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Ernest Cole: Perdido e Achado – Análise

Estreou esta quinta-feira 25 de setembro o mais recente filme de Raoul Peck: “Ernest Cole: Perdido e Achado” (2024). Depois do documentário “I Am Not Your Negro – Não Sou o Teu Negro” (2016), o realizador volta a abordar a temática do racismo pegando na história do fotógrafo Ernest Cole.

Raoul Peck é um realizador que se interessa em fazer filmes sobre temáticas históricas. Assim, este ano, apresentou no Festival de Cannes o filme “Orwell: 2+2=5” (2025) sobre o escritor George Orwell. Enquanto essa obra não chega a Portugal, a Films4You traz-nos a história de Ernest Cole que se confunde com a história do Apartheid e do segregacionismo nos E.U.A.

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Qual a narrativa do filme Ernest Cole: Perdido e Achado?

“Ernest Cole: Perdido e Achado” tem como contexto o facto de em 2017 ter-se descoberto um grande espólio com fotografias e documentos do fotógrafo sul-africano Ernest Cole num banco sueco.

O fotógrafo foi ainda autor do livro “House of Bondage” onde publicou várias fotografias do Apartheid na África do Sul. O livro foi banido no país e o legado do fotógrafo também foi caindo sendo que uma boa parte das suas fotografias – em específico também, os negativos – ficaram desconhecidas do público durante décadas.

O documentário utiliza a narração como dispositivo narrativo em discurso direto. Ou seja, os escritos de Ernest Cole são lidos (ou representados, uma vez que têm uma emoção própria) pelo ator LaKeith Stanfield. Assim, é como se fosse o próprio Ernest Cole a contar a sua história.

Quanto às fotografias, ninguém sabe como foram parar à Suécia (apesar do fotógrafo passar lá algumas temporadas), não há quaisquer registos. Terá sido uma forma de silenciar Cole? O certo é que a família do fotógrafo também ainda luta com o banco pela posse do espólio…

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Um filme fotográfico com valor histórico

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Aproveitando o facto da descoberta de 60.000 negativos de fotografias de Ernest Cole, Raoul Peck traz-nos um documentário eminentemente fotográfico. Além das fotografias, há algumas outras imagens de arquivo fílmico e ainda algumas filmagens atuais, nomeadamente, uma importante entrevista com o sobrinho de Ernest Cole, Leslie Matlaisane.

Ernest Cole viveu uma curta vida de 49 anos, falecendo com cancro. Contudo, durante a sua vida fez um trabalho notável. Deu protagonismo aos negros – como ele próprio o era – para falar do racismo e da segregação que estavam a sofrer. Se a publicação do seu livro “House of Bondage” o obrigou a ficar exilado nos E.U.A., é porque o seu incrível trabalho fotográfico de denúncia incomodou o governo do Apartheid.

No exílio nos E.U.A., Ernest Cole nunca esqueceu o seu país e tentou várias vezes regressar. Regressou já cremado nas mãos da sua mãe… Ainda assim, Cole sempre acreditou numa África do Sul livre. Quis o destino que Ernest Cole morresse apenas uns dias após a libertação de Nelson Mandela.

Neste filme, as fotografias de Ernest Cole são o centro de tudo. No entanto, não estamos perante uma mera exposição fotográfica; felizmente. Na grande maioria dos casos, Raoul Peck força o olhar do espectador para encontrar os significados por trás de certas fotografias. Tenta encontrar o “punctum”, como diria Roland Barthes. Se há fotografias de “fácil” leitura como as primeiras que assistimos ainda na África do Sul, com os espaços exclusivos de negros e os espaços exclusivos de brancos – o segregracionismo puro e duro do Apartheid – outras fotografias há onde o significado é mais oculto e encontra-se “perdido”, por exemplo, nas expressões das pessoas fotografadas.

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Dar voz a Ernest Cole

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Para lá das fotografias, é de um claro rigor a junção da narração com a exposição das fotografias. Ainda que possa haver algumas alterações ao texto – Raoul Peck credita Ernest Cole como argumentista mas também se credita a si como tal – tudo está pensado ao pormenor e com um sentido de responsabilidade. Aliás, Raoul Peck acrescenta mesmo que o que escreveu foi “adaptado a partir de depoimentos de família e amigos”, tal é o rigor.

Com a proibição do seu livro na África do Sul, Ernest Cole fica a viver nos E.U.A. Contudo, vai descobrir que a América não é assim tão livre e que os negros continuam – também ali – a serem vistos como pessoas menores na sociedade; afastados do dia-a-dia dos brancos para serem seus empregados, escravos. Mas também há sinais positivos. Ernest Cole vê e fotografa algo que nunca veria na África do Sul: casais mistos e, além disso, casais de homens negros. Ainda havia esperança.

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O princípio do fim em Ernest Cole: Perdido e Achado…

Ernest Cole: Perdido e Achado
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A certa altura, com a acumulação de vários fatores como o adiamento da sua bolsa para continuar a sua pesquisa fotográfica, a Revolta do Soweto, em 1976, onde várias crianças são mortas e o crescente agudizar da situação na África do Sul onde ninguém se chega à frente para resolver, Ernest Cole vai perdendo a vontade de fotografar, enquanto um psiquiatra questiona a sua saúde mental. Ernest Cole já questiona mesmo a sua arte: “Todas as fotografias são uma falácia.”

O seu sobrinho confidencia-nos que Cole deixou de fotografar algures nos anos 80. Tornou-se sem-abrigo e ficou sem carreira. Foi o início do fim para um fotógrafo que nos deixou fotografias históricas e antropológicas que nos deixam restos de conhecimento de um complicado século XX na África do Sul e E.U.A.

“Ernest Cole: Perdido e Achado” é um filme onde Raoul Peck cruza na sua montagem as importantes fotografias de Cole com registos de arquivo que contextualizam a sua época. Além disso, trazem-nos ainda questionamentos sobre o racismo que, infelizmente, ainda hoje existe. Este é, portanto, um documentário que deve ser visto, revisto e pensado para agora e para o futuro.

Ernest Cole: Perdido e Achado

Conclusão

  • “Ernest Cole: Perdido e Achado” é um documentário de Raoul Peck que procura destacar a vida e obra do fotógrafo Ernest Cole, que ficou na penumbra durante décadas. Ao mesmo tempo, e com um recurso bastante cuidado aos seus registos fotográficos (mas não só), reflete-se sobre o que foi o Apartheid e o segregacionismo.
  • Esta é uma obra fundamental sobre o racismo do passado para pensar o racismo do presente.
  • O filme está muito muito cuidado em termos narrativos, recorrendo, inclusive, ao dispositivo do narrador participante como se Ernest Cole estivesse a narrar a sua própria vida.
  • Tem apenas como ponto fraco o recurso por vezes distrativo a certos efeitos visuais (como na entrevista com o sobrinho do fotógrafo).
Overall
8.5/10
8.5/10
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