Eddington – Análise
Depois dos horrores de “Hereditário” e “Midsommar”, do grotesco cómico de “Beau Tem Medo” e muita polémica pelo meio, Ari Aster regressa com uma provocação política passada no auge do confinamento. Através de “Eddington”, o realizador americano competiu em Cannes e levou o público de volta às loucuras de 2020. Joaquin Phoenix protagoniza, acompanhado de Pedro Pascal, Emma Stone e Austin Butler em papéis secundários.
O COVID-19 ainda aí anda, mas o mundo está decidido a esquecer a pandemia. Vivemos no rescaldo desses anos traumáticos do início da década e, enquanto reflexo destas atitudes, a arte segue a vontade do público. No cinema, o filme de confinamento foi um furor forçado pelas circunstâncias, ecoando além do lockdown em circuitos independentes e rapidamente ultrapassado num panorama comercial. Hollywood, em particular, virou as costas à reflexão sobre o passado próximo e bebeu a água do Lete como quem morre à sede. Fez isso em relação às realidades materiais da época e seus cismas políticos também.
A indústria, de forma geral, tapou os ouvidos perante gritos de revolução e fechou a vista ao absurdo e à hipocrisia, mas haverá sempre exceções que provam a regra. E, por isso mesmo, o novo projeto de Ari Aster afirma-se caricato e audaz, nos antípodas do arriscado devida a uma proposta satírica que faz de todos alvo. É daqueles trabalhos destinados à controvérsia, irritando a totalidade do espectro político sem, por isso, cair na falácia do cinema dito apolítico. Afinal, um texto que tão claramente se enoja face ao egoísmo antissocial e oportunismo ideológico da América moderna jamais poderia ser apolítico.
Cowboys apalhaçados, caos e coronovírus.
Mas perdoem o uso de “América,” pois o que quero bem dizer é Estados Unidos da América. Nem as Latinidades do Novo Mundo nem o Canadá vêm para aqui chamados, mesmo que algumas observações se possam aplicar a eles também. Especialmente quando Aster situou a fita numa paisagem indissociável daqueles clássicos de cowboys, o género mais sinónimo de EUA – o western. Sim, “Eddington” é um western para a terceira década do século XXI em todos os sentidos possíveis da frase. Trata-se de um gesto ainda mais extremado que os revisionismos que definiram tanto desse cinema desde que Ford cantou as mágoas de “My Darling Clementine.”
De facto, Aster até faz citação ao velho mestre, chegando a enquadrar Joaquin Phoenix como John Wayne no final de “A Desaparecida.” Não que o xerife de Eddington, Novo México, tenha a mesma presença quase mítica da outra personagem, a iconografia imponente, ou a tragédia de traços clássicos. Só a perversidade da alma se pode equiparar entre os dois, apesar de a perfídia de cada um ser um reflexo muito particular da sua América. O sonho colonial e a doutrina do destino manifesto do século XIX aos olhos de 1956 num caso. No outro, o vício da conspiração e a falta de valores em 2020 como imaginado por 2025.
A história tem traços de simplicidade na sua génese, mas termina em exageros barrocos. Inicialmente, tudo decorre consoante as convenções do género, com a chegada de um forasteiro à localidade de Eddington. Lodge é um sem-abrigo que carrega em seu organismo aquele vírus que, em 2020, pôs o mundo de sobressalto. Só que autoridades e burgueses não querem saber do vagabundo ou sua ameaça a não ser quando este lhes suja a vista ou contamina a paz com a tosse expetorante. Há alguns, como o xerife Joe Cross, que até vivem na fantasia de que esta cidadezinha no meio do deserto não será tocada pela pandemia.
Para ele, andar com máscara é uma histeria desdenhosa, especialmente quando a ordem vem do presidente da câmara, Ted Garcia. Em ano de reeleição, o político vê-se alvo da raiva sentida de Cross, cuja sogra lhe anda a encher a cabeça de teorias da conspiração e presunções perigosas sobre o que terá acontecido entre Ted e a esposa do xerife em tempos de namoro juvenil. Por seu lado, Louise tem pouca cabeça para desmentir os enganos do marido, debatendo-se com a depressão e memórias de um pai abusivo. Noutras partes de Eddington, um triângulo amoroso emerge entre o filho adolescente de Garcia, um amigo e a jovem ativista que os cativa.
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E há que lembrar os dois polícias às ordens de Cross. Um deles é racista daqueles que não se acha racista e o outro é único indivíduo preto em toda a região. Apesar de serem figuras secundárias, são essenciais para o deflagrar da loucura a que o enredo a todos conduz. Porque, ao mesmo tempo que o COVID chega a Eddington, os protestos do Black Lives Matter inspiram a população jovem a revoltar-se e o xerife decide candidatar-se à câmara numa batalha de virilidades velhacas contra o mayor Garcia. Basta uma faísca e o barril de pólvora metafórica rebenta, revelando a podridão latente em todos estes cretinos hipócritas, cheios de ódio e raiva.
Em certa medida, a lógica interna da narrativa perde-se quando o pandemónio vem ao de cima, transformando o western num thriller de paranoia sob o efeito de estupefacientes e estupidez natural. Deste modo, a psicose coletiva passa da verdade à mentira, o impossível vira possível e o relativo realismo com que Aster encenava “Eddington” torna-se em algo de difícil categorização. Por exemplo, as histórias sobre militância antifascista que as fações conservadoras disseminam entre si acabam por se materializar. Fazem-no do modo mais estapafúrdico possível, combinando o primor formal do realizador com uma expressão de irracionalidade a dois passos do Dadá.
Não devia funcionar, mas funciona – milagre!
O que poderia ser encarado como uma submissão de Aster perante o discurso reacionário, assume-se um gesto trocista que ri às custas de quem crê em tamanha parvoíce. Não é abordagem perfeita nem inoculada contra uma análise negativa, mas vinga acima do que um didatismo mais coerente conseguiria. Sem dó nem piedade, o cineasta demonstra ainda escárnio para com as suas personagens e o que elas representam. O humanismo inverte-se nas mãos do autor, como que em resposta a um mundo que já não merece tais benesses. Desde o princípio ao fim, “Eddington” é assim um filme predisposto a esventrar cada figura e lhes roubar a dignidade, até naquelas instâncias em que os atores se esforçam para dignificar quem interpretam.
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Não que essa dedicação venha em detrimento dos engenhos de Aster. O desdém necessita da sinceridade como contrapartida, ou “Eddington” tornar-se-ia em mais uma daquelas comédias satíricas que confundem boas intenções e moralismos certeiros com mérito artístico – filmes intragáveis, diga-se de passagem. Proponho o caso de Louise, que Emma Stone concebe como uma trágica tapeçaria de solipsismos. A dor proveniente da sua vitimização à mão de um pedófilo é encarada com seriedade e simpatia. Isso não impede que Aster a use para ilustrar como o ultraje justificado para com as injustiças do mundo pode cair no complô cultista.
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Stone nem será dos atores mais impressionantes deste elenco. Austin Butler tem muito menos tempo de antena e consegue enterrar-se no inconsciente do espetador, sugerindo o horror da compaixão interesseira. Phoenix é ainda mais notável, encontrando em Cross todas as vicissitudes do momento, desde a vacuidade do ativismo performativo até aos píncaros mais patéticos da masculinidade tóxica. Graças a ele, “Eddington” consegue justificar a derradeira indignidade. Refiro-me a um prólogo tão cruel que provoca calafrios de vergonha alheia, o final perfeito para um filme onde Ari Aster faz a crónica os EUA como um terror cósmico bem mais assustador que qualquer conto de H.P. Lovecraft. E tudo sob a alçada do western para pôr sal nessa ferida que sangra vermelho, branco e azul.
Eddington
Conclusão:
- Ari Aster lança a aposta mais provocadora da carreira com “Eddington,” um retrato da América confinada em tempos de COVID-19. O tom está entre a paranoia e o burlesco, com traços de absurdismo, humor trocista e muito mau feitio. Mas a forma e os preceitos de género apontam para o western com todos os classicismos que vêm agregados. Em certos momentos da obra, este enfant terrible da Hollywood moderna até parece piscar o olho a Ford. E fá-lo com Katy Perry na banda-sonora para tornar a situação ainda mais insólita.
- Uma coboiada de pandemia onde o inimigo maior é também a maior piada de todas, este conto foge ao moralismo sem, no entanto, evitar o julgamento das suas personagens, o que elas representam, o que elas espelham. O desdém salta à vista, sem invalidar a sombra de sinceridade que se precipita sobre todo o edifício fílmico. Até no extremo do instinto paródico, existe algo genuíno em “Eddington.” Isso está patente com especial vigor no trabalho de ator.
- Joaquin Phoenix e Austin Butler estão em destaque, mas há muito louvor a ser partilhado pelo elenco. Mas mesmo atrás das câmaras, os artistas são meritosos, trazendo o cinema de Ari Aster para fora do terror mais óbvio e para dentro de uma alquimia cinematográfica mais difícil de categorizar e, talvez por isso, ainda mais aterrorizadora.