”. Curioso? Procura o livro nas livrarias e conta-nos o que achaste.

Fundou a Saída de Emergência em 2003. Apesar de estar rodeado de livros no seu quotidiano, esta é a sua primeira obra completa. O que o levou a escrever?

Já em criança, o meu sonho nunca foi ser futebolista ou astronauta. Lembro-me que queria ser ilustrador de banda desenhada e, já na adolescência, sonhava escrever os romances que gostava de ler. Eu lia de tudo, mas era a literatura do género fantástico que me fascinava. Para além de uns contos isolados, os anos foram passando e nunca senti que estivesse preparado para escrever um romance. Mas, escrevia muito no meu dia-a-dia, no início como criativo em agências de publicidade e, mais tarde, como editor na Saída de Emergência. Há dois anos senti, finalmente, que estava preparado para escrever uma primeira obra e assim nasceu Benjamim Tormenta, o detetive do oculto.

Estou curiosa por saber como é que a história evoluiu. Como foi o seu processo de escrita, desde a ideia inicial até à conclusão deste livro?

Escrever as primeiras 30 páginas é fácil. Difícil é escrever as 300 páginas que se seguem. Diria que o primeiro passo no meu processo de escrita foi descobrir uma estratégia para não me deixar vencer pela enormidade da tarefa
que me aguardava. Optei por escrever duzentas palavras por dia sem pensar no que viria a seguir. Tinha a história bem esboçada na cabeça e, pouco a pouco, vi-a crescer no papel até que, um dia, ficou pronta. Restava uma certeza: tinha muito mais histórias para contar.

O Deus das Moscas Tem Fome
O Deus das Moscas Tem Fome ©Saída de Emergência

Uma mistura de horror, mistério e romance histórico. Seria possível fazer um breve resumo do enredo?

O livro passa-se na Lisboa do século XIX, na Lisboa que conhecemos da obra de Eça de Queirós. Mas se as personagens de Eça passeavam fundamentalmente pelo Chiado elegante, pelo Passeio Público ou iam à ópera no São Carlos, Benjamim Tormenta visita os becos sujos que a polícia evita, assalta os palácios que escondem cultistas fanáticos, e encontra repouso nas infames casas de ópio. A obra procura convidar o leitor a visitar uma Lisboa onde a luz maravilhosa sobre o Tejo (e que hoje encanta os turistas) gerava sombras que escondiam todo o tipo de horrores.

Pode explicar o título “O Deus das Moscas Tem Fome”?

O Deus das Moscas é uma das monstruosidades que Benjamim Tormenta tem de enfrentar, primeiro em Lisboa e depois em Sintra. É uma divindade filisteia e cananeia, muito antiga, com várias referências na Bíblia.

Faz uma intensa recriação da Lisboa de Eça de Queirós. Como foi o processo de investigação (obras, filmes, etc)?

Tenho mais de cem páginas com notas retiradas da obra de Eça de Queirós. Ele foi o meu guia para a Lisboa oitocentista: o que vestiam as pessoas, como se deslocavam, como decoravam as suas salas, como falavam com pessoas de posição distinta ou onde iam passear aos domingos. Completei a pesquisa com autores mais ou menos contemporâneos: Zola, Flaubert, Victor Hugo, Dickens.
E a pesquisa nunca está terminada, todos os dias tomo novas notas, sobre os cheiros na cidade, sobre a opinião dos estrangeiros que nos visitavam, sobre os surtos de cólera, as crises políticas. Pesquisar revelou-se quase tão fascinante quanto escrever. Algumas séries de TV muitíssimo bem produzidas (como Taboo, The Frankenstein Chronicles ou Penny Dreadful) ajudaram-me a compor visualmente a malha urbana.

O Deus das Moscas Tem Fome
Ilustração de “O Deus das Moscas Tem Fome” ©Saída de Emergência

 

Resulta numa “carta de amor à cidade de Lisboa”. Pode dar exemplos disto?

Recriar Lisboa como ela era há cento e cinquenta anos tornou-se, para mim, um ato de amor. Descobrir como vivia o povo lisboeta, a sua pobreza digna, o analfabetismo que ultrapassava os oitenta por cento, o dia-a-dia das varinas no
Aterro, os percursos dos camponeses que vinham à cidade vender legumes, os mercados onde as criadas faziam as compras, as ruas onde as mulheres da “má vida” trabalhavam, e quanto cobravam pelo seu serviço – tudo isso acabou por ser, para mim, uma viagem no tempo para homenagear esses nossos antepassados. Mas também foi necessário pesquisar monumentos que já não existem, ruas que mudaram de nome, lojas emblemáticas que desapareceram.
Eu já amava Lisboa antes mas amo-a muito mais agora que lhe ando a mexer nos ossos e nos fantasmas. E espero que os leitores sintam o mesmo.

Benjamim Tormenta “é o primeiro investigador do paranormal da literatura nacional”. Em quem se inspirou para criar o personagem?

O ADN de Benjamim Tormenta é uma mistura de toda a cultura popular que me apaixonou nas últimas quatro décadas. Tem fortes vestígios dos contos de Conan Doyle e H. P. Lovecraft, das banda desenhadas de Mike Mignola e Alan Moore, dos romances de Dashiel Hammet e Eça de Queirós . Quando Eça terminou “Os Maias” disse que tinha colocado tudo o que tinha no saco. À minha escala, fiz o mesmo com “O Deus das Moscas Tem Fome”.

Qual foi o maior desafio que enfrentou ao escrever este livro?

Como procuro recriar de forma exaustiva e fiel uma época que não me é familiar, a pesquisa foi um tremendo desafio. Mas, como disse, esse trabalho tornou-se um prazer inesperado e, cada vez que descubro uma curiosidade da época (…) anoto-a fervorosamente, e depois vou contar à minha mulher, que me sorri com paciência.

O Deus das Moscas Tem Fome
“A Irmandade”, ilustração de “O Deus das Moscas Tem Fome” ©Saída de Emergência

Cada conto lê-se como o episódio completo de uma série televisiva. Gostaria que o passo seguinte fosse a adaptação para televisão/cinema?

Mais do que uma antologia de contos, “O Deus das Moscas Tem Fome” é um romance em partes, ou mosaicos. A história mais interessante é a que se estende ao longo de todos os contos: a relação de Benjamim Tormenta com o demónio que o habita e consome. Sou um escritor muito visual e, ao escrever, era como se já realizasse a série de TV na minha cabeça. Apesar de todas as dificuldades, que até são menos agora pois vivemos uma ´Era Dourada´ da TV onde já não é só o inglês que impera, gostava muito que essa adaptação se desse. E estou a fazer os meus contactos! O que está mais avançada é a adaptação para banda desenhada – espero ter novidades em breve.

“O Deus das Moscas Tem Fome” foi lançado a 22 de abril. Qual é a reação que espera dos leitores?

Depois de ter editado mais de mil livros na Saída de Emergência, sei bem o quão aleatório e incompreensível é o sucesso ou fracasso de um livro. Alguns dos melhores livros que editei foram fracassos embaraçantes. Alguns dos piores livros que editei passaram semanas nos tops. Sendo assim, estou preparado para tudo: a indiferença total ou um sucesso moderado, o que significaria sair do nicho do horror fantástico e chegar ao mainstream literário.

Já tem ideias para o sucessor deste livro?

Mais do que ideias, já tenho duzentas páginas escritas. O que não me faltam são histórias do Benjamim Tormenta para contar pois Lisboa ainda tem muitos segredos para revelar. Neste momento estou a pesquisar a cidade do Porto em 1874 pois é lá que se desenrola a ação do próximo conto – e, tal como aconteceu com Lisboa, estou a apaixonar-me por essa Invicta oitocentista. Já tenho dezenas de páginas com notas e ando a ler Almeida Garrett, Júlio Dinis e Alberto Pimentel. Neste segundo volume o detetive do oculto vai ao Egipto e, no terceiro, deverá ir ao Rio de Janeiro e Constantinopla. Mas, seria bem mais interessante se estas viagens de paquete fossem feitas na companhia de muitos leitores!

Daqui a 10 anos, como espera poder olhar para “O Deus das Moscas Tem Fome”?

Sou um otimista: gostava de olhar para ele como o primeiro volume de uma série de sucesso com vários volumes. Agora, se me for permitido sonhar, gostava de o ver traduzido em outras línguas, de ver a adaptação nos escaparates da banda desenhada… e, por que não, encontrá-lo no catálogo da Netflix?

Estamos muito curiosos para ver quais são as próximas aventuras de Benjamim Tormenta… qualquer que seja o formato em que se apresente!


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