Festival Scope | Filmes da Semana da Crítica de Cannes (II)

Entre a sua oferta de curtas-metragens em exibição na Semana da Crítica de Cannes, o Festival Scope tem duas belíssimas obras portuguesas, a solene pintura sacra ribatejana que é Ascensão de Pedro Peralta, e o angustiado estudo de personagem de Cristèle Alves Mieira, Campo de Víboras.

 


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Título: Ascensão
Realizador:  Pedro Peralta
Elenco: Domicília Nunes, Ricardo Francisco, Alice Calçada
Portugal | 18 min


 

Festival Scope Ascensão

A imagética cristã tem sido utilizada como base estética e temática de inúmeros filmes na história do cinema, mas poucos têm sido os autores que tentam transcender a superfície de tais visões, que tentam encontrar a espiritualidade inerente ao pictórico e que não é facilmente conjurada por apreciações dogmáticas. Carl T. Dreyer foi uma dessas vozes que ousou buscar a transcendência espiritual em tais imagens, e, seguindo os caminhos desse mestre dinamarquês de outrora, Pedro Peralta também o faz em Ascensão.

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Em apenas três planos de vagaroso e milimetricamente preciso movimento pelo espaço, esta curta-metragem retrata um tableau rural, onde o corpo de um jovem homem é retirado de um poço e entregue a sua mãe que o segura, qual Pietá ribatejana, sob a alçada da observação funérea e silenciosa dos homens e mulheres da comunidade. Lembrando a milagrosa conclusão de Ordet de Dreyer, o corpo parece revitalizar-se perante os nossos olhos, mas a teatral movimentação das peças humanas rapidamente indica que não estamos em presença de uma graça divina, mas sim de uma representação da ascensão de uma alma, de sua partida deste plano de existência.

Nesse último plano, a câmara deixa-se ficar em observação da figura que se distancia do jovem. Esperamos serenamente até ele sair da imagem, deixando que os sons naturais se imponham na paisagem sonora e sensorial do filme. Se na sua montagem mínima e ênfase teatral em cuidados movimentos da câmara pelo espaço, Peralta recorda Dreyer, na sua sonoplastia e espera pelo esvaziamento humano da imagem, é Bresson quem é emulado. Tais nomes, dois dos mais titânicos autores do cinema europeu poderão parecer despropositada comparação para esta obra, mas é difícil negar o impacto solene que as imagens de Ascensão despertam ou sua estonteante beleza, onde a ascensão da alma e do corpo toma manifestação natural no processo luminoso do amanhecer.

 


Título: Campo de Víboras
Realizador:  Cristêle Alves Meira
Elenco: Ana Padrão, Sónia Martins, Simão Cayatte 
Portugal/França | 20 min


 

Festival Scope Campo de Víboras

 

É curioso e um pouco frustrante quando se olha uma curta-metragem e a primeira impressão que esta nos dá a seguir ao seu visionamento é que deveria ter sido uma longa. Tais pensamentos poderão certamente ser acusados de preconceito cinemático, mas o facto é que a coprodução franco-lusitana Campo de Víboras dá a inquietante ideia de que funcionara muito melhor se fosse bastante mais extenso em termos de duração. Isto porque, tal como muitos dos filmes nesta competição, esta obra estrutura-se grandemente como um estudo de personagem singular.

Esse estudo é conseguido através da observação do quotidiano de Lurdes, uma mulher que vive na aldeia titular no concelho de Vimioso em Trás-os-Montes, onde cuida da mãe enferma, enquanto o resto da sua família há muito emigrou para França. Ao longo dos seus dias e noites, vamos olhando esta personagem e vendo como ela está emprisionada nessa localidade, como um animal enclausurado pelo dever filial para com uma mãe que é quase exclusivamente apresentada como uma voz fora de cena em constante chamamento pela filha ou vocifera crítica. A libertação e fuga de Lurdes é assim colocada em destaque, sendo que a realizadora lusodescendente, Cristèle Alves Meira volta aqui a um dos seus temas recorrentes, da vida no interior de Portugal, suas limitações e prisões, e, por consequência, seu abandono em prol de uma busca por um futuro melhor.

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É claro que Campo de Víboras não termina com nenhuma promessa risonha e esperançosa, mas sim com uma montanha de perguntas por responder e uma visão sobre a sua protagonista que é, no mínimo, opaca e incompleta. Ana Padrão muito faz para telegrafar o orgulho insolente e ressentimento corrosivo de Lurdes, mas os seus esforços parecem ser quase demasiados dramáticos para um filme de tão curta duração. A personagem e a narrativa de potencial traição familiar e intriga provinciana pedem mais desenvolvimento, especialmente quando os resultados são tão belos como Campo de Víboras, com seus asfixiantes grandes planos das faces dos atores e soturnas paisagens campestres. É certo que, no que diz respeito a críticas, ficar a querer mais filme é uma fragilidade de apreciação generosa que, mesmo assim, não deixa de ser uma fragilidade.

 

CA


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