"Elvis" | © Cinemundo

Elvis, em análise

Nove anos depois do seu último filme – “O Grande Gatsby” de 2013 – Baz Luhrmann regressa ao grande ecrã com “Elvis,” fita biográfica sobre o Rei do Rock que conta com Austin Butler no papel principal. Depois da sua estreia no Festival de Cannes, esta biopic espampanante está pronta a extasiar audiências pelo mundo fora.

Fossilizado pelos anos da desgraça e uma cultura popular com gosto pela paródia, Elvis Presley é uma lenda cujo lustro há muito se perdeu. O legado está baço, precisa de ser polido pela recordação feita com afeto, é um fantasma de grandiosidades passadas que agora subsiste como uma piada mal contada. É difícil por isso compreender quanto este dinossauro tornado em caricatura de si mesmo alguma vez foi uma voz transgressiva no panorama cultural. Na mesma medida em que perpetua considerações unidimensionais sobre o rei do rock, “Elvis” de Baz Luhrmann também quebra com a ossificação histórica e mostra-nos quão provocador Presley foi no seu auge, quão sexual e atrevido, quão glorioso era o seu espetáculo.

Trata-se de um trabalho de contrastes e exageros, sem bom senso nem bom gosto. Em suma, trata-se de um esforço típico do realizador australiano que, no panorama contemporâneo, insiste num cinema maximalista que corre, sem medo, na direção do absurdo e do grotesco. Aplaudimos a coragem e, verdade seja dita, aplaudimos o resultado da loucura. Menos não é mais neste paradigma audiovisual. Mais é mais, e Luhrmann quer sempre mais – mais lantejoulas, mais efeitos especiais, mais cortes e mais movimentos de câmara arrojados. Através de quase três horas de biografia em jeito barroco, somos espancados pela espetacularidade que brilha nesse grande ecrã, levados ao ponto de exaustão.

elvis critica
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Não é o cansaço do espetador aborrecido, vá-se entender, mas aquela moleza hipersensível que vem com o estímulo pós-orgasmo.Tal abordagem facilmente tomba no circo, reentregando Elvis Presley ao arquétipo apalhaçado que a História lhe atribuiu. Contudo, Luhrmann é demasiado virtuoso em técnica e sincero em intenção para cair nesse erro. A audiência mais cética poderá sair da sala de cinema a rir-se de um palhaço, mas esse será o realizador e não o sujeito do enredo. Esse protagonista jamais corre o risco de ser novamente ridicularizado pois todo o edifício fílmico trabalha no intuito de o lionizar. Ainda para mais, “Elvis” chega ao relato de uma vida através de um caminho inesperado.

Como que para justificar suas superficialidades do costume, Luhrmann decide contar este “Fausto” na perspetiva de Mefistófeles. Não iniciamos a jornada narrativa na companhia de Elvis Presley, por exemplo, entrando neste mundo com o discurso direto de um vigarista no leito da morte. Ele é o Coronel Tom Parker, infame empresário que controlou o cantor ao longo da carreira, explorando-o a belo prazer numa relação profissional com rasgos de abuso financeiro. Um Tom Hanks soterrado em latex dá vida ao Coronel que, na verdade, não era militar nem se chamava Tom Parker. Ele nem Americano era, sendo de origem holandesa, sem passaporte ou pátria assumida.

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Qual Ricardo III de segunda categoria, Parker lá nos fala daquele super-herói do foro musical que foi Elvis Presley, abordando a câmara e o espetador como cúmplices, quiçá padres a ouvir uma última confissão. Só que o Coronel, mesmo dentro do mecanismo teatral, não ousa assumir a culpa e também não têm vontade de nos complicar a imagem doirada do Rei do Rock. Nesse sentido, “Elvis” segue as linhas cine-biografia tradicional com a distorção desta moldura narrativa. Estamos a assistir a uma história cheia de clichés, mas essa mesma apresentação é oferecida como as palavras de um Diabo trapaceiro que nos quer vender a versão mais benigna do conto.

Mesmo em recordação hagiográfica, Elvis Presley é vítima de um sistema que o vê como uma comodidade económica acima de tudo, arte e rebeldia submissas frente à autoridade do capital. Luhrmann não é necessariamente subversivo no seu engenho, mas acrescenta uma nota dissonante na sinfonia de excessos. Assim vemos mais dos artistas Afro-Americanos que inspiraram Elvis que alguma vez foi mostrado nos seus muitos filmes biográficos. Jamais se explora esta dimensão social com complexidade devida, mas o apontamento está lá, assim como a noção que, além do talento, o cantor conseguiu sucesso enquanto veículo caucasiano para a venda mainstream da música dos marginalizados. Ele é tanto um herói do Rock como um rei da apropriação.

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Outras porções mais complicadas da História de Elvis são excisadas ou circum-navegadas com a astúcia de um promotor mercenário. Nada se dramatiza sobre a trajetória da estrela enquanto figura política – de apoiante das lutas por direitos civis a compincha conservador de Richard Nixon. Contudo, por que haveria “Elvis” de expor tais coisas? Afinal, esta não é a história autêntica do homem que fez milagres no palco, mas a argumentação melindrosa do Coronel. Também a carreira cinematográfica do Rei passa ao lado e seus anos militares também. A primeira metade da década de 60 praticamente voando pelo ecrã num abrir e fechar de olhos.

Tanto assim é que as únicas figuras que vão além do esboço são o Fausto de patilhas e seu manipulador europeu. Até a pobre Priscila Presley é pouco mais que uma figurante. Luhrmann aproveita este desequilíbrio no texto para formar a fita enquanto sistema planetária, orientado em torno de dois polos estrelares. Elvis é um sol, o Coronel é um buraco negro. Hanks certamente apaga a luz carismática para o papel, entrando num jogo de vilania forçada que é pouco convincente e muito perturbador também. Por seu lado, Austin Butler é uma revelação no papel titular, rendendo-se de corpo e alma à grandiosidade do Rei, sua mitificação própria e qualidades performativas.

A mimese vocal assombra, sendo só superada pela natureza febril que o ator traz às últimas passagens na vida da lenda moribunda. Ele é tão esmagador quanto o estilo do filme, um furacão de faustosa ostentação que vai irritar muitos e apaixonar tantos outros. “Elvis” assim se assume como um daqueles gigantes do grande ecrã que não deixam ninguém indiferente – ou se ama ou odeia. Por aqui, mesmo que consigamos articular as fragilidades, estamos no campo da paixão. Bendito seja Baz Luhrmann e sua desavergonhada espetacularidade e opulência alucinante. Aplausos para Butler e toda a equipa por detrás das câmaras que fez de “Elvis” um dos eventos mais imperdíveis deste ano cinematográfico.

Elvis, em análise

Movie title: Elvis

Date published: 22 de June de 2022

Director(s): Baz Luhrmann

Actor(s): Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Helen Thomson, Richard Roxburgh, Kelvin Harrison Jr., David Wenham, Kodu Smit-McPhee, Dacre Montgomery, Xavier Samuel, Yola, Alton Mason

Genre: Biografia, Drama, Música, 2022, 159 min

  • Cláudio Alves - 75
  • Manuel São Bento - 55
  • José Vieira Mendes - 50
  • Virgílio Jesus - 100
  • Marta Kong Nunes - 70
70

CONCLUSÃO:

“Elvis” sucede mais como montra para a imaginação de Baz Luhrmann do que como biografia ponderada da sua figura titular. Ancorado por uma prestação bombástica de Austin Butler, o filme é uma alucinação eletrizada que nunca pausa por tempo suficiente para que o espetador recupere o fôlego. Experienciar a vida do Rei do Rock é como correr uma maratona através de uma procissão carnavalesca no inferno néon de Las Vegas. Há música aos altos berros, hipnotizantes planos de corpos que se abanam e lantejoulas suficientes para forrar o planeta inteiro com brilhantes.

O MELHOR: Austin Butler no papel de Elvis, a banda-sonora cheia de clássicos reinventados, a caracterização com traços de Grand Guignol e os figurinos de Catherine Martin. Estes últimos certamente vão receber muita aclamação quando chegar a altura dos prémios de cinema.

O PIOR: Nesta medida de maximalismo, há uma abundância de ideias e truques. Muitos deles sucedem, mas muitos falham. Quem não tiver paciência para as maluquices de Baz Luhrmann certamente odiará o seu “Elvis.”

CA

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2 Comments

  1. António Fernandes Lourenço 4 de Julho de 2022
  2. 4 de Julho de 2022

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