Festa do Cinema Francês ’25 | Les Habitants – Análise
No espaço de cinco meses, Maureen Fazendeiro apresentou dois novos projetos a solo, os primeiros que assina desde a curta “Sol Negro” de 2019. O mais falado dos dois trabalhos será “As Estações”, com sua estreia na competição de Locarno e subsequente passagem pelo Festival de Toronto. No entanto, não deveríamos esquecer a outra façanha desta cineasta que, em colaboração com Miguel Gomes, assinou um dos filmes essenciais da pandemia com “Diários de Otsoga”. Refiro-me a “Les Habitants”, uma obra na fronteira entre a curta e a longa-metragem onde se ouvem ecos de cinemas passados apesar de preocupações urgentemente atuais.
O filme marcou a sua estreia mundial no Festival Cinéma du Réel e, agora, chega ao público português por mão da Festa do Cinema Francês, onde teve direito a um espaço especial na sua programação. De facto, trata-se de uma proposta muito invulgar no contexto desse evento, propondo algo mais próximo do documentário e do experimental do que do prestígio da grande produção que tanto caracteriza a Festa. Também arrisca o minimalismo e o distanciamento, uma estratégia perigosa que se pode encarar como uma contradição das suas mensagens, sua tese, sua afirmação política contra o preconceito.
Mas de que trata este “Les Habitants” de Maureen Fazendeiro? Contado em 42 minutos feitos principalmente à base de paisagens dignas de postal, o filme foi construído à base de cartas enviadas à realizadora pela sua mãe, Valérie. Apesar de viver em Lisboa há anos e aqui desenvolver o seu cinema, Fazendeiro cresceu em França, na localidade de Périgny-sur-Yerres. O sítio é daquelas cidades dormitório, situando-se nos subúrbios de Paris onde muita da população trabalha na capital. O que mais salta à vista na comuna serão as suas estufas e campos agrícolas, culturas de flores que tornam o espaço num postal vivo.
E como podia deixar de ser, quando Fazendeiro tudo filma em película, capturando a beleza da terra natal em matizes de cor e grão? A fotografia de Robin Fresson é um sonho bucólico, sugerindo um Éden pastoral cuja serenidade se manifesta à revelia do conteúdo textual do filme. Porque “Les Habitants” é um retrato da cidade, da França e da Europa em todo o seu asqueroso ódio, paroxismos de xenofobia movendo a população e seus sistemas contra aqueles de que mais ajuda necessitam. Nas cartas de Valérie, ela descreve como um acampamento romani foi montado em terrenos abandonados da região e as tensões que daí resultaram.
2025 é o ano de Maureen Fazendeiro!
Neste sentido, “Les Habitants” é tão ou mais urgente de uma perspetiva portuguesa do que francesa, não fosse o nosso país aquele em que o preconceito contra os roma, ou ciganos, mais se sente. Em sondagens e pesquisas recentes, batemos todas as outras nações europeias nesta infeliz realidade, sendo fácil imaginar uma história ainda mais triste do que a que Valérie relata se o seu cenário fosse lusitano em vez de gálico. Enfim, comparações internacionais à parte, a mãe de Fazendeiro tudo nos conta numa narração em voz-off que raramente pausa ao longo da fita, definindo a sua forma tanto quanto as contemplações paisagísticas.
Ao contrário de muitos vizinhos seus e do governo local, Valérie tentou auxiliar essa gente nómada, levando mantimentos e oferecendo-se para lavar a roupa quando, numa tentativa de expulsá-los, as infraestruturas municipais cortaram o acesso à água e à eletricidade aos acampados. Mais do que qualquer outro indivíduo, suas cartas focam-se em Loredana, uma jovem mãe cujo marido ainda fala francês com sotaque forte da Roménia que torna a comunicação difícil. Em certa medida, “Les Habitants” é um testemunho da sua amizade ao longo dos meses em que a família permaneceu na região de Périgny-sur-Yerres.
As suas ações contrastam fortemente com as atitudes descritas pela parte de outros habitantes que desejavam resolver o “problema” do acampamento com um lança-chamas e que opinavam que não se devia permitir a estas pessoas ter filhos. O contraste entre a retórica quase eugénica assim descrita e as paisagens é quase obsceno. O mesmo se sente quando Valérie fala das dificuldades de Loredana em aguentar o frio do inverno e, no ecrã, brilha o fausto primaveril, o sol cálido do verão, a fartura campestre e até se apanham miúdos a tomar banho no rio para se refrescar. A contradição fundamental é, pois claro, a base da estratégia de Fazendeiro.
Tanto assim é que começo a questionar as muitas comparações feitas por quem viu “Les Habitants” e “News from Home” de Chantal Akerman. Facilmente percebo a analogia, pois são filmes em que as realizadoras usam a correspondência com suas mães, longe noutro país, como elemento principal do engenho. E em ambos os casos, existe uma paixão pelo registo da paisagem acima de qualquer retrato do indivíduo, contrapondo a palavra intimista com uma câmara distante, porventura alienada daquilo que testemunha. Só que Akerman pôs Nova Iorque no ecrã e não as Bruxelas de que a mãe falava. Fazendeiro foi filmar a França, o que altera logo a dinâmica.
Um cinema contra o espectador passivo.
Poder-se-ia assumir que a cineasta francesa fez isso numa tentativa de ilustração, capturando as realidades descritas nas cartas. Só que não o faz, preferindo sempre um espaço vazio e só mostrando Valérie em fragmentos, mãos que preparam uma tarte ou arranjam um bouquet de floridos rosa e brancos. Dos acampamentos, nada se vê, pois eles foram corridos à força muito antes da fita ser filmada, e o retrato da população local jamais se aproxima do indivíduo. No máximo, vemos trabalhadores nas estufas ou homens do lixo a recolher mobília velha que os donos preferem ver destruída ao invés de reaproveitada por quem a possa querer.
Esta paisagem pastoral digna de pintura, onde a vida humana é secundária e nenhum conflito parece haver, é a paz sórdida que aqueles que mais se opuseram ao acampamento queriam. Ao colocar essa fantasia em posição de destaque, Fazendeiro problematiza-a e demonstra a crueldade que a possibilita. Ao mesmo tempo, faz-nos pensar sobre Loredana, seu marido, filhos e camaradas, exigindo que o público esteja em diálogo ativo com o filme ao invés de se ficar pela passividade do espectador comum. Por exemplo, sentimos o frio invernal mais fortemente quando temos de o conceptualizar sem a mercê da imagem ilustrativa.
Mais do que Akerman, sinto a presença de Resnais e Lanzmann, cujos filmes sobre o Holocausto usaram ausências pictóricas em jeito semelhante. Dito isso, “Les Habitants” corre o perigo de tornar os seus reais sujeitos abstratos demais e ir contra as boas intenções do discurso através da celebração sincera de uma filha que muito admira a mãe. Valérie merece aplausos pelos seus esforços, mas centrar uma senhora privilegiada nesta particular história de injustiça social tem o seu quê de absurdo. Não seria mais coerente documentar o testemunho das comunidades romani afetadas, sua procura infrutífera por emprego, a constante presunção de que são ladrões e afins?
Perante estas questões, outra dúvida se levanta. Se “Les Habitants” fosse mais tradicional e politicamente útil, teria o mesmo valor artístico? Deverá o cinema ser subalterno a potenciais funcionalidades panfletárias ou estará o mérito estético, poético, a expressão pessoal, acima desses interesses materiais e comunitários? Não há resposta universal para isto, mas, no meu caso, prefiro as tensões internas deste filme ao didatismo de tantos outros esforços comparáveis. Ficará a cabo de cada um definir para si mesmo o que valoriza mais na sétima arte. Se o cinema por si só ou sua capacidade para ser ferramenta de sensibilização social.
Les Habitants
Conclusão:
- Maureen Fazendeiro está a ter um ano em grande. Entre “As Estações” e “Les Habitants”, a sua carreira enquanto realizadora a solo está a descolar e a alcançar novos píncaros de expressão, estilo e esplendor. De facto, dificilmente encontraremos um filme mais belo do que este autêntico postal vivo que teve antestreia na Festa do Cinema Francês. Ou talvez belo seja a forma errada de descrever “Les Habitants.” Afinal, o que nele é descrito é mais feio que belo.
- Através das cartas da mãe, Fazendeiro retrata os preconceitos contra os romanis em Périgny-sur-Yerres, contrapondo a compaixão da senhora à crueldade de alguns vizinhos e representantes municipais. O caso de Loredana e sua família salta à vista, dominando a narrativa documental, mesmo que sempre na segunda pessoa.
- Ecoando as premissas de Akerman e as estratégias formais de Resnais e Lanzmann, Fazendeiro concebe um trabalho cheio de tensões latentes e desconexões fundamentais. Através desse engenho, exige que o espectador abandone a passividade e dialogue com o filme proposto. Mas também sujeita o projeto à incoerência política entre os valores celebrados e o modo como são articulados em cena.