DocLisboa ’16 | Exil, em análise

Rithy Panh recorda os seus dias de exílio em Exil, a sua mais recente obra experimental que vai buscar elementos de teatro e instalação para retratar as contradições da ideia de revolução e os píncaros do sofrimento humano.

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Apesar de viver em Paris nos dias que correm, o realizador Rithy Panh é o mais importante cineasta cambojano da atualidade e a sua ligação à pátria que o viu nascer continua a caracterizar o seu muito singular e idiossincrático cinema. Uma ligação que, convém esclarecer, está longe de ser uma paixão nostálgica e inocente, mas sim a recordação dolorosa do horror passado sofrido por Panh aquando da ditadura comunista de Pol Pot. Sob o regime do Khmer Vermelho, Panh viu a sua família perecer devido à fome, ao violento peso dos trabalhos forçados, sendo que o jovem acabou por conseguir fugir para a Tailândia antes de ele mesmo ter semelhante fim.  Em A Imagem Que Falta, Panh contou a história desses anos negros no Camboja através de tableaux de esculturas de madeira e uma narração biográfica, alcançando, pelo caminho, o merecido reconhecimento e aclamação global.

Exil, o seu mais recente trabalho de autobiografia cinematográfica, é bastante diferente de A Imagem Que Falta. Em primeiro lugar, esta nova obra foca-se no exílio do jovem Panh que teve de sobreviver pela selva, enquanto fugia do Camboja para a Tailândia, onde, eventualmente, conseguiu abrigo num campo de refugiados antes de finalmente obter um modo de ir para França. Mas, mais do que uma diferença de tema e foco, Exil distingue-se desse triunfo anterior por uma abordagem muito menos transparente e expositiva. Se A Imagem Que Falta era uma narrativa de horrores, Exil é um poema que insinua a abstração, que é insular e cerebral e que consegue ser muito mais experimental que o projeto passado.

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Sob a forma de um filme-ensaio, Exil vê Panh a empregar, mais uma vez, uma conflagração de vários elementos na construção da sua singular autorreflexão sobre a sua própria vida e a sanguinária ditadura e revolução cambojana. Aqui, voltamos a ter a utilização de imagens propagandistas do regime, tal como tem acontecido na obra anterior de Panh, e, tal como acontecia aí, essas imagens são contrastadas com um voz-off que subverte o seu conteúdo. Neste caso, esse voz-off conta obliquamente a experiência do jovem Panh exilado, ao mesmo tempo que reflete sobre a natureza da revolução, da dor, perda, lembrança e culpa. Invocando citações de Robespierre e Mao Tse Tung e slogans do regime, este texto é um dos mais complexos na filmografia de Panh, incorporando perfeitamente a ideia de um ensaio filmado.

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Para além desses elementos, já recorrentes na oeuvre deste cineasta, Exil apresenta ainda outra dimensão visual e cénica. Nomeadamente, a acompanhar o uso de filmagens da época e o complicado texto refletivo, Panh inclui neste filme uma peculiar coleção de tableaux, encenados no interior de um casebre rural no Camboja, onde, no seu interior, todo um mundo visceral e onírico ganha vida. Indo buscar elementos à linguagem do teatro e da arte de instalação, Exil exibe aqui uma representação tão etérea como sólida do sofrimento e vivência do jovem fugitivo, seus dias na selva, seus sonhos, o tormento da lembrança de uma mãe chacinada pelo regime, e seus demónios metafóricos que aqui ganham caráter físico e ilustrativo. Através da extravagância da construção artificial encontra-se o caminho para a lancinante representação fílmica da realidade humana que, neste caso, transcende o mundo material refere-se também à interioridade mental.

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Este teatro de opressão combina píncaros de artifício, como uma paisagem de luas em papel de cenário e penduradas por fios visíveis, com alienante visceralidade e grotesco. Nomeadamente, a representação de comida e outros elementos da vida mundana de um jovem a tentar sobreviver desesperadamente conferem a esta porção do filme uma violência inesperada, como quando o vemos a cozinhar uma barata viva e depois a comê-la. Para acentuar o grotesco e especificidade material destes momentos, Panh filma tudo isso com o generoso uso de planos pormenor, onde os minúsculos corpos de insetos e roedores são exibidos em toda a sua bizarra aparência e sofrimento.

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Esta coleção de pinturas oníricas, associada às imagens de arquivo e ao voz-off, criam uma experiência que lembra a leitura de um poema de caráter autobiográfico. A música, que ignora os limites tradicionais da divisão da cena e do corte, traz a Exil uma fluidez acrescida, delineando uma continuidade de pensamento que corre por toda a obra e sua ligeira duração de 77 minutos. Assim, Panh volta a afirmar-se como um dos mais singulares e importantes realizadores de cinema documental na conjetura atual, imbuindo o seu trabalho com uma carga biográfica que traz uma face humana a um doloroso período histórico, cujas injustiças ainda foram poucas vezes exorcizadas pelo cinema fora da obra deste particular autor.

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O MELHOR: O cenário e suas constantes mutações. Numa cabana pode existir uma selva, um deserto, uma paisagem simbólica de rodas brancas, um tableaux espacial, um sonho com serpentes divinas ou somente uma casa de classe média cujo conforto e segurança são também um sonho distante.

O PIOR: Para quem nada souber sobre o Khmer Vermelho ou sobre a vida de Panh, já relatada nas suas obras anteriores, Exil poderá ser algo de diabólica inescrutabilidade.


 

Título Original: Exil
Realizador:  Rithy Panh

DocLisboa | Documentário, Biografia | 2016 | 77 min

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