©TIFF

Grand Tour, a Crítica: Temporalidades e geografias fundem-se na obra premiada de Miguel Gomes 

Miguel Gomes entrou de rompante na Competição Oficial de Cannes, numa primeira entrada que foi premiada com um dos louvores mais elevados – o prémio de Melhor Realização. Pedigree de festival conquistado, “Grand Tour” é a obra representante de Portugal nos Óscares e chegou já às salas de cinema nacionais. 

Inebriante, onírico, liberto e inventivo, assim é o mais recente filme de Miguel Gomes, que tal qual como “Tabu” (2012) também é uma obra a preto e branco belíssima, filmada a 16mm, que se está a mover muito bem à escala internacional e que também explora a relação entre um passado colonialista e a sua herança quotidiana.

Lê Também:   Cannes 2024: Palma de Ouro para “Anora” e Miguel Gomes é o Melhor Realizador

Miguel Gomes e um filme de época sem tempo

Mas se há mais de uma década Miguel Gomes fez esta escavação com uma obra de época mais ancorada ao seu contexto sócio-político, a memória colonial portuguesa, aqui apresentou-nos uma jornada pelo Oriente onde o drama histórico não pode e não deve ser contido, com uma oscilação constante entre a narrativa central, situada em 1917, e imagens dos locais por onde as personagens passam, captadas no aqui e agora. Estas não se distinguem, formando um caleidoscópio hipnotizante.

grand tour panda cannes
Grand Tour (2024) © Uma Pedra no Sapato

Chamemos-lhe um híbrido, uma docuficção, ou simplesmente um romance fictício que não se preocupa demasiado a colocar amarras à linguagem com que se expressa; “Grand Tour” bebe da tradição desse mesmo nome, e apresenta-nos uma jornada de conhecimento, para as personagens centrais, mas também para o espectador; vista a partir de uma câmara muito curiosa, atenta a cada detalhe, a cada animal, a cada peculiaridade inata aos locais estupendos que são filmados.


Grand Tour | Jornada asiática bipartida

grand tour cannes 4 estreia portugal
© Uma Pedra no Sapato

Arrancamos na Rangum de 1918, na antiga Birmânia. As nossas personagens falam português, mas são na realidade todas elas britânicas, vingando e invertendo um pouco a tradição habitual (personagens de todo o mundo subjugadas à língua inglesa). O nosso protagonista é Edward, interpretado por Gonçalo Waddington, um funcionário do Império Britânico que foge da sua noiva Molly, virando as costas a um longuíssimo noivado quando se vê confrontado com a incapacidade de a encontrar por fim,, depois de muito tempo separados – ele na Birmânia, ela em Londres.

Lê Também:   Grand Tour: Em Busca do Amor Perdido plena Croisette

As viagens de Edward são dominadas por uma enorme melancolia, reflexão cíclica, e pela incapacidade de apreciar as maravilhas dos lugares por onde passa. E, diga-se, desde já, “Grand Tour” passa por muitas localizações: da Tailândia ao Japão, do Vietname à China, de Singapura a Mianmar, às Filipinas. Deslumbrantes ritos de passagem desta Grand Tour Asiática, da qual desfrutamos no pleno enquanto Edward se limita a deambular com aparente indiferença crónica.

Quanto ao processo de rodagem, este sustentou-se numa estrutura em três partes – uma viagem à Ásia, com a equipa presente; filmagens da China feitas à distância e ainda trabalho de estúdio em Portugal. Tudo isto se funde na perfeição no produto final, onde o estúdio é evidente, aqui e ali, mas sem roubar nada à magia do cinema que tão evidenciada está (e com intencionalidade).


Crista Alfaiate e a viagem no feminino

A obra ganha nova vida a partir da marca da primeira hora, sensivelmente, quando Molly (Crista Alfaiate), decide seguir Edward pelo seu Grand Tour, recriando os seus passos, não obstante o facto de este ter acabado de a abandonar antes do seu casamento. A bela, londrina, sofisticada Molly parece algo delirante e a viver num sonho febril só dela. Tem o riso mais delicioso e contagiante do mundo, um riso que define a personagem em grande parte e que a atriz inclusive já revelou ter preparado com particular cuidado.

Molly mantém, perante todas as adversidades, um otimismo completamente excessivo e mal fadado, mas que nos restitui a vontade de viver e, com ela, conseguimos por fim apreciar a viagem, de novo a partir do seu ponto de partida, com novos olhos e entusiasmo. Os olhos de uma personagem feminina, para quem as Grand Tours, no sentido da longa tradição da literatura de viagem que começou com o objetivo de edificar o homem de boas famílias Inglês, não eram de todo habituais; neste período e particularmente sem um marido no braço.

Grand Tour
Crista Alfaiate é a protagonista desta história de amor. @Uma Pedra no Sapato/Divulgação

Molly é vista por todos como uma anomalia: por estar sozinha, por insistir que o seu noivo em fuga voltará para ela, por abraçar a novidade e a curiosidade sem medo. Ela é uma aventureira plena, encantadora, que não receia a tempestade, a morte, ou o desconhecido. Seja pela descoberta de tribos locais ou pela subida de um rio perigoso, numa das sequências mais belas do filme, Molly atira o cuidado ao vento e mostra-nos a sua qualidade de pioneira. Ela é o verdadeiro coração do filme.


Através de Edward e Molly, um par condenado ao fracasso, conseguimos ver o Oriente do início do século XX de dois prismas muito distintos; e através da temporalidade e espacialidade dilatadas da câmara de Miguel Gomes, premiada no Festival de Cannes, ocupamos espaços muito especiais, num experiência sensorial que vai além da sentida com a presença física e palpável. Somos múltiplos, habitamos passado e no presente, com os sentidos bem estimulados.

Nem Molly nem Edward pertencem a este mundo, tal é bem evidente, não fossem colonizadores indesejados; e ambos fracassam na sua exploração, de formas muito diferentes. O desejo de reencontro é desarticulado, mas que deleite sentimos na sua jornada. Em particular, a partir do prisma da irreverente jornada de Molly,  uma das personagens mais interessantes do cinema português recente. Uma mulher à frente do seu tempo, vibrante e que não será depressa esquecida.

Trailer | Grand Tour, Melhor Realização em Cannes (2024)

“Grand Tour” encontra-se, de momento, na sua segunda semana de exibição com muitas salas onde descobrir esta obra portuguesa essencial, assinada por Miguel Gomes e premiada no Festival de Cinema de Cannes. Mais precisamente, à data de redação deste texto, contamos 27 ecrãs de norte a sul. 

Grand Tour, a Crítica
Poster 2024 Miguel Gomes

Movie title: Grand Tour

Movie description: Rangum, Birmânia, 1918. Edward, um funcionário público do Império Britânico, foge da noiva Molly no dia em que ela chega para o casamento. Nas suas viagens, porém, o pânico dá lugar à melancolia. Contemplando o vazio da sua existência, o cobarde Edward interroga-se sobre o que terá acontecido a Molly... Desafiada pelo impulso de Edward e decidida a casar-se com ele, Molly segue o rasto do noivo em fuga através deste Grand Tour asiático.

Date published: 29 de September de 2024

Country: Portugal, França, Itália

Duration: 129'

Author: Mariana Ricardo, Telmo Churro, Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes

Director(s): Miguel Gomes

Actor(s): Gonçalo Waddington, Crista Alfaiate, Cláudio da Silva

Genre: Aventura, Romance, Drama

[ More ]

  • Maggie Silva - 85
85

Conclusão

“Grand Tour” é um filme que explora paisagens deslumbrantes a partir de uma visão bipartida do mundo – Edward e Molly são espelhos um do outro, num retrato trágico-cómico daquilo que é ser um estranho numa terra estranha. Sem preocupação com grandes definições ou regras estilísticas, Miguel Gomes brinca com as possibilidades do cinema nesta obra que lhe valeu a distinção de Melhor Realizador no Festival de Cannes.

Sending
User Review
5 (1 vote)


Também do teu Interesse:


About The Author


Leave a Reply