Pormenor da capa de Fetch The Bolt Cutters (2020)

Fiona Apple, Fetch The Bolt Cutters | em análise

Nunca a voz de Fiona Apple soou tão forte e num ambiente tão rarefeito como em Fetch The Bolt Cutters, provando que a geração X ainda tem muito a dizer ao novo milénio.

Depois de um quarto de século de grande música, mesmo se a conta-gotas, ninguém tem dúvidas de que Shameika tinha toda a razão. Fosse ela quem fosse, existisse ou não, é hoje evidente para toda a gente que Fiona Apple “had potential”. A semente vislumbrada por esta rufia dos tormentosos tempos de escola foi florescendo organicamente, nos encontros e desencontros com a realidade e os outros, numa identidade tão flexível nos seus acentos e formulações quão inflexível na sua voz sempre distinta, inconfundível. Os mesmos veios atravessam o tronco da vida, desde as raízes da formação clássica em piano, a escuta e fusão do corpo com os ritmos do mundo e da natureza, a inspiração de outras mulheres como Kate Bush e Emily Dickinson e a articulação, por meio de tudo isso, das vivências pessoais numa coerente e inestimável visão pop.

Nem sempre foi óbvia, contudo, a verdade da profecia de Shameika. Muitos havia entre os seus ouvintes ou quem com ela trabalhava (e dela vivia) que viam Fiona Apple apenas como uma cara bonita de fama fácil e existência breve. Durante a década de 90, numa cultura dominante marcada por versões mais ou menos digeríveis de rock de guitarras, nem todos compreendiam o valor e a força de um piano tocado furiosamente, a acompanhar um canto feminino tão visceral quão virtuoso, no interior de uma tradição a oscilar entre Janis Joplin, Patti Smith e Kate Bush. Seriam precisos alguns anos até o art pop de cantautoras como Tori Amos ou Fiona Apple revelar o seu impacto profundo, por meio da descendência gerada, e conquistar a credibilidade que lhe é hoje concedida sem hesitações. Mas a demissão, incompreensão e desprezo encontrados acabaram por fortalecer aquela rapariguinha inexperiente apanhada nas malhas da produção de um videoclipe como “Criminal”. Cresceu e, décadas depois, no quinto álbum Fetch the Bolt Cutters, ouvimo-la cantar, num ímpeto vindo das entranhas do corpo e da maturidade, sublinhado pelo martelar das sílabas e das teclas do piano: “Kick me under the table all you want, I won’t shut up”.

Calaram-se as vozes contrárias. Se não o tivessem feito já, como resistiriam a um clamor assim? Este é um grito que nem o poder nem a morte conseguirão reduzir a pó e ao silêncio. “I know a sound is still a sound around no one”, diz Apple no tema de abertura, uma das canções que liga claramente o novo álbum aos momentos mais recuados do catálogo, com a musicalidade do canto e o percussivo ragtime do piano a lembrarem o grande When the Pawn…, de 1999. Contra as teorias ou suspeitas do desfazer-se de tudo no nada, Apple insiste que “uma vibração acontece, quer estejamos ali ou não para a ouvir. Eu existo, quer me vejam ou não. Estas coisas sobre mim são verdadeiras, reconheçam-nas ou não.” (Vulture, 17 Abril 2020) O que ao princípio soa apenas como uma vontade indignada, um grito de contestação, a certa altura começa a parecer outra coisa. Do poroso tecido político do álbum, feito de conflitos intestinais, justos ou mesquinhos ressentimentos e tensão nas relações, irrompem lampejos de um desejo mais profundo, de desafio da morte e veemência de vida: “While I’m in this body/ I want somebody to want/ and I want you to love me”. Para sempre, quem sabe. Percorrendo talvez o caminho daqueles dois cosmonautas, cuja lenta conquista de peso e substância permitiu levitar até aos céus. Porque é da natureza do amor, alheia à política das relações, que no outro consista todo o nosso ser: “When I met you, I was fine with my nothing/ I grew with you and now I’ve changed/ What I’ve become is something I can’t be without your loving […] When you resist me, hon’, I cease to exist/ Because I only like the way I look when looking through your eyes”.

Fiona Apple - crítica Fetch the Bolt Cutters
Fiona Apple (© Epic Records)

O álbum está cheio desta contundente afirmação de vida. “Fetch the Bolt Cutters” foi a última canção a ser escrita, num comentário de última hora à frase de Gillian Anderson, em The Fall, que deu nome ao disco. Nela, e aludindo à clássica canção de Kate Bush, Fiona conta como revirou a seu favor tudo o que parecia obstáculo ou impedimento à sua carreira ou felicidade: “I grew up in the shoes they told me I could fill/ Shoes that were not made for running up that hill/ and I need to run up that hill, I need to run up that hill/ I will, I will, I will, I will.” Ei-la agora no topo da montanha, tendo vencido sem concessões, jogando segundo as próprias regras, permanecendo sempre ela mesma. Longe do olhar ora idólatra, ora malévolo da multidão, Fiona Apple foi, ao longo dos anos, desprezando os canais normais de promoção; criando relações pessoais com este ou aquele jornalista que, por alguma razão, lhe chamou a atenção; perturbando-se com a ideia de que muitas adolescentes sonhem ser “influencers”; e acreditando em coisas como a autenticidade e o horror à notoriedade e comercialismo, tão fora de moda nestes tempos de poptimismo. Membro ainda da geração X, Fiona Apple não vê com bons olhos a procura da fama, muito pelo contrário: “Penso que toda a gente quer ser uma estrela, está disposta a fazer o que for preciso para ser famoso. Isso implica afastar pessoas do caminho, não se interessar por outras causas mas apenas por si mesmo e pela própria marca. Julgo que as pessoas se estão a tornar cada vez mais egoístas.” (Vulture, 25 Setembro 2019)

O horror à fama e a fuga tanto da cultura pop que dela se alimenta como do glam rock que a satiriza (arma perigosa que sanciona o que critica) tinham sido uma conquista da geração alternativa das décadas de 80 e 90, infelizmente esboroada pelos que se lhe seguiram. Na fama, o eu estilhaça-se nas mil imagens que cria de si, sempre dependentes das exigências e expectativas alheias, e à altura das quais se vê obrigado a viver. Na música de Fiona Apple, como na de tantos outros que habitam o mesmo quadrante mental, o eu permanece central mas como o assunto que a arte exprime e discute. Tão intenso é o desejo de autenticidade e pessoalidade que, em Fetch The Bolt Cutters, tudo foi composto, interpretado e gravado no improvisado estúdio doméstico de Apple, em Los Angeles, com todas as decisões de produção sob a sua responsabilidade. Improvisados são também muitos dos sons tribais, percussivos, que, solitariamente ou acompanhando o piano, servem de fundamento ao canto agreste, tantas vezes marcial ou de cadência popular, da autora. Os arranjos resultaram da descontraída convivência familiar da banda reunida por Apple para este projecto – a baterista Amy Aileen Wood, o baixista Sebastian Steinberg (dos Soul Coughing) e o guitarrista e cantautor David Garza – e de vários outros convidados informais como a irmã Amber, a cantar de bebé ao colo. Nunca como neste álbum foram tão evidentes quer a matriz blues da música e da alma de Apple, quer o carácter intensamente rítmico da sua sonoridade. Com as suas sugestões de música do mundo, Fetch the Bolt Cutters realiza o feito de evocar espaços exteriores, difíceis de situar, sem nunca perder os detalhes que acusam a atmosfera caseira onde teve origem, como por exemplo o ladrar dos cães, o ranger do soalho e o entrechoque dos instrumentos no final do tema homónimo. A abertura de “Newspaper” (um momento entre muitos) deve a sua fantasmagoria aos sons que enchem um lar, se nos silenciamos e pomos à escuta, mostrando que Apple não estava a brincar quando dissera que faria da casa o álbum.

Mundo e habitação fundem-se na paisagem sonora que envolve a crua voz de Apple, enquanto canta fragmentos de memória retirados de velhos diários, anos de rancor e amargura, confissões de mesquinhez e fragilidade mental, comentários de psicologia feminina, concepções de amor e vislumbres metafísicos. O resultado é um testemunho de genuinidade, a narrativa teatralizada de uma personalidade tão mais vincada quanto mais cresce e amadurece longe da multidão. Se tamanha sinceridade, expressa em metáforas e versos extraídos do tecido da própria vida, nem sempre redunda num juízo clarividente sobre a experiência humana, pelo menos não falha na descrição cirúrgica e idiossincrática de muitas das vivências que a compõem, nem na imaginação sonora com que as recria. “Heavy Balloon” subsistirá como um dos grandes documentos artísticos da luta contra a depressão. Quando “people like us get so heavy and so lost sometimes/(…) that the bottom is the only place we can find”, quando “the bottom begins to feel like the only safe place that you know”, é então que “I spread like strawberries/ I climb like peas and beans”. Do fundo do oceano para onde se sente atirada, Fiona Apple ressurge e refloresce, ainda outra vez. Embora na poesia de Fetch the Bolt Cutters se enrosque mais o desabafo do que o olhar iluminante, é a sinceridade em si mesma, legitimada pelo talento e pela obra final, que permanece o contributo inestimável de Fiona Apple ao mundo de hoje. Afinal, a música é aquele lugar, oferecido como dom e conquistado na paciência, onde a sua voz “won’t shut up”.

Fiona Apple, Fetch The Bolt Cutters | em análise
Fiona Apple - Fetch The Bolt Cutters - Crítica

Name: Fetch The Bolt Cutters

Author: Fiona Apple

Genre: Art pop, Pop barroco, Bedroom pop

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  • Maria Pacheco de Amorim - 89
89

Um resumo

Fetch the Bolt Cutters talvez não mereça, a longo prazo, a inflacionada aclamação de que tem sido objecto. Mas como não há fumo sem fogo importa reconhecer que estamos diante de um dos álbuns do ano. Importa agradecer também a generosidade de Fiona Apple, que, contra o que seria comercialmente aconselhável, decidiu lançá-lo quando o mundo atravessa um momento difícil, para que sirva de alívio e consolo. De facto, que companhia não nos faz, neste prolongado confinamento, um álbum onde mundo e casa convivem tão harmonicamente? Que sustento não nos traz, em tempos onde a morte espreita e a imaturidade abunda, uma personalidade indómita, feita de puro desejo de viver?

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