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DocLisboa ’18 | Fahrenheit 11/9, em análise

Fahrenheit 11/9” é o novo documentário do provocador profissional Michael Moore e uma cáustica análise do que levou à eleição de Donald Trump, suas consequências e o modo como ela reflete o ciclo vicioso da História e sua constante repetição dos mesmos padrões.

Existem filmes que despertam no espectador uma necessidade quase primordial de gritar. Queremos sair a correr da sala de cinema e gritar contra o mundo, contra a humanidade, contra tudo. Queremos gritar até a nossa garganta rasgada não conseguir mais. Se calhar também queremos chorar em posição fetal e esquecer, por momentos, o mundo em que vivemos. Assim é, pois, a realidade deste mundo é muitas vezes pior que qualquer distopia cuidadosamente fabricada para ultrajar espectadores de um blockbuster de Hollywood. Mesmo para quem já sabe toda informação, a reunião de todo o mal numa nauseante bomba tem um efeito parecido com um murro no estômago.

Michael Moore fez nome à custa deste tipo de filme da indignação e, atualmente, é provavelmente o único realizador celebridade a sair do panorama do cinema documental. De facto, o modo como Moore faz a curadoria da sua persona pública por meio dos filmes que realiza é um dos pontos mais fracos na sua oeuvre. Entre a constante narração, o estilo de entrevista que oscila entre jornalismo feroz e absurdez cómica, manipulação muito tendenciosa da informação e a presença do cineasta em frente às câmaras, há muito a criticar no cinema de Michael Moore. Por vezes, tal é o culto ao ídolo, que ficamos com a impressão de que estas obras não são documentações de problemas sociopolíticos, mas poemas sobre a luta heroica de um cineasta contra as injustiças do mundo.

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Enquanto celebridade, Moore admite a sua própria culpa na normalização de Trump e seus apoiantes.

Para pessoas que já começam a perder paciência para com este lado meio egocêntrico do cinema de Michael Moore, “Fahrenheit 11/9” tem um título que provavelmente irá levantar más expetativas. Afinal, este é um jogo com o título de “Fahrenheit 9/11”, o filme que valeu a Moore a Palme d’Or e lhe deu a honra de ser o realizador do documentário mais lucrativo de sempre. Tal escolha sugere um piscar de olho a uma audiência conhecedora da sua lenda e feitos valentes. Além do mais, é também uma perigosa afirmação oblíqua que diz que a eleição de Donald Trump a 9 de novembro de 2016 é algo tão catastrófico, grave e monumental como os ataques terroristas do 11 de Setembro.

Em relação ao primeiro destes pontos, “Fahrenheit 11/9” representa uma inesperada variação na filmografia de Moore. É certo que a voz do realizador ainda é o guia que nos conduz pela tapeçaria de injustiças da América atual, mas, durante grande parte do filme, Moore cede a sua obra a pessoas cuja voz tem sido muito pouco ouvida em entrevistas que não destacam a presença do realizador. Isto é particularmente evidente nas várias secções em que o documentário se foca na crise de Flint no Michigan. Talvez motivado pelas suas ligações pessoais à cidade, Moore muita atenção dá a esse cancro de malignidade política que resultou em milhares de crianças envenenadas com chumbo e uma cidade inteira sem água potável há anos e no limiar da pobreza insuportável.

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Respondendo ao segundo ponto, convém lembrar que este é um filme de Michael Moore, mestre provocador, e que um certo nível de força bruta na transmissão de informação e crítica política é o esperado. Afinal, a certa altura, Moore vai muito mais longe que a comparação de eleição para com ataque terrorista e mostra-nos um discurso de Hitler dobrado com a voz de Trump durante um comício de campanha.  Tal abordagem pode não ser muito rica em nuance, mas tem valor, especialmente nos dias de hoje em que a apatia liberal nascida se faz sentir cada vez mais. Moore sabe bem isso e direciona muita da sua crítica a essa fação apática do público, assim como aos muitos fatores que levaram a essa mesma apatia.

Com isso dito, é verdade que podemos dizer que Moore não tem muita nuance ou subtileza, mas, no panorama do cinema político americano, ele é um dos poucos cineastas liberais que não olha para Trump como um simples vilão demónico saído diretamente de um pesadelo coletivo. Pelo contrário, Moore vê e apresenta o Presidente dos EUA como o sintoma mais visível de uma doença complicada. Em “Anjos na América”, Tony Kushner deu à personagem de Belize um monólogo cheio de veneno em que ele diz odiar a América, um país que não é nada mais que ideias grandes, histórias e pessoas a morrer. A América é terminal, louca e cruel. Moore não vai tão longe como Kushner, mas chega lá perto.

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Precisamos de agir, mas também precisamos de esperança.

Segundo “Fahrenheit 11/9”, Michael Moore ama a América. Contudo, a América que ele ama nunca existiu. O sonho americano é um sonho pois não é real, somente uma aspiração. Para o tornar uma realidade, há que lutar, há que agir agora que o mundo parece estar finalmente a confrontar o pesadelo com os olhos abertos e não perdido nas ilusões de uma promessa que nunca vai ser cumprida. No seu ataque multifacetado, que poucas pessoas ou instituições poupa, Moore chega mesmo a desmitificar a benignidade quase santa com que Barack Obama é pintado por pessoas desesperadas por acreditar que, antes de Trump, o sonho americano era real, a intolerância era uma raridade e o cosmos político era um universo justo.

Face a uma sociedade que apresenta sinais de podridão em todo o lado, é fácil cair no desespero total. De facto, no seu apelo à ação, Moore sacrifica e denigre a ideia de esperança. Para ele, esse é um conforto desnecessário que nos atordoa e faz cair na passividade que deixa o mal reinar livre. Contudo, sem esperança há a depressão e com a depressão há a inatividade. Temos de acreditar na possibilidade de algo melhor, para lutarmos. Mesmo que a nível inconsciente e em incongruência com a sua narração, “Fahrenheit 11/9” deixa trespassar alguns raios de esperança por entre a sua tempestade de horrores.

Eles são os ativistas adolescentes que apareceram em resposta ao tiroteio de Parkland, professores em greve, uma mulher que põe em risco o emprego pois não fica calada face aos esquemas criminosos de um governador corrupto. Esperança vem sob a forma de estatísticas que nos mostram que talvez a maioria da população americana não é composta por seguidores do Evangelho de ódio de Donald Trump. Esta é uma provocação com compaixão, um grito urgente que, no entanto, tem otimismo. Temos é de nos lembrar de agir e não a ficar parados sem nada dizer, sem votar, sem defender o que está certo, pois aí não há democracia e não há justiça. “Fahrenheit 11/9” pode ser um filme especificamente sobre os EUA, mas estas conclusões, estas ideias e ideais são tão válidos para o resto do mundo que, infelizmente, não está inoculado para com a doença virulenta que levou Trump à presidência.

Fahrenheit 11/9, em análise
DocLisboa Fahrenheit 11 9 critica

Movie title: Fahrenheit 11/9

Date published: 20 de October de 2018

Director(s): Michael Moore

Genre: Documentário, 2018, 128 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

Michael Moore é o maestro de uma orquestra de indignação e nós somos seus músicos. Com “Fahrenheit 11/9”, ele exige de nós uma sinfonia de caótica histeria, urgente fúria e motivação ativista. Os seus mecanismos não são muito ricos em nuance, mas trata-se de um grito de fúria cheio de energia e força retórica. O filme será particularmente bom para quem não anda bem informado sobre a situação política americana devido a falta de interesse ou a dependência em jornais e canais televisivos nacionais que preferem mil artigos sobre futebol a uma única palavra sobre a crise de Flint.

O MELHOR: A sequência hitleriana pela sua desavergonhada fúria. As entrevistas sobre Flint pela sua candura e poder sensibilizante. O foco dado a mulheres, jovens , pessoas de cor e testemunhas do Holocausto decididas a não deixar o futuro cair nas mãos daqueles que só se interessam com a própria carteira.

O PIOR: Moore não pode falar sobre tudo e mostrar todas as perspetivas relevantes, ou então o filme teria 72 horas sem parar. Contudo, algumas das suas escolhas de imagem e entrevista denotam uma tentativa de manipular a informação e não dar tempo de antena a críticas bastante justificadas contra os argumentos defendidos pelo filme como verdades absolutas. Enfim, isto é praticamente um dos elementos obrigatórios do cinema de Michael Moore.

CA

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