"Time" | © Amazon Prime Video

Time, em análise | Melhor Documentário

Depois de ter conquistado uma pequena montanha de prémios da crítica, “Time” foi nomeado para o Óscar de Melhor Documentário. Esta obra da realizadora Garrett Bradley está disponível para streaming no Amazon Prime Video.

Em Setembro de 1997, depois de um investidor na sua loja ter desaparecido subitamente, Rob e Sibil Fox Richardson encontraram-se numa posição desesperada. Cegos pelo medo da penúria, inebriados pela ambrósia do dinheiro fácil, o casal engendrou um plano para assaltar a pequena sucursal de um banco local. O tiro saiu pela culatra. Nenhum dinheiro acabou por ser roubado e os assaltantes foram prontamente encarcerados. Sendo que essa era a primeira ação criminosa deles, presumiríamos que houvesse alguma brandura pela parte dos juízes. Estaríamos errados nessa presunção.

Sibil foi condenada a 19 anos de prisão e Rob a 65, uma sentença que efetivamente estilhaçou a sua família, dos quais também contavam três filhos, ainda pequenos na altura. Ao fim de três anos e bom comportamento, Sibil foi liberta, mas o marido não teve a mesma sorte. Pela altura que a realizador Garrett Bradley entrou em contacto com esta família, Rob já havia cumprido quase duas décadas de cárcere e não via nenhuma possibilidade de fiança no horizonte. Sibil, por sua vez, afigurava-se como uma ativista pela reforma do sistema prisional, defendendo o desmantelamento da sua industrialização americana.

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© Amazon Prime Video

Considerando tudo isto, é justo dizer que “Time” se insere numa conjetura de cinema político com intenções ativistas. Contudo, chamar-lhe propaganda ou jornalismo seria um equívoco. De facto, chamar-lhe ativista, quiçá panfletário, também parece erróneo. Num gesto que enfurece e frustra muita gente, Bradley não aborda a história desta família fraturada como um caso a documentar em detalhe litigioso. A culpa de Rob nunca é questionada, sendo que o que os cineastas pretendem explorar vai além da mera culpabilidade. Mais do que tudo, esta é uma tentativa de cristalizar a experiência de outrem, capturar o amor e o sofrimento de um clã traumatizado através do mecanismo cinematográfico.

Nuns parcos 81 minutos de duração, Bradley usa uma torrente de filmagens de arquivo e vídeos caseiros para compor uma espécie de poema visual. Ela tenta sumarizar o que são 20 anos de separação numa família que o sistema prisional tentou destruir. Acima de quaisquer considerações sobre justiça, a cineasta exige que nós pensemos nestas pessoas como seres humanos e não como números. Já houve quem criticasse a imparcialidade da fita, sua falta de contexto, escassez de informação fria. Tais absências não são um erro, mas uma escolha deliberada do artista. “Time” põe sempre a humanidade do criminoso acima da vontade de o castigar.

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Muitos filmes demandam a reforma prisional através de histórias de inocentes injustamente condenados, mas também é importante fazer com que o espetador confronte os direitos do culpado. Nem que seja, através de considerações sobre as pessoas afetadas pelo aprisionamento. Quem julgue que só o indivíduo atrás das grades sofre, está longe de compreender o tipo de dor ilustrada por “Time”. Temos as lutas financeiras de uma mãe que tenta sustentar os filhos sozinha numa nação, numa sociedade, predisposta a lhe negar oportunidades devido ao sexo, à cor da pele, ao cadastro. Temos os filhos que crescem sem pai. Os pais que envelhecem sem filho. A comunidade que empobrece em seu redor.

Vislumbramos todas estas vertentes da perda, da saudade, através dessa tapeçaria de imagens que Bradley montou ao som do piano. A música provém do repertório de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, uma freira etíope com quem a realizadora travou conhecimento através do Youtube. São melodias simples, mas retorcidas, tilintares sinfónicos que sugerem as gotas que caem no chão durante uma tarde chuvosa de Outono. É um som que embala e hipnotiza, levando o espetador para um paradigma de melancólica lembrança. Não é a lembrança de quem vê, mas sim a lembrança de quem se eviscera no ecrã e assim nos conta sua história.

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© Amazon Prime Video

As imagens foram feitas em preto-e-branco pela magia do digital, suas texturas contrastantes fazendo da própria matéria visual uma espécie de concerto improvisado. Um gesto capturado em VHS barato dos anos 90 pode suscitar um olhar gravado em vídeos do século XXI, o passado e o presente dançando uma valsa penosa que já dura há duas décadas. Mais do que conhecer esta família que conta a sua história, conhecemos a sua emoção, o que eles sentem e pensam, mas talvez não verbalizam. Aquilo que talvez nem eles, nem nós, consigamos articular. Isto é cinema introspetivo, expressão da interioridade que tanto foge à mão do artista que a tenta apanhar.

Apesar da dificuldade do desafio, Bradley consegue esse feito, agarrando a subjetividade humana de seus sujeitos e moldando-a na forma de uma assombrosa fita. “Time” é um diário e é uma confissão, um apelo à nossa simpatia e uma lição de cidadania também. Não há final perfeito ou conclusivo para esta história, senão o rebobinar da memória exposta. Esse gesto derradeiro resulta numa das melhores passagens que o cinema documental da última década nos ofereceu. Duas décadas, anos perdidos, passam por nós como um rio turbulento, sua corrente temporal arrebata e magoa, sua implacável força algo que espanta no mesmo minuto que nos devasta. “Time” é um poema, um lamento, um hino ao que se perdeu e nunca será recuperado.

Time, em análise
time critica

Movie title: Time

Date published: 25 de April de 2021

Director(s): Garrett Bradley

Genre: Documentário, Biografia, 2020, 81 min

  • Cláudio Alves - 95
95

CONCLUSÃO:

Lírico e impressionista, “Time” é um documentário pouco ortodoxo que tenta humanizar a necessidade da reforma prisional nos EUA. É um argumento poderoso, articulado através de um caso observado de forma tão próxima que o filme transcende o jornalismo e se torna em algo mais efémero, quase espiritual.

O MELHOR: Os derradeiros instantes da fita. É cinema de cortar a respiração, aquele tipo de obra majestosa que nos arrebata a alma e nos conquista a paixão.

O PIOR: A falta de objetividade é uma mais-valia, mas sentimos que tem de ser apontada considerando quantos já foram aqueles que denegriram o filme por essa mesma razão.

CA

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