Engenhos Mortíferos

Engenhos Mortíferos, em análise

“Engenhos Mortíferos” aferra-nos com a sua visão retrofuturista steampunk de um mundo pós-apocalíptico, que emperra numa engrenagem abarrotada de trivialidades fatais.

Engenhos Mortíferos
O junco voador de Anna Fang a medir forças com Londres…

Engenhos Mortíferos tem gerado imensa hype desde que foi anunciado publicamente em 2016, sobretudo quando se soube que Peter Jackson adquirira os direitos literários da obra homónima de Philip Reeve, com o intuito de mentorar o seu protegido Christian Rivers, num novo projeto cinematográfico sem hobbits à vista. E acalentávamos nós, que com o pedigree de Jackson em potenciar palavras escritas em obras primas audiovisuais, estes Engenhos Mortíferos pudessem aspirar aos mesmos pergaminhos oscarianos de um Senhor dos Anéis, mas a verdade pura e dura é que se deixam deslumbrar pela excentricidade e vanguardismo do seu universo. Não nos interpretem mal, o primeiro livro da saga novecentista de Reeve ganha uma vida esplendorosa na mão de Jackson e no olho de Rivers, mas é incapaz de gritar tanto por dentro como grita por fora.

Engenhos Mortíferos
Reunião Anti-Tracionista na cidade flutuante “Airhaven”.

Concetualmente, Engenhos Mortíferos é tão mordaz e ambicioso quanto o seu devaneio de compactar cidades inteiras numa unidade móvel, capazes de se alimentarem dos recursos energéticos umas das outras em função do seu poderio bélico. Imaginem só, um couraçado gigantesco estratificado societariamente desde o seu tapete de rodas mais pobre e poluente até ao seu cockpit mais faustoso e abastado; a engolir todas as províncias sob rodas que se cruzem no seu caminho para gáudio da sua população residente; e conseguem captar a vil ganância visual daquilo que o filme carateriza de “Darwinismo Municipal”. E é neste contexto de sobrevivência desmesurada e subjugação estadual que Londres, se perfila como a grande potência predadora do ocidente, depois da “Guerra dos 60 Minutos” ter baralhado a ordem mundial numa Era Tracionista. Agora, algures no ano 3000 e qualquer coisa, a capital inglesa, dona e senhora dos destinos do nosso planeta sob o comando despótico de Mayor Magnus Crome (Patrick Malahide), avança com tração à frente rumo à conquista e colonização dos restantes povos asiáticos Anti-Tracionistas, que sobreviveram para lhe fazer frente. Entre eles, apenas uma muralha rochosa e a máquina aniquiladora do maquiavélico Thaddeus Valentine (Hugo Weaving), delimitam a obliteração do refugo da humanidade e a promulgação global do absolutismo londrino.

(…) O primeiro livro da saga novecentista de Reeve ganha uma vida esplendorosa na mão de Jackson e no olho de Rivers, mas é incapaz de gritar tanto por dentro como grita por fora.

E é precisamente sobre estas noções megalómanas, que o enredo co-redigido por Jackson em tandem com Boyens e Walsh, que já haviam dado uma mãozinha a Jackson em “King Kong” e “O Hobbit”, se deixa levar pelo facilitismo daquele protocolo familiar de diálogos mundanos e lugares comuns, que ultimamente se diluem naquele eye candy para inglês ver. Não é que a materialização digital à escala real de um super panzer britânico, que carrega o peso da sua história arquitetónica em 50 milhões de toneladas, com 686 metros cúbicos de volume, a uma velocidade de 300 quilómetros por hora, não nos deixe boquiabertos e de olhos arregalados, mas não conseguimos afastar aquela sensação oca de um preenchimento poligonal despido de emoção genuína. O problema de Engenhos Mortíferos, é que se esforça em vender-nos o invólucro de um produto com peças demasiado complexas, que não são transpostas para um cenário plausível com a devida maturação expositiva e, como tal, a sua aceitação à priori é logo alienada pela focalização no pretexto em detrimento do contexto.

Engenhos Mortíferos
Thaddeus Valentine espreita pelo orifício da jaula de Shrike.

E é numa cadência altamente motorizada, que os novelos da trama se vão desentrelaçando com a previsibilidade habitual de uma intriga banal que foi edificada para não dar que pensar, remetendo o próprio elenco à sua zona de conforto, excetuando, talvez, a protagonista Hester Shaw (Hera Hilmar). E como evoluiu a graciosa e ingénua Vanessa de “Da Vinci’s Demons” para uma rufia com a cara rasgada ao meio. Com o seu olhar islândes, ela é a força motriz de uma narrativa de vingança, que dá boleia a um jovem historiador aluado, Tom Natsworthy (Robert Sheehan), na demanda por um ato de justiça pessoal aos pés de Valentine. O triângulo de personalidades antagónicas até poderia resultar no papel, mas a sua execução prática revela uma escassez de química, que nos impede de apreciar o lado mais sui generis de cada persona. De facto, Hugo Weaving seduz com aquele carisma sarcástico de um típico mau da fita, mas surge avante com um discurso bastante decorado, incapaz de fugir daquele perfil vocal já tão batido, que o notabilizou como agente Smith em “The Matrix”. E como plano B intromete-se Shrike – um esqueleto ambulante persecutório, que clama incessantemente por Hester com um uivo de agonia extrapolado da voz profunda de Stephen Lang, estivéssemos nós perante um conto de Mary Shelley.

O problema de Engenhos Mortíferos, é que se esforça em vender-nos o invólucro de um produto com peças demasiado complexas, que não são transpostas para um cenário plausível com a devida maturação expositiva…

Até mesmo Tom, o parceiro acidental de Hester, falha redondamente em convencer-nos do óbvio ardil romântico cozinhado pela força das circunstâncias, sem que se apalpe uma ligação credível entre ambos, que não redunde em piadas fáceis e clichés enfadonhos. E mais uma vez, Jackson e Rivers bem tentam jogar com a cilada das aparências exóticas, que no caso de Hester só encontra rival em Anna Fang (Jihae), uma aviadora anarquista com o cognome “flor do vento”, que possui um certo swag distintivo e um junco voador com asas carmesim. Ela sim, infunde no argumento algum “Feng Shui” ao desequilíbrio das dinâmicas representativas, mas é insuficiente para travar a opinião generalizada de que, cada interveniente, só existe para atingir o seu propósito diegético, nada mais.

Engenhos Mortíferos
Anna Fang dá-se a mostrar no mercado de escravos.

Engenhos Mortíferos, poderia ser aquela lufada de ar fresco no sobrelotado segmento da ficção cientifica/fantasia, mas esbanja escandalosamente essa oportunidade de ouro numa imagética estonteante, que é totalmente armadilhada por uma história fútil e preguiçosa para adolescentes. E é um crime que assim seja, e que os dez anos despendidos para desenvolver a tecnologia deste portento visual, não tenham sido igualmente canalizadas para dissecar do manuscrito de Reeve, toda a riqueza cultura e emocional que dele emana. Assim, ficamos apenas com uma fita equivalente a uma ida à “Disneylândia”, que tão rápido encanta como perde o seu wow factor.

Engenhos Mortíferos
Engenhos Mortíferos

Movie title: Mortal Engines

Movie description: Centenas de anos após a civilização ter sido destruída por um cataclismo, uma jovem misteriosa, Hester Shaw (Hera Hilmar), surge como a única pessoa capaz de parar Londres – agora uma cidadade gigante e predadora sob rodas – de devorar tudo no seu caminho. Selvagem e conduzida intensamente pela memória da mãe, Hester une forças com Tom Natsworthy (Robert Sheehan), um marginal de Londres, juntamente com Anna Fang (Jihae), uma criminosa de perigo com a cabeça a prémio.

Date published: 12 de December de 2018

Director(s): Christian Rivers

Actor(s): Hugo Weaving, Hera Hilmar, Robert Sheehan, Stephen Lang

Genre: Ação, Aventura, Fantasia, Sci-Fi, Thriller

  • Miguel Simão - 70
  • Luís Telles do Amaral - 68
  • Inês Serra - 68
69

CONCLUSÃO

Engenhos Mortíferos oferece-nos um mundo distópico tecnologicamente surpreendente e inovador, mas peca por não ter dado o mesmo tratamento de luxo ao seu guião, que denota francas debilidades na qualidade do diálogo entre os demais intervenientes. Se por um lado temos esta ideia loucamente realizada de cidades móveis que se montam e desmontam como origamis, ou que flutuam no céu e agregam dirigíveis desportivos com asas de papagaio como numa colmeia, por outro, quando descemos à terra, verificamos que as pessoas de carne e osso não acreditam o suficiente nessa utopia como ela em si mesmo. Ou seja, o sonho pode parecer real, e quer tanto passar essa ilusão, que os atores que lhe dão vida, esquecem-se de lhe dar a sua vida, e logo acordamos da mentira para a desilusão.

O Melhor: Imagem de cortar a respiração; efeitos especiais de ponta; direção artística de uma criatividade ímpar; adereços e guarda roupa vistosos; banda sonora épica.

O Pior: guião subdesenvolvido, pouco ambicioso e inundado de vulgaridade; prestações individuais esquecíveis.

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